Introdução
Pediram-me uma
palavra sobre a situação atual da Igreja Católica, considerando a caminhada do
papa Francisco à frente da Igreja. Tal situação tem se mostrado complexa e
exige discernimento e prudência para uma análise que não se deixe levar por
visões apaixonadas. A paixão tira a visão e o discernimento reclama
tranquilidade. Com este artigo queremos oferecer uma síntese a respeito do
cenário eclesial atual. Esperamos contribuir com o esclarecimento da realidade,
evitando toda e qualquer confusão. Esta parece ter tomado conta do mundo, assim
como de muita gente na Igreja.
Como filhos que desejam o bem de sua mãe, coloco-me como
aquele que se recusa a fechar os olhos para seus defeitos, com o objetivo de
ajudá-la a ser aquilo que Deus quer: instrumento de salvação da humanidade. Cremos
que a hora atual da Igreja é de um tempo de graça e salvação. Desde Roma, onde
se encontram os túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo, dois grandes missionários
da Igreja nascente, um profeta grita sobre os telhados.
Um
profeta latino-americano que deseja a conversão da Igreja. Antes que este
profeta seja chamado à presença de Deus, é necessário que a Igreja escute o que
o Espírito está falando por meio dele. Quem o escuta? O que escuta? Onde
escuta?... Seu nome é simplesmente Francisco, bispo da Igreja de Deus que está
em Roma, pastor chamado para trabalhar pela unidade da Igreja que se faz
presente em muitos lugares do mundo.
- Quem o escuta?
Quando
um profeta fala, os poderosos se sentem incomodados, juntamente com seus
aliados. Isto acontece porque, desde os tempos bíblicos, os profetas não falam
de si, nem para si, nem de suas próprias ideias. Não inventam nada, mas
simplesmente transmitem a palavra de Deus. São portadores de uma palavra que
não passa, mas que é eterna. Uma palavra que corta como espada de dois gumes. O
corte desta palavra fere, esclarece, liberta. O corte da verdade da palavra se
parece com o fogo que consume. Este fogo queima e destrói o que é contrário à
vontade de Deus. Isto é inevitável. Não há força humana capaz de deter este
fogo.
Na
Igreja Católica há homens poderosos, desde os tempos em que a mesma se aliançou
com os poderosos deste mundo. Quase não há mulheres poderosas porque a estas não
foi dado participar do poder. O clero é obrigatoriamente masculino. As mulheres
devem dar graças a Deus por não pertencerem ao clero, tal como está configurado
até o momento.
Os
homens de poder na Igreja, depois do papa, são os cardeais, com suas poderosas
funções e postos; os senhores arcebispos e bispos, com suas Igrejas
particulares, e os padres, com seus títulos e ofícios. Os diáconos, quer
temporários, quer permanentes, praticamente não ocupam funções que possam lhes
conferir poder na Igreja. São colaboradores da ordem presbiteral, como os
padres o são da ordem episcopal. Na prática é assim.
Uma
grande parcela destes cardeais, arcebispos, bispos e padres mantêm estreita
relação com os poderosos deste mundo: com homens e mulheres do mundo da
política e do empresariado, que representam instituições de poder secular. Os
que não tem alianças com esta gente, fecham-se numa vida luxuosa, gozando da
pomposidade e da bajulação.
Basta
visitar ou tomar conhecimento do estilo de vida destes clérigos para ver de
perto a situação escandalosa e corrupta que levam. Uma vez que não vivem a
opção pelos pobres, mas pelos ricos, inevitavelmente, compartilham das inúmeras
manias e falcatruas da gente rica que explora o povo de Deus. Estes clérigos
podem até falar em pobreza, assim como da opção dos pobres, mas desconhecem o
real conteúdo do que falam. São fariseus, que jogam pesados fardos nas costas
do povo, mas eles mesmos se recusam a carregar tal fardo.
Nos
púlpitos, muitos destes clérigos elogiam o papa Francisco, mas somente elogiam,
pois não tem coragem de colocar em prática as orientações do seu magistério
pontifício. Outros, porém, sequer fazem referência ao papa, com exceção da
oração eucarística, na qual o papa é mencionado e em seu favor se reza. Estes
clérigos estão insatisfeitos com o atual pontificado porque o papa está
denunciando a corrupção na qual estão envolvidos.
Enquanto
o papa trabalha, diuturnamente, por uma Igreja missionária, voltada para fora
de si mesma; eles lutam para que ela continue na letargia, parada no tempo,
ensimesmada. Para isto, agem como os mestres da lei e fariseus do tempo de
Jesus: manipulam, esvaziam o evangelho, enganam o povo de Deus, camuflam a
realidade com seus discursos e ações superficiais, investem em um cristianismo
de mero louvor, desvinculado da realidade. Não passam de meros funcionários do
templo que, após terem cumprido seus compromissos rituais, retornam para o
conforto de suas casas, vivendo distantes do povo.
