quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A linguagem desconcertante do Papa Francisco

         
            Virou notícia em muitos lugares do mundo a maneira como o papa Francisco fala às pessoas. Recentemente, foi vítima de algumas interpretações equivocadas, por parte de jornalistas e gente que se declara estudiosa. Com este breve artigo não queremos defender nem acusar o papa, Bispo de Roma, pois ele não precisa disso. Queremos aproveitar a oportunidade para aprofundar um tema importante para a evangelização cristã: o desafio da linguagem.  

Certamente, o papa deve refletir bem, como um bom jesuíta que é, antes de fazer declarações em público. É notória a sua simplicidade linguística. Quando fala é compreendido por todos: eis o segredo da boa comunicação. Após os pontificados do polonês João Paulo II e do alemão Bento XVI, marcados pela erudição teológica tradicional, aparece um argentino que fala como um bom latino-americano, marcado pela herança do Vaticano II e pelas conferências episcopais latino-americanas, especialmente a de Aparecida, da qual participou com dedicação.

            No processo de evangelização, a linguagem deve ser simples e acessível. Evangelizar é anunciar o evangelho de Jesus de Nazaré, o Messias, com palavras e obras. Estas constituem o testemunho da própria vida. Partindo desse pressuposto, entende-se que o anúncio exclui as doutrinas meramente humanas, dando total espaço ao que consideramos o núcleo fundamental do autêntico processo de evangelização cristã: a mensagem de Jesus contida no evangelho.  

Partilhar com as pessoas a genuína tradição evangélica: eis a missão da Igreja. Mantendo-se fiel a esta missão, edifica-se neste mundo o Reino de Deus. Evangeliza-se em função deste Reino. Fora disso, somente pode existir proselitismo, visando o crescimento da Igreja no mundo. Em nenhum momento encontramos Jesus pedindo ou recomendando a seus discípulos que conquistem toda a humanidade para a fundação de uma religião que deve dominar a todos. Infelizmente, há quem pense assim, mas sem nenhuma legitimação nas palavras e na prática de Jesus, o Cristo.

            Há quem pense que o anúncio somente é eficaz quando feito a partir de um discurso profundamente teológico, elaborado sistematicamente. É verdade que o profundamente teológico é muito bem-vindo e necessário, mas quando não visa ocultar o essencial. Neste sentido, o discurso teológico tradicional, alicerçado mais na doutrina eclesiástica do que na tradição evangélica, já não encontra adesão no mundo atual.  

Em todas as Igrejas cristãs, é perceptível que as pessoas já não escutam os longos discursos e as longas pregações que, geralmente, falam de tudo, exceto do evangelho de Jesus. As pessoas tem sede da verdade da palavra de Deus e esperam compreendê-la e assimilá-la. Elas não desejam ser julgadas nem condenadas por meio de discursos demasiadamente severos e impiedosos, oriundos de pessoas desencarnadas da realidade, mas desejam se encontrar com Jesus na partilha fraterna de seu testemunho libertador.

            Quando existe a proclamação deste testemunho libertador e cativante, as pessoas param, escutam e se interessam. Isto ocorre porque o evangelho de Jesus, escrito há praticamente dois milênios, constitui uma mensagem sempre atual, capaz de chegar ao coração das pessoas, transformando-as interiormente. Tocadas pela mensagem de Jesus, o discipulado torna-se realidade e a semente do Reino germina e cresce, frutificando na história.

Identificadas com a mensagem de Jesus, as pessoas descobrem o sentido da vida e da verdadeira felicidade e se colocam nas fileiras dos que sobem nos telhados para proclamar esta Boa Notícia ao mundo. Este deve ser o convencimento a ser acolhido na Igreja atual. Sem esta abertura à construção do que passou a se chamar Nova Evangelização, o culto cristão em nossas Igrejas continuará se transformando numa repetição exaustiva de ideias sem nenhuma repercussão na realidade da vida do povo de Deus.  

