sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Fraternidade: Igreja e sociedade

     
       Anualmente, durante o tempo quaresmal, a Igreja lança a Campanha da Fraternidade, que neste ano terá como tema: Fraternidade: Igreja e sociedade, e Lema: “Eu vim para servir” (cf. Mc 10, 45). Queremos, neste breve artigo, apresentar algumas considerações sobre esta importante campanha, como contribuição para uma melhor compreensão do seu tema e lema.  

Discorremos a partir de três pontos que julgamos fundamentais, sem a pretensão de esgotarmos a temática, que se mostra muito oportuna para nossos dias: 1) Jesus e a fraternidade; 2) A Igreja como promotora da justiça e da verdade e 3) A relação da Igreja com as mulheres e homens de hoje. Partimos de uma leitura crítica do evangelho de Jesus, da história recente da Igreja, à luz da fé, da realidade do mundo e da atuação de nossas comunidades cristãs.

  1. Jesus e a fraternidade
Uma leitura atenta do evangelho nos mostra que Jesus de Nazaré viveu uma experiência profundamente missionária. Enviado por Deus com a missão de inaugurar seu Reino, cumpriu fielmente esta missão. Seu testemunho foi marcado pelo anúncio deste Reino, que consiste na construção de um novo céu e de uma nova terra, onde reinarão a justiça e a paz. Na sua passagem por este mundo, mostrou-se sensível aos pobres e aos pecadores, amando-os e acolhendo-os, revelando-lhes a misericórdia de Deus. No desenvolvimento posterior de uma leitura da ação amorosa de Jesus, passou-se a ver nele a encarnação do próprio Deus na humanidade.

Jesus proclamou a justiça do Reino de Deus, que supera, infinitamente, a justiça elaborada pelos homens. No Reino anunciado por Jesus, os pobres e marginalizados estão em primeiro lugar, são os prediletos de Deus. Desde a antiga Aliança, com a saída do povo de Deus da casa da escravidão no Egito, Deus tem se mostrado a favor dos oprimidos. Ele fez uma clara e incontestável opção pelos pobres.

Em Jesus de Nazaré esta opção se torna cada vez mais evidente: comendo e bebendo com os pecadores públicos de seu tempo, dar testemunho da misericórdia divina, que alcança a todos, indistintamente. Em suas palavras e gestos, Deus manifesta sua infinita bondade e amor para com os pecadores, libertando-os da marginalização e colocando-os no centro da história da salvação.

Isto é fraternidade: comunidade de mulheres e homens, que vivendo sob a lei do amor fraterno, encontram o sentido e a felicidade da vida. A unidade e a partilha, a solidariedade e o perdão, a cultura do encontro e da amizade, a fé e a esperança, o respeito às diferenças que constituem a diversidade cultural dos povos e nações, e o espírito de mútua colaboração constituem os valores fundamentais da autêntica fraternidade pensada e assumida por Jesus de Nazaré.

Desse modo, nossas comunidades cristãs precisam ser testemunhas vivas do amor fraterno, pois não há fraternidade sem amor. Amar como Jesus amou: eis a desafiadora missão que o evangelho nos propõe. E como Jesus amou? A resposta é simples: amou na liberdade dos filhos e filhas de Deus. Segundo o testemunho dele, só o amor liberta integralmente a humanidade das forças do pecado e da morte.

Com Jesus, aprendemos que viver segundo o espírito de fraternidade corresponde, necessariamente, à acolhida alegre e generosa do outro. Não há fraternidade sem acolhida e com exclusão de pessoas. Nada justifica a exclusão das pessoas. Na lógica do Reino, quanto mais pecadora for a pessoa, mais insistente deve ser o convite para que se converta e ingresse na dinâmica da fraternidade.

Somente nesta dinâmica as pessoas conseguem superar os limites inerentes à condição humana, pois encontram força nos vínculos fraternos que se criam e se fortalecem quando se vive segundo o espírito fraterno. É segundo este espírito que se supera os males que afetam a humanidade de todos os tempos e lugares: o egoísmo, o individualismo, a indiferença, o ódio, o rancor, o preconceito, o racismo, entre outros.

  1. A Igreja como promotora da justiça e da verdade
Nossas Igrejas cristãs são chamadas a serem Casas de fraternidade. É inaceitável que no interior das comunidades seguidoras de Jesus haja exclusão das pessoas. Nenhum pecado justifica qualquer forma de exclusão. Esta é essencialmente antievangélica. Portanto, quem julga, condena e exclui o outro não está agindo conforme o ensinamento de Jesus de Nazaré. O evangelho é um convite permanente para que se pratique o essencial, que é o amor, e este é fundamentalmente inclusivo, jamais exclusivo.

Impulsionados pelo amor, os cristãos são capazes de acolher o novo e o diferente, pois sabem que o Espírito do Senhor age em função da novidade e das diferenças. O Pai e o Filho enviam o Espírito para que se manifeste e se promova neste mundo a diversidade das expressões da cultura e da religiosidade. Somente há autêntica fraternidade nas comunidades que respeitam e promovem a pluralidade de pensamento e modos de ser.