Entre
os leigos também encontramos inúmeras pessoas que rejeitam a mensagem do papa
Francisco. São os leigos conservadores, educados no magistério dos papas João
Paulo II e Bento XVI, que se sentem frustrados porque o papa atual não se
gloria da infalibilidade papal, mas se reconhece pecador como os demais
cristãos; porque não retira os paramentos antigos do museu do Vaticano,
cobertos de ouro e feitos de tecidos caríssimos; porque não defende a
ultrapassada moral sexual da Igreja; porque insiste no tema da opção pelos
pobres e na recepção da teologia da libertação na vida eclesial e porque se
utiliza mais do remédio da misericórdia do que dos velhos e desnecessários
anátemas de muitos de seus predecessores.
Estes
leigos conservadores colocam a doutrina, o direito canônico, os costumes e as
tradições acima do evangelho de Jesus. Escutam a proclamação do evangelho nas
celebrações, mas optam pelas leis, costumes e tradições ultrapassadas. Estão se
perguntando: “Meu Deus, como o colégio de cardeais elegeram este homem para
ocupar a cadeira de Pedro?!...” Amam a figura histórica do papa, mas não gostam
daquele que está ocupando-a.
No
mundo secular, também os poderosos não estão gostando nem um pouco das palavras
do papa Francisco. Acham-no exagerado e contaminado pelo marxismo. Não gostam
quando escutam o papa condenar, veementemente, o capitalismo selvagem. Depois
de décadas de pontificados marcados pela opulência, os ricos não compreendem um
papa falar em opção pelos pobres e excluídos. Afirmam que a fala do bispo de
Roma é puro comunismo, não evangelho. Na verdade, pensam assim porque não
conhecem o evangelho. Dominados pelo espírito do capitalismo, ignoram o
evangelho.
Muitos
comparecem às celebrações, são mencionados pelos bispos e pelos padres, recebem
cumprimentos e bênçãos, mas não se convertem. São iguais ao jovem rico, que até
cumpria os mandamentos, mas se recusou a renunciar à riqueza para seguir Jesus.
É muito difícil um rico renunciar a riqueza para seguir Jesus na pobreza. Os
ricos tem medo do evangelho porque este é perigoso e ameaça a sua riqueza. Por
isso, preferem “seguir” Jesus sem aceitar a mensagem do evangelho! Vivem
mergulhados em um cristianismo sem futuro, ou seja, superficial e aparente.
Quem
escuta os apelos dos profetas são os pobres e seus servidores. Somente a estes
é possível a acolhida do apelo ao amor. Isto acontece porque são livres. Não
vivem segundo a lógica do mundo, mas segundo a lógica do Reino de Deus. Inúmeras
pessoas que não se enquadram nas categorias acima mencionadas, acreditam,
esperam e trabalham por uma Igreja cada vez mais aberta, humana e
verdadeiramente missionária.
Estas
pessoas, leigos e clérigos, estão vibrando de alegria e se sentem edificadas
com o testemunho profético do bispo de Roma. Na Igreja Católica, fazem parte
dos movimentos e pastorais que agem segundo o evangelho de Jesus. Nos
Seminários e Casas de formação, os seminaristas clericalistas não se
identificam com o papa porque desejam o poder, querem ser padres-autoridades,
não padres-missionários. Apesar de ainda não serem padres nem bispos, estes
seminaristas possuem hábitos parecidos com muitos daqueles: comportam-se como
se fossem homens do poder. Nas comunidades, se impõem sobre os católicos mais
ingênuos, que facilmente se submetem.
Por
outro lado, há os seminaristas mais identificados com a humildade e a simplicidade
do povo, que se deixam formar pelos gestos e palavras dos pobres. Estes
seminaristas estão muito contentes com o papa Francisco. O testemunho deste é
estímulo para a caminhada na formação rumo ao ministério ordenado. No mundo
secular, há inúmeras pessoas que mesmo não frequentando os templos religiosos,
mesmo não sendo católicas, estão entusiasmadas com o papa, na esperança de que
ele reforme a Igreja, sepultando de vez a cristandade que ainda insiste em
sobreviver em alguns de seus segmentos.
- O que escuta?