            A mensagem de Jesus é um escândalo para o mundo. Este tende a julgar, condenar e excluir as pessoas. Há uma cultura da eliminação dos frágeis e dos pecadores. O sistema capitalista mata impiedosamente. A ideologia da riqueza e a cultura do descartável afetam gravemente a vida humana e a de toda a criação. Atualizar a mensagem de Jesus é caminhar na contramão deste mundo cruel e desumano.  

As forças do anti-Reino são fortes e assassinas, e os discípulos de Jesus de Nazaré precisam enfrentá-las. A mensagem evangélica inaugura uma humanidade nova, construída sob o sinal do amor, da fé e da esperança. A Igreja precisa assumir, com coragem e ousadia, a construção desta nova humanidade, sendo instrumento de salvação no meio do mundo. Inevitavelmente, trata-se de uma missão arriscada, que exige a participação de pessoas generosas, corajosas e audaciosas.

            O papa Francisco tem se mostrado bastante consciente deste compromisso evangelizador. Seus gestos e palavras explicitam uma mensagem de justiça, unidade e paz. Apesar dos limites do ofício, tem se esforçado para indicar o caminho da necessária abertura ao mundo. Esta abertura sempre foi um desafio para a Igreja, que tem uma tendência ao fechamento e à desconfiança.  

Por outro lado, a Igreja precisa ter cuidado com as ideologias humanas, que tendem ao enfraquecimento e erradicação da mensagem evangélica. Esta não tem aceitação e acolhida por aqueles que estão dominados pelas ideologias que legitimam os poderes opressores do mundo. Não se trata de meras palavras ou discursos sobre o legítimo conteúdo do evangelho, mas do anúncio que transforma e cria um mundo novo.

            Alguns cardeais, bispos, padres e leigos estão insatisfeitos com o esforço do papa Francisco em abrir as portas e janelas para a entrada de novos ventos na Igreja. Trata-se de uma ala eclesial denominada conservadora. Costumam ser aqueles que se apegam à instituição eclesiástica em detrimento do evangelho. Desejam salvar a religião. É verdade que esta é necessária. As religiões sempre fizeram parte da vida humana e possuem o seu lugar na história. 

O grande perigo, no caso da religião cristã, é o apego às estruturas institucionais. Quando há apego às estruturas, o ser humano fica em segundo plano. E Jesus ensinou justamente o oposto: as pessoas são filhas de Deus, sua imagem e semelhança; incomparavelmente mais importantes que qualquer estrutura e/ou sistema de poder. Neste sentido, o papa tem demonstrado preocupação com o cuidado que se deve ter com as pessoas e com toda a criação. Isto é profundamente evangélico.

            O papa atual aponta para uma urgente reforma da Igreja. Esta não se encerra na sua pessoa, ou seja, a Igreja não é o papa, mas povo de Deus em marcha na história. Um povo é constituído por pessoas que vivem em contextos e culturas diferentes. Isto significa que os membros do povo de Deus precisam participar da reforma da Igreja. A história mostra que as reformas sempre foram feitas pelos clérigos distantes do povo, como se a Igreja fosse o clero. Este faz parte do povo de Deus. Não é dono da Igreja nem pode comportar-se como corpo separado do povo. Era assim antes do Concílio Vaticano II e é assim que muita gente deseja que continuasse sendo.  

O espírito de comunhão e participação evidenciados nos documentos do Vaticano II precisa se transformar em realidade na Igreja. Somente assim a reforma será possível. Praticamente, cinquenta anos após o Vaticano II, a Igreja está tendo a oportunidade de ter um papa que se apresenta como um operário da vinha do Senhor disposto a contribuir com a conversão da Igreja ao evangelho. Isto não costuma se repetir muitas vezes na história. Sem sombras de dúvidas, é um apelo do Espírito à Igreja. Como todo apelo que surge, terá sua duração e passará. O que ficará da passagem de Francisco na Igreja?... O passado, em muitos aspectos, nos angustia. O presente desperta esperança. O futuro somente Deus sabe.