Para promover a fraternidade universal, nossas Igrejas precisam se transformar, efetivamente, em instrumentos da justiça do Reino e da verdade do evangelho. Sem justiça e verdade não há liberdade. Aqui surge a necessidade da profecia em nossas Igrejas. Estas precisam denunciar as forças do anti-Reino que tendem a dominar toda a humanidade: a globalização da indiferença (expressão do papa Francisco), a cultura da eliminação dos fracos e oprimidos, a sede de vingança, a perseguição às “minorias abraâmicas” (expressão de Dom Helder Câmara, bispo e profeta), a exploração capitalista da natureza, a fome que mata milhões em todo o mundo, a intolerância religiosa, entre tantas outras forças que oprimem e matam inúmeras pessoas.

Não se pode silenciar diante dessas injustiças. Nossas Igrejas precisam compreender que o anúncio do evangelho contempla, necessariamente, a denúncia de todas as formas de opressão humana. Neste sentido, o silêncio diante de tais opressões constitui um pecado gravíssimo de omissão.

Promover a justiça e a verdade é colocar-se a serviço da sociedade. Em todo o mundo, nossas Igrejas são chamadas ao serviço dos mais fracos e indefesos, que são aquelas pessoas que não tem vez nem voz: os que não tem casa, trabalho, terra, alimentação, saúde, liberdade, paz; enfim, todas aquelas pessoas feridas em sua dignidade. Há milhões de filhos e filhas de Deus encerrados no desespero, procurando uma saída para os problemas que os afligem.

Há muitos que não dão conta mais de esperar, encontram-se agonizando, sem ter alguém que os socorra. Estas pessoas formam um o grito que clama incansavelmente por justiça e paz. Elas não desejam simplesmente a solução imediata de suas necessidades, mas desejam um outro mundo possível, desejam que cessem as injustiças, desejam o fim da multiplicação de novas vítimas. Elas gritam contra o conforto de poucos, que se sustentam do sangue e do suor da maioria. Estão à beira do caminho, como aquele cego do evangelho, gritando sem cessar: “Jesus, Filho do Deus vivo, tende piedade de mim, que sou um pecador!”

Não há autêntica Igreja de Jesus Cristo se este clamor por justiça, liberdade e paz é ignorado. Ignorar o clamor dos pobres é ignorar o próprio Cristo. As Igrejas cristãs que não procuram servir aos pobres e oprimidos deste mundo permanecem distantes de Jesus de Nazaré. Elas podem até promover belas liturgias, mas Deus não as acolhe nem as escuta. Biblicamente falando, Deus está gritando por justiça na boca dos oprimidos. Estes constituem o sacramento de sua presença no mundo.

Os documentos do magistério dos Bispos na América Latina, desde Medellín até Aparecida, não se cansam de mostrar com clareza e ousadia profética este clamor divino que ecoa sem cessar. Por isso, é preciso renunciar ao preselitismo, às alianças com os poderosos, à covardia, à falsa prudência, ao comodismo, aos conflitos entre as Igrejas, à busca pelo poder, prestígio e riqueza, para, de uma vez por todas, colocar-se na fileira dos excluídos. Nossas Igrejas precisam levantar as bandeiras dos excluídos, a fim de que estes sintam que também são Igreja. Promover a mudança de estruturas é essencial para o surgimento de uma nova humanidade, mais justa e fraterna.

  1. A relação da Igreja com as mulheres e os homens de hoje
Como assinalamos no tópico anterior, a Igreja é chamada a ser um instrumento de salvação da humanidade. Esta afirmação, que resume bem o espírito do Concílio Vaticano II, ocorrido no início da segunda metade do século passado, é sempre repetida no seio da Igreja Católica, pelos membros do clero e pelos leigos mais instruídos. Desde a realização deste importante Concílio, que mudou radicalmente muitas das práticas da Igreja, percebe-se que ainda há, infelizmente, certo medo em relação à evolução da sociedade.

Com certa constância, a Igreja é acusada de permanecer parada no tempo. As análises teológicas de renomados estudiosos como José Comblin, João Batista Libânio, Jon Sobrino, Roger Lenaers, Ivone Gebara, Marcelo Barros e tantos outros/as, mostram que a instituição Igreja, ora avança, ora retrocede. Claro que num curto espaço de um breve artigo não podemos falar com a necessária precisão de detalhes sobre estes avanços e retrocessos.

Para finalizar nossas considerações, queremos chamar a atenção para o momento atual da Igreja Católica, criadora e promotora da Campanha da Fraternidade. A feliz renúncia do papa Bento XVI e a eleição do papa Francisco é, sem sombra de dúvidas, um sinal do Espírito do Senhor neste momento da história da Igreja. Assim como escutamos, extasiados, os mais velhos falarem da belíssima e providencial atuação do santo papa João XXIII, que, ousada e profeticamente, convocou e inaugurou o Concílio Vaticano II, também nós, futuramente, causaremos muito entusiasmo em muitas pessoas quando falarmos a respeito do papa Francisco, que até o momento presente tem se mostrado fiel à sua missão de responsável pela unidade da Igreja no mundo.