Os
discursos, as homilias e os gestos do papa Francisco não reforçam o
clericalismo que dominou a Igreja nas décadas que o precedeu e é isto que deixa
seus opositores inconformados. O papa fala de misericórdia, perdão, partilha,
solidariedade, acolhida, mansidão, hospitalidade, justiça, abertura,
fraternidade, liberdade, fé, colegialidade, responsabilidade, consciência,
evangelho, Reino de Deus etc.
Estas
e tantas outras palavras que traduzem a mensagem de libertação anunciada por
Jesus de Nazaré marcam o magistério do atual bispo de Roma. Corajosamente, tem
denunciado as injustiças que acontecem no mundo. Tem denunciado também a
incoerência da Igreja e a corrupção que insiste em permanecer em seu seio. Desse
modo, tem agido na direção da reforma da Igreja, apesar das resistências que
tem encontrado. Reforma que acontece lentamente, dentro dos limites impostos
pelas circunstâncias e forças operantes.
Os
que esperavam um papa no estilo de João Paulo II e Bento XVI se frustraram. O
papa Francisco é genuinamente latino-americano e fiel às suas origens. Formado
nas escolas dos pobres e dos jesuítas, permanece inabalável, convicto de sua
missão. Sua firmeza e fidelidade à voz daquele que o chamou são admiráveis. Seu
testemunho edifica a Igreja dos pobres e a promove na alegria do serviço
apostólico.
Aos
poucos, o evangelho de Jesus está reencontrando o seu devido lugar na Igreja: o
centro da vida eclesial. As pessoas agora estão experimentando o anúncio da Boa
Notícia do Reino de Deus. Nos dois papados anteriores, o evangelho era
proclamado porque fazia parte do ritual das celebrações, mas não tinha a devida
importância. Dava-se mais importância à moral sexual da Igreja, marcada pela
condenação daquelas pessoas que não cumpriam a lei. Hoje, os católicos estão
começando a compreender o SIM de Maria, mãe de Jesus, pois durante décadas
escutaram o NÃO das proibições e condenações. Atualmente, aprende-se a ser um
bom cristão porque não basta ser um bom católico.
Em
nenhum momento o papa Francisco vangloria-se do ofício que exerce. Está
consciente de que é, em primeiro lugar, o bispo de Roma, chamado a confirmar os
irmãos e irmãs na fé. Não tem se cansado de chamar a atenção de cardeais,
bispos e padres para a missão, para serem, de fato, missionários da palavra de
Deus, e não autoridades que se utilizam do poder para explorar o povo de Deus.
O
papa usa de expressões fortes e diretas. Quando necessário, se utiliza da
necessária intervenção, demitindo e afastando bispos e padres que provocam
escândalos. Na América Latina, um dos casos mais recentes foi o de dom Rogelio
Livieres Plano, bispo do Opus Dei, afastado da diocese de Ciudad del Este, no
Paraguai, acusado de proteger um padre acusado de pedofilia e pela falta de
transparência no uso de dinheiro em sua diocese (possível desvio de dinheiro).
Os
fracos e pecadores tem escutado uma palavra de conforto e de esperança. O bispo
de Roma tem ido ao encontro dos sem vez e sem voz. Em Roma, acolhe e escuta
gente de toda parte do mundo. Humilde, despojado e simpático, tem surpreendido
a todos. Não se utiliza de um linguajar teologicamente complexo, como fazia seu
predecessor ainda vivo. Não cansa as pessoas com abstrações, mas fala com
simplicidade da realidade da vida. Sabe traduzir o evangelho e sua palavra
chega ao coração dos aflitos.
Não
tem medo de falar abertamente com quem quer que seja a respeito dos pecados da
Igreja e dos temas considerados tabus pelos seus predecessores. Promove a
abertura para o diálogo e sabe escutar o que o outro tem a dizer. Seus opositores
ficam sem saber o que dizer, pois não encontram incoerência em suas palavras. A
relação destes com o bispo de Roma é meramente diplomática e há certo respeito
porque se trata do Sumo Pontífice, ofício bem explicitado pelo direito
canônico; ofício que precisa ser rigorosamente revisto, considerando algumas
contradições com o evangelho de Jesus. Com seus gestos e palavras esta revisão
da missão pontifícia já está em curso.
- Onde escuta?
Qual
o lugar teológico e existencial da atuação da Igreja? Considerando a verdade
eclesiológica de que a Igreja nasceu para evangelizar, esta evangelização
acontece no mundo. Isto parece óbvio, mas na verdade, durante séculos a Igreja
fugiu do mundo. Os que almejam a ressurreição da cristandade defendem o retorno
de uma Igreja que se refugia noutro mundo, no das abstrações conceituais da fé,
da esperança e da caridade.