 Tiago de França 

sábado, 24 de janeiro de 2015

Colocar-se no caminho de Jesus

“O tempo já se completou e o reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no evangelho!” (Mc 1, 15)

            O tema do seguimento de Jesus é de fundamental importância para compreendermos a realidade do reino de Deus. Este reino não existe sem o necessário seguimento. Aqui já podemos afirmar, categoricamente: Quem quiser participar do reino de Deus precisa, necessariamente, seguir a Jesus de Nazaré. Esta afirmação parece tranquila para todos os cristãos. Nela parece não existir nenhuma novidade, mas se pararmos para observar bem o conjunto de nossas Igrejas cristãs, logo veremos que algo está fora do lugar. Está faltando esta participação no reino de Deus porque este já está acontecendo na humanidade.

            E por que está faltando esta participação? Porque inúmeros cristãos confundem o seguimento de Jesus com suas práticas religiosas. Estas certamente tem o seu lugar na vida dos discípulos de Jesus, mas não consistem, necessariamente, no seguimento a Ele. Basta olharmos para Jesus, que se encontra na Galileia, pregando o evangelho de Deus. O que é este evangelho? É o anúncio do reino de Deus. Então, os discípulos de Jesus precisam fazer como ele: anunciar o reino de Deus. Como isto acontece hoje?  

Em primeiro lugar, é preciso afirmar que este anúncio do reino é a vocação primordial de quem segue Jesus. Ele não pediu para fazermos outras coisas. Nossas práticas religiosas não tem origem em Jesus nem possuem sua justificativa nele, mas podem nos ajudar a segui-lo no anúncio do reino do Pai. Ocorre também que tais práticas religiosas podem contribuir com o comodismo das pessoas. Estas podem abandonar o caminho de Jesus, isolando-se em tais práticas. É uma tentação que sempre perseguiu os cristãos. Não adianta o católico pensar que recebendo a Eucaristia, confessando seus pecados, “pagando” o dízimo, participando do culto e fazendo pequenos gestos de caridade que já esteja justificado diante de Deus. Estas atitudes certamente possuem o seu valor e o seu lugar na vida cristã, mas, por si mesmas, não constituem o discípulo missionário de Jesus.

“Convertei-vos e crede no evangelho!”: este é o convite de Jesus, feito na liberdade e para a liberdade. A realidade da conversão (mudança de vida) ultrapassa, infinitamente, as práticas religiosas. Conversão é adesão a Jesus e a seu projeto, o reino do Pai. É encontrar-se com ele na vida do outro. É amá-lo amando o outro. Sem esta conversão não há como crer no evangelho. Há muitas pessoas que pensam que acreditam no evangelho sem se converterem. Vivem uma ilusão.

Há outros que pensam que a conversão é a adesão à perfeição. Isto é outro equívoco. Perfeito é o Pai, o Filho e o Espírito; os humanos são pecadores chamados a caminhar com Jesus. Aceitar Jesus como Salvador é aproximar-se dele, caminhar com Ele, perseverando em seu caminho. Quando isto ocorre estamos anunciando o reino do Pai e convertendo-nos a Ele. “Aceitei Jesus e agora sou um santo!”, afirmam muitas pessoas que, na verdade, somente conseguiram mudar de religião ou de denominação religiosa. Aceitar Jesus não é mudar de religião ou de crença. Aceitar Jesus é aceitar o desafio de colocar-se em seu caminho e nele perseverar. Sem este seguimento há somente aparência de aceitação. Há, na verdade, negação de Jesus. 
  
Mais do que em outras épocas da história do cristianismo, precisamos recuperar o lugar do evangelho de Jesus. É este evangelho que importa. É ele que nos converte e salva. Toda nossa vida deve está direcionada e alicerçada no evangelho. Somente este é capaz de criar pessoas novas e, consequentemente, uma humanidade nova. Para isso, é preciso renunciar às guerras e aos conflitos por causa de religião. Esta não salva ninguém. Para aquele que crê, somente Jesus salva e esta salvação acontece no seguimento radical a ele. A radicalidade não significa sentir-se superior aos outros, levando uma vida farisaica, separada do mundo. Jesus não pediu isso. Ele já denunciava essa hipocrisia nos mestres e doutores da lei de seu tempo.