Ninguém imaginava que um dia chegaria à Sé Apostólica um papa oriundo da América Latina, dotado de palavras e gestos profundamente marcados pela simplicidade e humildade evangélicas. Um papa que surpreende, desconcerta, escandaliza, denuncia, chora, rir, abraça, acolhe e desperta a esperança. Após longos anos de grandes discursos e documentos exortativos, elaborados numa linguagem pouco acessível, surge um papa que fala na linguagem do povo e da janela de onde profere, dominicalmente, seu breve discurso orante, deseja que todos tenham um bom almoço e um bom domingo! Após longos anos de centralização de poder e uso de recursos que mais chamam a atenção do que evangelizam, surge um papa que, apesar das limitações impostas pelo ofício pontifício, esforça-se em ser jovial, aberto, cordial e próximo de todos, especialmente dos mais pobres. Estes voltaram a ser mencionados com mais veemência nos discursos do Bispo de Roma.

O momento atual é de entusiasmo e abertura. Diante desse cenário favorável, duas perguntas nos inquietam: Estamos aproveitando bem esse momento de chamada à conversão eclesial? Após o papa Francisco cumprir sua missão e entregar o bastão de pastor ao seu sucessor, a Igreja vai continuar remando para frente, ou retrocederá ao passado, para reinstalar-se nas falsas seguranças oferecidas pelo poder, prestígio e riqueza?...

Neste ano, a Igreja é o assunto da Campanha da Fraternidade. Trata-se de uma feliz oportunidade para respondermos três perguntas fundamentais: Que tipo de Igreja somos nós? O que estamos fazendo no mundo? O que podemos fazer para corresponder aos apelos de Jesus de Nazaré contidos no seu evangelho? No cartaz da Campanha deste ano aparece o papa Francisco no ritual do lava-pés, gesto vivido e recomendado por Jesus na última ceia. Esta deve ser a postura da Igreja diante das mulheres e dos homens de hoje: uma Igreja que coloca o avental e se inclina para servir à humanidade, pois servir é a sua missão primordial. É somente através do serviço que toda as Igrejas se convertem ao evangelho de Jesus de Nazaré. Onde não há serviço há traição do evangelho. Facilmente cede-se à corrupção quando não se abraça o serviço como missão.

Em primeiro lugar os ministros ordenados, depois todos os leigos, precisam tomar consciência de que cada um em particular e vivendo na comunidade é chamado a formar a Igreja sintonizada com o evangelho da vida, da justiça, da liberdade e da paz. Beijar os pés do próximo é colocar-se a serviço dele, ajudando-o a permanecer firme no amor, aceitando-o do jeito que é, construindo o Reino de Deus: este é, certamente, o grande apelo da Campanha da Fraternidade deste ano.

O amor que se manifesta no serviço gratuito ao próximo está acima de todas as coisas. É o essencial de uma campanha que deseja despertar e promover a fraternidade em um país marcado pela corrupção e por tantas outras injustiças, geradoras de exclusão, sofrimento e morte. Ninguém está excluído dessa campanha. O convite está aberto a todos/as. Quem crê ou não em Jesus, seja bem-vindo/a! O espírito de fraternidade ultrapassa as fronteiras religiosas e não está preso às crenças, mas é aberto a toda pessoa de boa vontade e bom coração. Para os que professam a fé na Igreja Católica, peçamos ao Espírito do Senhor que nos ajude a cultivar este espírito de fraternidade, aproveitando bem este tempo propício da Quaresma.

Tiago de França 

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

MENSAGEM QUARESMAL 2015

“Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração” (Joel 2, 12).

Amigos/as, irmãos/ãs no Cristo Jesus,

Graça e paz!

            Espero que esta minha partilha fraterna da Palavra os encontre na alegria e na paz de Deus. Alegria e paz são dádivas concedidas pelo próprio Deus por meio de seu Espírito. Não podem ser concedidas nem encontradas neste mundo, marcado por inúmeras injustiças que nos entristecem e nos tiram a paz. Certamente, o mundo oferece pequenos momentos de gozo e satisfação, mas são experiências que passam, que não permanecem e que não preenchem a nossa vida. Somente Deus mesmo, em sua infinita bondade e misericórdia, é quem pode nos oferecer, na gratuidade e na liberdade, aquela alegria e paz que duram para a vida eterna. Preenchidos por esta alegria e paz somos enviados a transmiti-las às pessoas, especialmente as que se encontram atribuladas e aflitas, afetadas pelas angústias e pelo desespero. Somos, portanto, a alegria e a paz de Deus na vida dessas pessoas.

            Quaresma é tempo de deserto e de escuta atenta da palavra de Deus. Atualmente, falar de deserto parece algo estranho. Em um mundo marcado pelo barulho e pela pressa, deserto é sinônimo de esquisitice. A mulher e o homem pós-modernos, acostumados a uma vida intensa e preenchida de compromissos, não encontram tempo para ir ao deserto. Mais do que isso, apresentam resistências porque o deserto as angustia, causando-lhes medo. Neste sentido, é muito comum encontrarmos pessoas que não conseguem separar alguns minutos das 24 horas do dia para fazer silêncio diante de Deus. Fogem do silêncio e perdem a audição. A experiência bíblica mostra que Deus fala no silêncio. É neste que Ele fala ao coração das pessoas e estas conseguem ouvir a sua voz. Precisamos, urgentemente, recuperar o silêncio em nós e em nossas relações. Deus quer nos falar.