Neste
modelo ultrapassado de Igreja, estas três virtudes se encerram na mera
afetividade, no campo das emoções. O estudo dos discursos e práticas religiosas
dos que desejam a cristandade se alinham com a dimensão puramente emocional da
fé, da esperança e da caridade. A realidade do mundo é excluída. Para os cristãos
da cristandade, o mundo pertence ao maligno e a salvação se refere às almas.
Segundo
eles, Jesus veio salvar as almas. Portanto, tudo o que é ligado ao corpo é
pecaminoso, digno de condenação. No Brasil, basta escutar os padres Marcelo
Rossi, Fábio de Melo, Reginaldo Manzotti, Mons. Jonas Abib e Comunidade Canção
Nova, entre outros. Estes clérigos e comunidades vivem uma espiritualidade sem
evangelho, pautada na fuga do mundo.
O
onde aponta, necessariamente, para o
lugar que deve ocupar a Igreja no mundo. A pregação do papa Francisco ensina
que a Igreja deve ser a advogada dos pobres, promotora da verdade e da
liberdade, testemunha da justiça do Reino de Deus (cf. Documento de Aparecida).
Precisa reencontrar o seu lugar. Na sua experiência primitiva, encontrava-se na
periferia do império romano, sendo perseguida pelos inimigos da cruz de Cristo.
Durante
todo o período medieval, ocupou o centro das cidades, com seus templos,
mosteiros, conventos e instituições poderosas. Atualmente, o bispo de Roma lança
o desafio do evangelho: voltar às origens. Este retorno às origens passa,
necessariamente, pela experiência da pobreza, do desapego, portanto, da
centralidade de evangelho. Neste sentido, os clérigos precisam fazer o que
prometem nas ordenações diaconal, presbiteral e episcopal: serem, de fato,
servidores do evangelho.
Isto
somente é possível quando a Igreja assumir, afetiva e efetivamente, a pobreza
evangélica. A partir daí, os pobres se identificarão com ela. Enquanto isto não
acontecer, tudo não passará de discurso, de palavras jogadas ao evento. A
proclamação do evangelho continuará não surtindo o efeito necessário porque tal
proclamação está intimamente ligada ao testemunho dos pregadores.
Ninguém
acredita em um pregador incoerente, e o ditado que se tornou popular que diz:
“Faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”, não produz efeito em uma
comunidade genuinamente cristã. Trata-se de um ditado antievangélico. O
evangelho nos ensina que a coerência entre o falar e o agir precisa ser buscada
e mantida. Quando impera a incoerência, reina o contratestemunho, que destrói a
comunidade.
É
inadiável esta necessidade que interpela a Igreja: colocar-se do lado dos
oprimidos numa clara oposição aqueles que os oprimem. Todo cristão fiel ao
evangelho é chamado a atender a esta necessidade. No cotidiano da vida,
opondo-se à mentira e a toda forma de exploração. Na hierarquia eclesiástica,
aderindo-se à fraternidade e ao espírito de serviço. O povo clama por
autênticos pastores, de mulheres e homens que sejam humildes servidores. As
pessoas estão, progressivamente, tomando consciência de seu lugar na Igreja e
no mundo, e isto as torna amadurecidas.
Não
cabe mais na Igreja o tratamento imaturo e infantil que ainda persiste em
relação aos leigos. Para que estes assumam a sua missão no mundo e na Igreja é
necessário que sejam respeitados, formados e tratados como pessoas adultas na
fé. Não há mais lugar para o infantilismo e clericalismo. O fato de bispos e
padres terem formação teológica não os faz mais santos e mais sábios que os
leigos. Para uma efetiva evangelização, todo espírito de superioridade precisa
ser erradicado, dando lugar à fraternidade.
Os
leigos não são servidores dos clérigos, mas precisa ocorrer, efetivamente, o
contrário. O serviço do povo de Deus é a condição fundamental para o exercício
dos ministérios na Igreja. Quem se recusa ao serviço, não deve assumir nenhuma
espécie de ministério, pois se o fizer, será causa de escândalo para a
comunidade. E todo escândalo precisa ser evitado, para o bem de todo o povo de
Deus. O lugar da Igreja é no meio do povo, servindo-o com alegria, generosidade,
verdade e liberdade.
Conclusão
A salvação da
Igreja não é a salvação da instituição religiosa. Jesus não estava preocupado
com a salvação do Judaísmo. O projeto divino contempla a salvação dos seres
humanos e de toda a criação, não de instituições criadas pelos homens. Apesar
de necessárias, as instituições podem e devem mudar, e quando não se
aperfeiçoam no decorrer do tempo, em sintonia com a evolução de todas as
coisas, correm o risco de desaparecerem.