Por fim, eis o motivo pelo qual cada cristão precisa voltar-se para Deus e seu evangelho: Somente o evangelho é capaz de renovar a face da terra, e os cristãos, chamados a serem sal e luz do mundo, constituem a presença amorosa de Deus, que, diuturnamente, trabalha pela libertação da humanidade inteira. Ser sal e luz, vencendo as trevas deste mundo: eis nossa vocação. Esta vocação somente se realiza, afetiva e efetivamente, se nos colocarmos no caminho de Jesus e nele perseverarmos, convertendo-nos e crendo no evangelho. O Espírito, fonte de todo bem e de toda graça, está aí, disposto a nos ajudar nesta árdua e aventurosa missão. Quem se deixar interpelar por Ele conhecerá a beleza e a alegria da companhia de Jesus. É um risco que vale a pena experimentar.


Tiago de França

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie

     
            De uns tempos pra cá, o terrorismo tem se manifestado de forma cada vez mais cruel e destruidora. Recentemente, foi a vez de Paris, na França: um atentado ao jornal Charlie Hebdo, que vitimou doze pessoas. A Al-Qaeda do Iêmen assumiu a responsabilidade. Em um vídeo, a organização terrorista afirma que o atentado é uma resposta à publicação de diversas charges do profeta Maomé, por parte do jornal francês. Nasser bin Ali al-Ansi, braço iemenita da Al-Qaeda, ao se referir ao atentado, denominou-o “como vingança pelo mensageiro de Deus”. Dois irmãos agiram em nome da organização terrorista, Cherif e Said Kouachi. A Europa se encontra em estado de alerta e pânico. 2015 se inicia com derramamento de muito sangue na França e no Oriente, principalmente nos países atingidos pela sede de vingança dos terroristas.

            Imediatamente após o atentado, inúmeros franceses, dentro e fora do país, iniciaram uma espécie de campanha favorável ao jornal atingido, campanha que ganhou o nome de “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie). A mídia neoliberal em todo o mundo também adotou a campanha. Parte-se da ideia de que o ataque terrorista, além de ceifar a vida de doze integrantes do jornal, atingiu, sobretudo, a liberdade de expressão. Isto é o que se tem, incansavelmente, repetido nos últimos dias. A mídia oficial francesa se uniu aos sobreviventes do Charlie Hebdo e publicou uma nova edição do jornal, com a figura do profeta Maomé chorando, com as expressões “Tout est pardonné” (Tudo está perdoado) e “Je suis Charlie”. Agora, toda a Europa declarou uma verdadeira caça aos terroristas, reforçando a segurança nas ruas, instituições e fronteiras, prendendo e procurando suspeitos.

            O que entender por liberdade de expressão e liberdade de imprensa? Quando não alicerçada no respeito, na responsabilidade e na solidariedade, a liberdade se transforma em libertinagem. Ser livre não é fazer e dizer tudo o que se quer. Isto é falta de responsabilidade. No estado democrático de direito, a diversidade da coletividade precisa ser assegurada e respeitada. Há uma tentação que persegue tanto a religião quanto aqueles que pregam a liberdade de expressão e de imprensa: a imposição de suas respectivas ideologias.

Nas religiões, os extremistas tendem a impor suas crenças e ideologias. A imprensa procura fazer a mesma coisa. As capas do jornal francês, que se referem à religião são vergonhosamente ridículas e, portanto, ofensivas, pois fere o direito à liberdade religiosa. No estado democrático de direito, as pessoas devem ter assegurado o direito de professar a sua fé, participando da religião que quiser. Em uma das capas do jornal francês, referindo-se ao cristianismo, aparece uma charge da Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), num coito anal a três. Isto é liberdade de expressão? Isto é forma respeitosa de crítica à religião? Na verdade, trata-se de uma irresponsável ridicularização da fé religiosa, que deveria ser punida na forma da lei.