            De coração aberto, contrito e humilde somos capazes de ouvir a voz de Deus. Ele quer abrigar-se em nosso coração. Fazendo morada em nós, Deus se revela e nos faz conhecer a nós mesmos, profundamente. É o mistério da revelação do amor. A Quaresma é um convite à abertura do coração. Vejamos a profecia de Joel: “Voltai para mim com todo o vosso coração”. Esta é a voz de Deus, o seu convite. Deus não quer corações divididos, mas inteiros e disponíveis para o amor. É sua vontade libertar nossos corações de todos aqueles sentimentos ruins, de todos aqueles projetos de morte, que tendemos a cultivar quando nos afastamos Dele. Despojados do ódio, do rancor, do ressentimento, da cobiça, da inveja, da mágoa e de todos os outros sentimentos diabólicos que pretendem nos dominar, estaremos livres para vivermos o amor no encontro com o outro. Desse modo, Quaresma é tempo de purificação, de refazimento do caminho, de reencontro consigo mesmo em Deus.

            Nossas Igrejas e o mundo atual precisam, urgentemente, de pessoas convertidas. A conversão não acontece do dia para a noite, mas é um processo lento e duradouro. Trata-se de uma realidade que dura até o grande dia do nosso encontro com Deus. Pessoas convertidas não são pessoas perfeitas, que não pecam. Somente Deus é perfeito, ninguém mais. Assim, convertidas são aquelas que crendo em Deus, colocam-se no caminho do seu Filho Jesus, o Cristo. Quem se coloca no caminho de Jesus trilha o caminho da conversão. Esta é uma exigência do caminho. Quem não procura se converter, ou seja, voltar-se para Deus, acolhendo-o no coração, não pode afirmar que segue Jesus. Pode até ser religioso/a, mas não segue Jesus. A conversão é cotidiana e acontece no seguimento a Jesus de Nazaré.

            Certamente, estamos cansados de encontrar pessoas arrogantes, orgulhosas, frias, indiferentes, insensíveis, ríspidas, duras de coração etc. Há inúmeros fatores que explicam tais posturas e/ou modos de ser. São inúmeras as influências e as experiências de vida que cada pessoa tem. Como dizia o filósofo espanhol Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”. Se assim considerarmos, compreenderemos melhor as pessoas. Veremos que elas não são más porque querem. Aliás, veremos que elas não são, essencialmente, más. A espiritualidade cristã nos ensina que as pessoas praticam maldades, mas não são más em si mesmas. Não há filhos de Deus e filhos do demônio, mas somente filhos de Deus. Somente Deus é o Criador e Pai da vida. Somos, em Cristo Jesus, filhos amados Dele.

            Esta compreensão a que nos referimos no parágrafo anterior, quando unida à misericórdia, torna-se fonte de alegria, paz e felicidade. Vivemos numa sociedade marcada pela intolerância, que se manifesta de várias formas. Umas delas, a intolerância religiosa, é a que mais tem chamado a atenção. O desrespeito à religião do outro é uma das formas abomináveis de violência. A radicularização da fé tem provocado muitos conflitos e derramamento de sangue em muitas partes do mundo. Nas relações interpessoais, as pessoas estão cada vez mais intolerantes e impacientes. Essa cultura da intolerância gera muita violência na família, na escola, nas Igrejas e na sociedade. Passa-se por cima do outro com muita facilidade e este comportamento vergonhoso se impõe violentamente, de modo que tende a ser considerado normal. O dado curioso é o seguinte: Muitos dos que assim procedem costumam frequentar o culto religioso nos fins de semana. São pessoas aparentemente religiosas, que se utilizam do culto para tentar se justificar diante de Deus.

            Esta experiência fecunda da compreensão acontece quando nos colocamos no lugar do outro. O que eu faria e como eu seria se estivesse no lugar dele/a? Esta é a pergunta que devemos nos fazer, constantemente. Somente assim compreenderemos os motivos pelos quais as pessoas são do jeito que são. A compreensão nos leva ao entendimento da realidade do outro. Além disso, nos leva também ao encontro das suas necessidades, portanto, chama-nos a sermos solidários. Desse modo, a “globalização da indiferença”, expressão do papa Francisco, por ocasião de sua mensagem quaresmal deste ano, pode ser vencida. A indiferença é um pecado gravíssimo! Quem é indiferente ao outro e ao que acontece no mundo não poderá participar do Reino de Deus. Em Cristo Jesus, somos irmãos e chamados a viver na fraternidade, cultivando o amor, a fé, a esperança, a compreensão e a liberdade. Que nesta Quaresma, o Espírito do Senhor nos mantenha firmes neste bom propósito.  

Recomendo-me, como sempre, às vossas preces, na certeza de que as faço sempre por cada um de vocês. Feliz itinerário quaresmal a todos/as!