O
homem não cria coisas eternas, que ultrapassam o tempo e o espaço. Toda criação
humana é semelhante ao homem: nasce, cresce, se desenvolve e morre. Todos
precisamos nos reconciliar com esta realidade. Esta é imperativa e,
consequentemente, inevitável. O possível desaparecimento das instituições
religiosas não acarreta o desaparecimento do evangelho porque este não é
religioso nem institui religião.
Partindo desta realidade necessariamente mutante, os
cristãos precisam escutar os apelos do Espírito presente no mundo. Este
Espírito renova todas as coisas na liberdade e para a liberdade. Somente nele
os cristãos gozam da liberdade dos filhos e filhas de Deus. Como isto acontece
no cotidiano da vida? Não acontece nos êxtases nem nas fugas do mundo, mas na
praticidade humilde e despojada dos gestos humanos, realizados no amor. O
Espírito conduz, necessariamente, à ação. Onde não há ação não há o Espírito.
Este incomoda, desperta, liberta, coloca o peregrino nas estradas da vida,
acompanha-o com sua luz e sua força.
Conduzidos
por este Espírito, os cristãos não se acomodam nem se conformam ao mundo, mas
ultrapassam a si mesmos na direção do outro. No encontro com este outro
acontece a fraternidade, dom da graça divina, doada por meio do Espírito. Evitar
o outro e querer ser fraterno é uma gravíssima contradição. Não há cristianismo
possível sem o outro porque nele Deus revela a sua bondade e misericórdia. Não
há outra forma possível de se amar a Deus senão amando o próximo.
Na prática religiosa de nossas comunidades, geralmente,
os pobres e as pessoas consideradas “pecadores públicas” são excluídas. Os
pastores dão mais atenção às pessoas de “boa aparência” e de condição
financeira elevada. Insiste-se na acolhida dos ricos em detrimento dos pobres. Os
denominados “católicos praticantes” se sentem mais santos do que os demais
seres humanos, principalmente em relação aos que não frequentam o culto e/ou os
que não possuem nenhuma prática religiosa. Por isso, habituaram-se a julgar e
condenar os estranhos, os afastados, os “relaxados” e todos aqueles que se
encontram em situação irregular em relação às leis da Igreja.
Por
que esta hipocrisia persiste, mesmo o evangelho dizendo que precisa acontecer
justamente o contrário? A resposta é simples: persiste porque estes “católicos
praticantes” procuram cumprir a lei, mas não o evangelho. Este não lhes
interessa, e não lhes interessa porque é exigente e radical. O evangelho ensina
que não há meio termo. Não se admite o amor incompleto às pessoas, ou seja, não
se ama mais ou menos. Quem ama permanece com Jesus, unindo-se ao Pai no
Espírito. Quem não ama, por mais religioso que seja, não permanece com Jesus e
está excluído do Reino de Deus por livre e espontânea vontade. O amor a Deus na
pessoa do próximo é a condição essencial para participação no Reino de Deus.
Todas
as práticas religiosas podem ser dispensadas, exceto o amor, pois é
imprescindível. Jamais haverá renovação do cristianismo se cada cristão não se
entregar, incondicionalmente, ao amor. Portanto, o que está em jogo no cenário
eclesial atual não é a salvação da Igreja institucional, mas o anúncio do
evangelho de Jesus, e este anúncio exige a conversão de nossa vida. Sem
colocar-se no caminho de Jesus o cristão não anuncia absolutamente nada. Sem
seguimento de Jesus não há anúncio porque este acontece no caminho de Jesus.
Caso
esta realidade necessária não seja compreendida e devidamente assimilada com a
vida, a Igreja continuará remando nas águas do mar da vida, mas sem chegar a
lugar nenhum. O Espírito está trabalhando, diuturna e discretamente, na vida da
Igreja e do mundo. É chegada a hora de cada cristão renunciar a seus interesses
pessoais e corporativistas para acolher a presença amorosa e transformadora de
Deus por meio de seu Espírito, a fim de que o Reino de Deus aconteça.
Deus
nos envia os profetas e estes proclamam novos tempos. Por que não os escutamos?
Até quando continuaremos dando preferência ao jugo da escravidão? O que nos
impede de sermos livres? “É para a
liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1). A Igreja precisa de cristãos
livres, pois somente na liberdade podem colaborar com a reforma da Igreja-povo
de Deus, assembleia dos chamados à participação na glória divina. Quando as
pessoas não buscam ser livres, toda aspiração por conversão e reformas se
frustra. A transformação acontece quando ousamos experimentar o novo que implica
riscos. Quem se deixa controlar pelo medo perde a feliz oportunidade da
conversão.
Tiago de França