Sabemos bem que no Islamismo, muito mais que em outras religiões, há extremistas que não toleram provocações. Estes interpretam a lei islâmica ao pé da letra, levando ao extremo a defesa da religião. Desse modo, era previsível o ataque ao jornal Charlie Hebdo, pois as charges nas quais aparece o profeta Maomé são desrespeitosas e provocativas. É verdade que os extremistas se utilizam do nome do profeta Maomé e do próprio Alá (Deus) para legitimar seus ataques, mas é verdade também que eles escolhem os alvos de acordo com as provocações que recebem. O ataque em si é condenável, certamente; mas é também condenável a maneira como o jornal se dirige às religiões.

Nenhum direito fundamental é absoluto. Neste sentido, a liberdade de expressão e de imprensa precisa ser assegurada dentro dos limites da legalidade. O que acontece com muitos europeus é isto: assim como os extremistas islâmicos deturpam o autêntico sentido da religião e da fé para atacar aqueles que julgam seus inimigos, a imprensa cai no mesmo pecado: se utiliza da liberdade de expressão para atacar a religião. Desse modo, ambos cometem um gravíssimo crime contra a verdadeira democracia.

No Brasil, situação semelhante acontece com a revista Veja. Esta não respeita os limites da legalidade quando quer caluniar e difamar pessoas, instituições e governos. Juntamente com outros meios de comunicação, esta revista deturpa os fatos e informações, escandalosa e intencionalmente. Na última corrida presidencial, deu provas de sua capacidade de manipulação da realidade. A ausência de regulação da mídia tende a tornar a situação cada vez pior. A demonização dos movimentos sociais e dos governos de esquerda da América Latina é a bandeira levantada pela Veja. Mantida e dirigida por gente da classe média, tem prestado um desserviço ao país, causando confusão e ferindo a autêntica liberdade de expressão, direito constitucionalmente assegurado, entre outros.

Chefes de estado e de governo europeus planejam se unir contra o terrorismo, com medidas de segurança possíveis. A iniciativa é louvável, mas, por si só, não resolve o problema. A Europa precisa rever a maneira como acolhem e tratam os muçulmanos e judeus que chegam para viver em seus países. Caso se estabeleça uma cultura antissemita e antimuçulmana, certamente, a situação vai piorar. Os excessos cometidos pelos agentes responsáveis pela segurança devem ser evitados. Judaísmo e Islamismo não são os inimigos da Europa, mas os extremistas que se utilizam da religião para a realização de atentados que visam semear e reforçar a cultura da eliminação das diferenças. Esta cultura de eliminação é que precisa ser combatida com ousadia e veemência; cultura que tem tomado o mundo inteiro.

Por fim, não sou Charlie porque, como seguidor de Jesus de Nazaré, sou a favor da cultura do respeito, da tolerância, da promoção da dignidade humana, do reconhecimento e aceitação da diversidade cultural e religiosa e da justiça que promove a paz. Por isso, em comunhão com o evangelho de Jesus, Boa Notícia da liberdade e da paz, sou contra a mídia neoliberal que semeia o ódio e a intolerância cultural e religiosa. Solidarizo-me com os familiares das vítimas do jornal Charlie Hebdo e coloco-me radicalmente contra a ridicularização das religiões efetivada por seus integrantes. Não há liberdade de expressão e de imprensa sem respeito às culturas e às religiões. Criticar é necessário, mas ridicularizar não!


Tiago de França

domingo, 18 de janeiro de 2015

Conhecer e permanecer com Jesus

“O que estais procurando?” (Jo 1, 38)

Após alguns dias de silêncio, eis que retomamos nossas meditações bíblicas com um belíssimo trecho do evangelho segundo João, no qual o Batista, estando com dois de seus discípulos, vendo Jesus passar, diz: “Eis o Cordeiro de Deus!” O evangelista diz que, “ouvindo essas palavras, os dois discípulos seguiram Jesus”. Será que aqueles dois discípulos compreenderam a saudação de João Batista? O que chamou a atenção deles para seguirem a Jesus? Certamente, estavam desejosos de saber quem era o Messias e, assim, resolveram se aproximar, seguindo-o de perto.