Fraternalmente, no Cristo vivo e ressuscitado,

Tiago de França 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O carnaval e a cultura do descartável

         
          O carnaval me fez recordar do tema da cultura do descartável, que vigora em nossos dias. Nestes dias, há quem esteja procurando muita bebida e sexo. Vive-se a ideia de que “ninguém é de ninguém!” e quem for contra esta ideologia é considerado ultrapassado e careta. Segundo esta ideologia, valores como respeito e responsabilidade podem ser descartados. “Vamos beber muita cerveja e comer muita mulher!”, gritava um jovem embriagado na Praça Sete, no centro de Belo Horizonte. Expressões como esta não são ignoradas porque muita gente enxerga no outro uma coisa a ser usada e descartada. O verbo “comer” relacionado à mulher é a prova disso: desvinculado de qualquer sentimento nobre, há mulheres que se permitem ser “comidas” por muitos homens. Estes as utilizam e, em seguida, as descartam.

            Este problema não se restringe ao período do carnaval, nem está exclusivamente ligado ao tema da sexualidade. Vamos, brevemente, oferecer um olhar mais abrangente, analisando o tema nas relações interpessoais (amizade, namoro e casamento), na economia de mercado capitalista e na religião. Trata-se de um tema que precisa ser discutido pelas instituições família, escola, igreja e estado, tendo em vista a humanização das pessoas e das instituições. Para a necessária mudança de atitude, a mudança de mentalidade é essencial. Por isso, tal discussão é sempre bem-vinda e deve ser cada vez mais promovida e/ou incrementada. Claro que num curto espaço de um artigo breve não abordaremos todas as facetas do problema, mas ofereceremos apenas algumas provocações.

            Nas relações interpessoais está se tornando comportando normal o fato de uma pessoa procurar a outra para simplesmente aproveitar-se dela, visando a satisfação de seus próprios interesses. Quando estes são satisfeitos, aqueles que contribuíram para tão vergonhosa situação são descartados. Neste sentido, não há amizade, nem namoro, nem casamento, mas oportunidades que precisam ser aproveitadas. Nestes três tipos de relações, o amor deveria ser o fundamento, em vista da felicidade. As pessoas que se aproveitam das outras nestas relações costumam falar e demonstrar amor, mas tudo não passa de uma mentira diabolicamente elaborada com belas palavras, presentes e gestos de carinho que escondem as reais intenções.

            Desse modo, quando conseguem o que realmente querem, o outro é descartado com requintes de frieza, rejeição e indiferença. Quem descartou trata o outro como se este estivesse morrido. Como este outro não tem mais nada a oferecer, então é tratado com desprezo, caindo no esquecimento. Por parte de quem desprezou não há sofrimento porque não existia amor. Como aquele que foi desprezado não passava de uma coisa, então não há nenhum sentimento no ato de descartar. Acontece como quando alguém utiliza um copo descartável e depois joga fora. Não há nenhum vínculo afetivo entre o copo e a pessoa porque o copo é um mero meio para a satisfação da sede de água. Quando não há amor, ao descartar o outro, não há nenhum sentimento de perda. Não se perde nada, pois já se ganhou o que se almejava.

            Isto explica porque pessoas frias são, geralmente, perigosas. No silêncio de sua intimidade planejam formas eficientes para a satisfação de seus interesses mesquinhos. Assim, demonstram quem realmente são: egoístas, individualistas, materialistas e, naturalmente, golpistas. Elas desconhecem o verdadeiro valor e sentido do amor, da solidariedade, do perdão, do encontro com o outro, da alegria e da reciprocidade. Interiormente, costumam ser angustiadas, ansiosas, ressentidas, rancorosas porque suas consciências não as deixam em paz. Elas sabem que estão equivocadas, que trilham um caminho que não traz paz de espírito nem salvação. 

Quando descobertas em suas tramas, geralmente, são abandonadas no seu isolamento e na sua falta de amor. Sofrem bastante, mas não o suficiente para renunciarem ao egoísmo que as tornam insensíveis. Para estas pessoas, os problemas do mundo não lhes interessam, pois estão preocupadas consigo mesmas, com o próprio bem-estar. “Não quero saber de nada nem de ninguém! O que quero é ser feliz!”: esta é a lógica que norteia suas vidas.  Nesta lógica não há espaço para o amor a Deus e ao próximo. Este é um dos fatores que explicam porque muitas amizades, namoros e casamentos não duram: as pessoas renunciam ao amor, aderindo à satisfação de seus próprios interesses, vivendo a cultura do descartável.

            Na economia de mercado capitalista, a pessoa valorizada é aquela que consome. Quem não consome não tem valor nenhum. As pessoas são tratadas como meros destinatários de serviços e produtos a serem consumidos. O mercado cria necessidades para seus destinatários. O lucro é a meta. Tudo é calculado ao infinito. Deve-se consumir, desenfreadamente. Tudo é produzido para durar pouco. Para não ser excluído é necessário estar na moda. Esta dita o figurino do momento. Aparece a ditadura do corpo perfeito. O mercado dita o que as pessoas devem comer, vestir, calçar etc. A ideologia de mercado ensina até a maneira de pensar e de ser. Direta e indiretamente, através da mídia, que veicula a propaganda, as pessoas são aliciadas a viverem da maneira como manda o mercado. Todos tendem a fazer e consumir as mesmas coisas. Isto gera uma falsa alegria, um gozo passageiro, que quando passa, dar lugar ao vazio.

            O mercado ensina que além das mercadorias, as pessoas também são coisas, objetos de consumo. Mulheres e homens podem ser comprados e vendidos para ser consumidos. Trata-se da sexualidade mercadológica. O corpo humano, principalmente o feminino, é utilizado para atrair e despertar o desejo dos consumidores. O mercado trabalha em função dos desejos das pessoas, manipulando-os, inteligentemente. As pessoas consomem ao sentir vontade e esta está ligada ao desejo. Dominada pelo desejo, a vontade perde seu controle. Explora-se, demasiadamente, os sentidos humanos, especialmente a visão e o paladar. Descontroladas, as pessoas se endividam, mas isto não lhes é motivo de preocupação porque o que importa é consumir. O mercado as convence de que viver endividado é normal, o anormal é não viver consumindo. Aqui não estamos nos referindo à satisfação das necessidades básicas, mas ao consumo do supérfluo, do desnecessário.

            Tudo o que o mercado produz atualmente tem curta durabilidade porque tudo é produzido para ser jogado no lixo em pouco tempo. Nunca se produziu tanto lixo na história da humanidade como em nossos dias. O meio ambiente não suporta mais tanto lixo! Isto tem provocado um desastroso desequilíbrio na natureza, mas, geralmente, as pessoas não estão preocupadas com isso. O discurso sobre a proteção ao meio ambiente costuma ser desprezado pela maioria. Esta pensa que a natureza é inesgotável, que suporta a sede insaciável do ser humano dominado pelo capitalismo selvagem. O cuidado pela natureza é descartado. Apesar da crise de escassez de água, atualmente vivida no Brasil, a maioria das pessoas não está dando a mínima atenção ao necessário cuidado para com a natureza, mãe e mestra da vida.

            Por fim, consideremos o tema da cultura do descartável na religião. Como estamos no Brasil, e a maioria do nosso povo se declara cristã, então nossas considerações se referem, especialmente, aos católicos e aos não-católicos, também conhecidos como “evangélicos”, terminologia não muito correta quando assistimos a determinados abusos em nome do Evangelho. Evangélica é a pessoa que vive de acordo com o Evangelho de Jesus. Por isso, considerar evangélicos todos os não-católicos é correr certo risco. Certamente, há entre muitos aqueles que, de fato, são evangélicos. Afinal de contas, como ocorre a cultura do descartável na religião? Neste quesito, sintam-se contemplados os demais crentes de outras religiões. Por incrível que pareça, este último quesito de nossas meditações é mais complexo do que os demais porque envolve o tema da fé e da transcendência. Portanto, por mais que queiramos esgotá-lo, ficará, como sempre, espaço para maiores desdobramentos.

            A função precípua da religião é a de religar o ser humano a Deus. No Cristianismo, este Deus se revelou na pessoa de Jesus de Nazaré. Não é um desconhecido, oculto nas alturas dos céus, mas é o Emanuel, Deus que permanece conosco. O seguimento de Jesus se encontra no centro da genuína espiritualidade cristã e, assim, a religião é chamada a oferecer às pessoas a oportunidade de fazerem uma experiência com Deus. Esta experiência não é algo ligado a um sentimento de bem-estar momentâneo. O Cristianismo propõe outra coisa, que é permanente: o seguimento de Jesus de Nazaré. Este seguimento constrói o Reino de Deus. Aqui está o que podemos chamar de núcleo fundamental da fé cristã e do Evangelho de Jesus. Trata-se do essencial.

            Ocultando o essencial, a religião tende a oferecer outras coisas, e não a proposta de Jesus. Com o surgimento do neopentecostalismo, salvo exceções, apareceu a Teologia da Prosperidade com suas promessas de sucesso e bem-estar. Criou-se a religião voltada para o bem-estar econômico e espiritual. Deus é tratado como fonte de bênçãos, curas e bens materiais. Prega-se a ideia de que aquele que crê recebe tudo de Deus. A fé é fonte de prosperidade. A religião é transformada numa agência de milagres. As pessoas acorrem à ela para encontrarem soluções eficazes para seus problemas materiais e espirituais. Não se estimula nem se promove um autêntico encontro com Deus. Não há conversão, mas um negócio com Deus. Quando encontram a “solução” para seus problemas, geralmente Deus é descartado porque é tratado como o “tapa-buracos”, o suporte, a fonte de bênçãos e de bens.

            Assim como no mercado financeiro, o mercado religioso lida com o imediatismo. Deus tem que se submeter aos desejos das pessoas e tem que socorrê-las no exato momento que elas querem. Geralmente, elas não procuram conhecer e viver a vontade de Deus, mas impõem a própria vontade. Deus não é livre nem libertador. Ele não tem escolha. A única alternativa que lhe resta é operar o milagre sem demora. Prega-se que o tamanho da graça está ligado à quantidade financeira da oferta dada às Igrejas. A generosidade divina está condicionada à oferta. Quanto maior a oferta, maior a graça! Promove-se chantagens de toda ordem para incutir essa ideologia na cabeça das pessoas e tudo é feito com tanta emoção que elas passam a acreditar que realmente Deus age dessa forma.