Há quem queira conhecer Jesus. Diversos são os meios possíveis. Muitos procuram os estudos cristológicos, para conhecer o resultado das pesquisas dos estudiosos. Dependendo do tipo de cristologia, de fato, pode-se conhecer muita coisa. A pesquisa teológica é muito importante e não pode ser descartada, mas se não levar ao encontro com Jesus, tudo fica na esfera cognitiva, no âmbito do mero saber. Não há seguimento de Jesus sem o feliz e fecundo encontro com ele.

O próprio conhecimento teológico desvinculado da experiência do encontro é enfadonho, inútil; somente servindo ao desenvolvimento científico da pesquisa, visando o prestígio de seus autores. Neste sentido, há teólogos crentes e teólogos ateus! Estes últimos não passam de pesquisadores, encerrados em seus gabinetes confortáveis. Conhecem Jesus na teologia e o desconhecem na vida.

Quando Jesus percebeu que os dois discípulos o seguiam, resolveu fazer uma pergunta inquietante: “O que estais procurando?” Em outras palavras, o que vocês então querendo saber, conhecer, viver? Eles responderam com outra pergunta: “Rabi (que quer dizer mestre), onde moras?” Aqui precisamos dar uma pausa para pensarmos nesta pergunta de Jesus.

O que estamos procurando na vida? O que os cristãos estão procurando? Nossas procuras falam de nossos sonhos, de nossos ideais, de nossos valores. Hoje, geralmente as pessoas procuram o sucesso, o prestígio, o poder, o dinheiro, a vaidade. Posteriormente, caem num vazio existencial. As que não colocam um fim na própria vida, morrem frustradas e infelizes. É triste, mas é a realidade. Basta olharmos para as pessoas e logo veremos o desgaste estampado em seus corpos, devido a suas procuras superficiais e fúteis.

Jesus está nos fazendo esta pergunta. Para segui-lo precisamos respondê-la com toda a sinceridade e verdade do nosso coração. Onde está o nosso coração? Que rumo tomamos para nossas vidas? O tempo que passou não volta mais. Para os desorientados e desde já frustrados, ainda há tempo. Tempo para se encontrar com Jesus e conhecer a sua morada, tempo para permanecer com ele e encontrar o sentido da vida.  

Eis a resposta de Jesus para a pergunta dos dois discípulos: “Vinde ver”. Ninguém pode dizer com exatidão quem é Jesus. Quem quiser conhecê-lo precisa estar disposto a segui-lo, a conhecer a sua morada neste mundo. Aceitar o seu convite para conhecer a sua morada é um desafio. Trata-se de um movimento humano e espiritual. Exige deslocamento, saída na direção do outro. Quem está preso ao comodismo das próprias seguranças é incapaz de conhecer a morada de Jesus. Quem está dominado pela indiferença também não pode conhecer e seguir Jesus. O seguimento exige abertura e cuidado, despojamento e ousadia.

Por fim, em sintonia com as palavras e gestos de Jesus, queremos dar uma palavra sobre a feliz vocação do profeta Samuel (cf. 1 Samuel 3, 3 – 10.19). Deus o chamou quando criança, enquanto dormia no templo, na companhia do sacerdote Eli. Este o ensinou a responder ao chamado de Deus: “Senhor, fala, que teu servo escuta!” E na atitude de escuta, que é a autêntica atitude do discípulo, “Samuel crescia, e o Senhor estava com ele. E não deixava cair por terra nenhuma de suas palavras”. Os dois discípulos escutaram Jesus e fizeram a experiência de permanecer com ele. Na Bíblia, escutar significa obedecer (ob-audire) e a obediência a Deus é sinal de confiança e de total entrega.

Os cristãos de nossos dias e de todas as denominações religiosas precisam fazer a experiência da permanência com Jesus. Infelizmente, há muitos que se contentam em cultuá-lo. Há belos cultos, mas que não passam disso. Jesus não pediu para ser cultuado, mas conosco nos ensina a adorar o Pai em espírito e verdade, ou seja, a nos abrirmos para aquilo que Deus quer: o amor (ágape) capaz de nos transformar numa presença suave, alegre, fecunda, iluminadora, contagiante e transformadora no mundo. Jesus nos olha com amor e nos diz: Tu és meu irmão, vai, eu te envio! Juntos podemos renovar a face da terra! Outro mundo é possível!


Tiago de França

Obs.: Acompanha nossa meditação, a foto de dois grandes servidores da vinha do Senhor: Pe. José Comblin (In memoriam) e Dom José Maria Pires.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Votos para o Ano de 2015

“Despertar é a única experiência que vale a pena. Abrir bem os olhos, para ver que a infelicidade não vem da realidade, mas dos desejos e das ideias equivocadas. Para ser feliz não é preciso fazer coisa alguma, além de desfazer-se de falsas ideias, das ilusões e fantasias que não nos permitem ver a realidade” (Anthony de Mello, SJ).

Amigos e amigas,

Paz e bem!

            Todo início de ano é tempo oportuno para renovar a esperança e fazer bons propósitos. Geralmente, as pessoas sempre fazem isso, mas imediatamente após as comemorações da passagem de ano, elas se esquecem de tudo e a vida continua do mesmo jeito. O que está por trás disso? O pensamento acima descrito, do jesuíta Anthony de Mello, SJ, que foi um dos grandes mestres espirituais do século passado, revela com profundidade aquilo que desde sempre tem provocado a infelicidade nas pessoas. Há alguns anos tenho tido acesso às obras deste grande jesuíta, falecido em junho de 1987, que tem contribuído significativamente para a ampliação da minha visão de mundo e de Igreja, assim como muito tem me auxiliado em meu processo pessoal de libertação.

            Há nas pessoas uma tendência à acomodação. Acomodam-se à cegueira, à satisfação dos desejos, às ideias equivocadas, às ilusões e fantasias. Todas estas coisas tem produzido no ser humano um longo e doloroso processo de escravidão. O pior de tudo é que todos pensam que assim são felizes. Sentem-se felizes com muito dinheiro no bolso, com o uso da moda, com o brilhantismo e com o sucesso. A ideia corrente é: Se você pode satisfazer os seus desejos, obtendo aquilo que deseja possuir, então você é feliz. Esta é a lei da felicidade que rege a vida da mulher e do homem pós-moderno. Assim sendo, a felicidade está fora da pessoa e esta deve procurá-la. Como está atrelada ao ter, nem todos a alcançam porque no mundo capitalista não há acesso integral e igualitário aos bens que provocam a felicidade que almejam.

            É visível que esta ideia de felicidade, apesar de perseguida por milhões de pessoas em todo o mundo, é falsa e sem futuro. As pessoas morrem sem encontrar a verdadeira felicidade. Na verdade, se encontram com a frustração. Aqui surge uma pergunta interessante: Por que, mesmo sabendo que esta ideia de felicidade é falsa, as pessoas não conseguem se libertar dela? Baseando-se no evangelho de Jesus de Nazaré, o jesuíta Anthony de Mello, propõe o despertar para a realidade. Segundo ele, “despertar é a única experiência que vale a pena”. Isto é verdade porque somente quando desperta é que a pessoa consegue enxergar a realidade. Enxergar é abrir bem os olhos, libertando-se da cegueira. Quem se recusa a ver a realidade, infelizmente jamais conseguirá ser feliz.

            Geralmente, as pessoas pensam que a infelicidade vem da realidade. Afirmam que a vida que levam a tornam infelizes. Isto é mentira. Eis o que provoca a infelicidade: desejos, falsas ideias, ilusões e fantasias. Estas coisas tiram a visão das pessoas e as transformam em objetos submissos às programações estabelecidas pela sociedade. As pessoas passam a fazer parte de uma imensa massa de manobra, escravas de si mesmas e dos outros, deixando de ser pessoas, tornando-se coisas. Assim, são incapazes de pensar por si mesmas e não possuem vontade própria. Fazem aquilo que as programações mandam fazer. Como não tem consciência disso, então não encontram problema nenhum na manipulação operada pelas programações. Para elas, o problema está em não seguir tais programações. Parece algo abstrato, mas não o é. Vamos a um exemplo para vermos como isto está no cotidiano da vida humana.