A manipulação de inúmeras passagens bíblicas ajuda os pastores mercenários a terem êxito no seu negócio. Milhões de pessoas não esclarecidas caem nesse tipo de golpe em nome da fé. Na relação entre povo e pastores, e entre Deus e o povo acontece a cultura do descartável. Neste falso Cristianismo não há comunidade nem povo de Deus, mas investimento financeiro em vista do sucesso. As pessoas entram nos templos religiosos como se estivessem entrando no shopping: querem consumir, comprar bênçãos, fazer um negócio com Deus, satisfazer seus desejos.

Não adoram o Deus e Pai de Jesus, mas criam um ídolo, praticando, assim, o gravíssimo pecado da idolatria. Demônios e dinheiro são as duas palavras que mais aparecem na pregação dos pastores. Não há nada de divino, tudo é profanamente pensado e realizado, em vista da grandiosa arrecadação financeira. O mercado religioso faz circular muito dinheiro. Este é abundante, enquanto que a caridade praticamente não existe, salvo louváveis exceções. Este não é um problema exclusivo de inúmeras denominações religiosas neopentecostais, mas também de alguns segmentos das Igrejas cristãs tradicionais.

Para concluir, um pensamento para resumir estas breves considerações: enquanto cristãos, precisamos redescobrir a centralidade do Evangelho de Jesus, que é o amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Amar como Jesus amou: na gratuidade, na generosidade, na alegria e na liberdade. Somente assim a cultura do descartável poderá ser vencida. O amor vence o egoísmo e a indiferença. Amar de verdade é cuidar do outro, assumir a responsabilidade para com ele.

Na cultura do descartável ninguém cuida de ninguém e ninguém é responsável por nada. Relega-se ao destino, à má sorte e ao acaso os males que afetam a humanidade. Precisamos recuperar o encontro com o rosto do outro, rosto que interpela, que revela, que convida para o amor. Somente assim, aprenderemos a sermos mais tolerantes e pacientes diante das falhas do outro, mais humildes e atentos às necessidades que surgem. Enfim, descobriremos que outro mundo é possível quando aprendermos, de fato, a sermos fraternos. O amor nos faz irmãos e liberta-nos de todo mal, nos humaniza e nos salva.


Tiago de França

domingo, 8 de fevereiro de 2015

A oração e o ativismo na vida cristã

“De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto” (Mc 1, 35).

            Na vida cristã deve existir equilíbrio entre contemplação e ação. Há os que querem viver adorando a Deus somente na oração, assim como há os que somente querem adorá-lo na ação. Cada um apresenta suas próprias justificativas. Não questionamos a reta intenção para com Deus, mas a vida virtuosa se encontra no equilíbrio entre contemplação e ação. Ambas formam uma única realidade: o seguimento de Jesus de Nazaré. Nossa meditação deseja contribuir com alguns pensamentos sobre este equilíbrio necessário. O nosso modelo por excelência é Jesus, o Filho amado de Deus Pai.

            Conta o evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1, 29 – 39), que Jesus passou pelo mundo fazendo o bem: curando os doentes e libertando as pessoas da opressão do demônio. Conta também, que durante a noite, de madrugada, Jesus procurava um lugar deserto para rezar, para o silêncio e meditação. Ele sabia dosar bem ação e contemplação. Não era um monge, vivendo no isolamento da solidão do deserto, nem era um sacerdote do Templo, ocupado com vários sacrifícios. Era um missionário que vivia a itinerância, encontrando-se com as pessoas, despojadamente. Um missionário livre, revelador da presença libertadora de Deus.

            A oração verdadeira é aquela sintonizada com as mãos e com o coração. Os livros litúrgicos que orientam a oração comunitária são importantes, mas a oração pessoal precisa ser diálogo com o Pai de Jesus e nosso Pai. A sós com Deus não precisamos ler para Deus uma oração. Esta não é mera leitura. No diálogo, a gente fala a partir do coração. A palavra deve vir das entranhas de nosso ser. Trata-se de uma conversa franca e aberta com Aquele que nos ama e nos quer bem, que deseja entrar em comunhão conosco. Ele vem a nós. A iniciativa é sempre dele. Sabendo que somos limitados e que não sabemos bem como falar, Ele nos envia o Espírito que nos ensina a linguagem do amor. É por meio dessa linguagem que conhecemos o Pai e permanecemos com Ele na oração.

            Rezar não é simplesmente passar alguns minutos na presença do Pai. Muito antes do nascimento e muito além de nossa morte, já estamos Nele. Por isso, a oração é um estado permanente de comunhão com Deus. O Pai está naquele que o acolhe. Isto é oração. Acolhê-lo e viver em sintonia com esta misteriosa presença em nosso íntimo é oração. A organização da vida humana nos exige que reservemos um tempo, assim como Jesus, para nos deliciarmos com mais intensidade desta presença, para senti-la, escutá-la com a merecida e necessária atenção. O Pai fala no silêncio do lugar deserto, e este não precisa ser, necessariamente, um lugar físico, mas um mergulho em uma parcela do tempo corrido do cotidiano. A vida mística ensina que uma pessoa pode estar no silêncio do deserto, em oração ao Pai, em qualquer lugar e/ou circunstância.