            Um casal jovem resolve se casar e o casamento dura dez anos. Após muito desgaste, por causa de desentendimentos e discussões, não conseguindo superar a situação, a mulher resolve pedir a separação. Inicialmente, o homem teve que acatar o pedido; mas, posteriormente, deixando-se dominar pelo ciúme e pelo espírito de posse, inferniza a vida de sua ex-mulher, fazendo-a sofrer. Fazendo uso de sua liberdade, a ex-mulher arruma outro companheiro, contraindo com este uma nova união. Insatisfeito com a situação, seu ex-marido a procura, tirando-lhe a vida, gritando: “Já que você não quis ficar comigo, então não vai ficar com nenhum outro homem”. Casos como este se repetem no mundo todo. Onde foi parar o amor que, inicialmente, este homem e esta mulher tinham um pelo outro? Existiu, de fato, amor? O que o levou a agir dessa forma? A análise do caso conduz à seguinte sentença: Nenhum ser humano é essencialmente mal, mas uma vez escravo de seus desejos, falsas ideias, ilusões e fantasias, torna-se capaz de materializar o mal no mundo.

            Não adiantam as prisões, a prisão perpétua, a pena de morte, o aperfeiçoamento das leis e medidas repressivas. Estas coisas não põem um fim na violência que assola a humanidade. Não se pode negar a importância das iniciativas do Estado, das religiões e das demais instituições para a humanização das pessoas, mas para que tais iniciativas tenham êxito é necessário que as pessoas tomem consciência de sua vocação para a liberdade. Esta vocação se realiza quando cada pessoa se torna protagonista da própria história, trilhando o caminho do amor, da liberdade e da justiça. Não há sistema repressivo que dê conta de educar e enquadrar o ser humano porque este é, por natureza, chamado à liberdade. Por mais escrava que seja uma pessoa, há sempre um espaço de conquista da liberdade. Nenhuma forma de opressão é capaz de tirar completamente do ser humano esta aspiração à liberdade.

            Para concluir esta reflexão, convido o/a amigo/a para pensar, com sinceridade e verdade, a seguinte questão: Quais os desejos, as falsas ideias, ilusões e fantasias que afetam minha mente? O honesto enfrentamento desta questão conduzirá à visão da realidade pessoal e social. Quem deseja trilhar o caminho da mudança de vida (conversão) não pode fugir desta questão fundamental. Aquelas pessoas que desejam continuar na mesmice e no tédio, preferem viver imitando os animais, entregando-se aos instintos egoístas, numa vida sem sentido e marcada pela banalização. Os que ousam se desfazer dos desejos, das falsas ideias, ilusões e fantasias ingressam na desafiadora escola da liberdade. Quem assim procede verá que o passado não existe mais, que o futuro também não existe e que a vida acontece no presente. Permanecer acordado significa enxergar a realidade e esta não está no ontem nem no amanhã, mas no aqui e agora.

            Prezado/a, amigo/a, se você ousar atender ao convite que fiz no parágrafo anterior, verá que este ano que se inicia será, incomparavelmente, melhor do que o ano que passou. Sua vida se tornará mais leve e você encontrará a felicidade. Esta está dentro de você, mas apegado às falsas ideias, ilusões e fantasias é incapaz de conhecê-la e senti-la. Se você é cristão, esta felicidade que se encontra dentro de você se chama Deus, que é único capaz de nos tornar capazes de sermos aquilo a que somos chamados: Nele e com Ele somos amor, salvos e felizes eternamente. Atenda ao convite, mergulhe em si mesmo e descubra a felicidade que está em você. Este é o melhor desafio para este ano que se inicia. Tudo o mais virá sem que seja necessário nenhum esforço. Seja feliz!

FELIZ ANO NOVO!

Tiago de França