            O efeito disso é maravilhoso. Não há palavras para descrever o que acontece nessas horas e na vida de quem assim procede. Encontra-se, desse modo, o Pai em todas as coisas. Ele pode ser visto rindo, chorando, de braços abertos, recolhido... no outro. Essa visão do Pai é misteriosa porque Ele se encontra nas pessoas e lugares que realmente surpreendem e escandalizam. Para os místicos, Deus é um escândalo! Ele é Amor e todos sabemos que o Amor surpreende, ultrapassa a tudo e a todos. E o curioso é que tudo acontece na simplicidade e na humildade. A oração é este caminho que conduz à experiência do encontro fecundo e revelador, que conduz ao conhecimento perfeito do Amor em nós.

            Nossas Igrejas e nosso mundo carecem de pessoas orantes, que aprendem na oração o valor e o sentido do encontro com o outro. Há tantos louvores em tantos cultos, mas tão pouca intimidade com o Pai. As pessoas reservam uma ou duas horas semanais para o culto em suas Igrejas e pensam que estão fazendo muita coisa. Outras rezam um pai nosso apressado e já se sentem justificadas. Outras, ainda, nem disso se lembram. Estão ocupadas com suas preocupações, com o bom êxito de seus afazeres, com o sucesso de suas carreiras. No fim, deixam este mundo angustiadas porque, muitas vezes, não encontraram a felicidade que tanto procuravam.

            “Se você quiser servir a Deus, faça poucas coisas, mas as faça bem!” Este refrãozinho da espiritualidade franciscana nos revela duas questões importantes. A primeira consiste no fato de que não precisamos fazer tantas coisas. Estas tendem a nos sufocar. Quando morremos, as coisas ficam e alguém nos substitui na realização delas. Logo cairemos no passado das boas ou más recordações. O serviço a Deus acontece naquilo que fazemos no pouco e no bem feito. A pessoa que vive em comunhão com Deus está em paz consigo mesma e tudo realiza com amor e sem pressa, sem aquela preocupação em ser o centro das atenções somente porque teve êxito. Fazer muito e com a obsessão pela perfeição é ativismo doentio, angustiante e assassino. Isto tem gerado pessoas insuportáveis porque angustiadas, ansiosas, depressivas etc. É o grande mal da vida pós-moderna.

            A segunda consiste no fato de que sem conteúdo espiritual o cristão não consegue ir muito longe. O fracasso espiritual é bem pior do que o material. Geralmente, as mazelas espirituais desgastam e matam mais. O desespero do mundo é um retrato dessa situação. Fazer algo bem feito ultrapassa o bom êxito material. As ações humanas possuem um toque de espiritualidade. Não fazemos simplesmente por fazer. Toda ação envolve afeto, e para aquele que crê, envolve também a fé naquele Pai que se revela na ação amorosa. Por fim, consideremos esta sentença de ordem espiritual: Ser contemplativo na ação significa em tudo encontrar a presença de Deus, em tudo ser esta presença infinitamente amorosa e redentora. Somente assim, escaparemos do vazio existencial que tem tomado inúmeras pessoas que já não encontram sentido naquilo que julgam ser e naquilo que procuram fazer.

Tiago de França

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Interrogações sobre o momento político atual

             
               Pediram-me uma palavra sobre o momento político atual. Não sou economista nem cientista político, mas cristão, cidadão, estudante e professor. Tenho o compromisso e o direito de pensar, escolher e opinar. Não somos governados por reis nem imperadores. Estamos no regime democrático de direito, e como tal, há espaço para a análise e para a discussão. Irei ser breve, mas incisivo em algumas questões que a mídia neoliberal hegemônica tende a deturpar e esconder.

            Quem foi que disse que a corrupção se iniciou, no Brasil, com os governos do PT? Quem disse mente porque não prova absolutamente nada. E não prova porque é esclerosado e não estudou a longa e sofrida história do Brasil. Basta ler qualquer livro didático, daqueles que podem ser encontrados nas escolas públicas. Qualquer um deles não esconderá que passamos praticamente 400 anos em regime de escravidão, sob as ordens do desequilibrado império português. Posteriormente, de forma esquisita inauguraram a República e, pouco tempos depois, passamos vinte anos sendo governados pelos militares. Colonização não é corrupção? Ditadura militar não é corrupção? A política neoliberal que assolou a tentativa de nova redemocratização não é corrupção? Quem defende que não é, procure estudar o real significado do termo corrupção à luz da historicidade dos fatos.

            As investigações sobre a corrupção em uma determinada estatal pode ser a causa da cassação do mandato do Presidente da República? Pode! Como é possível? Se ficar comprovado o crime de responsabilidade. Quem comprova? As páginas dos jornais? O Jornal Nacional da senhora Rede Globo? Não. Esse povo aí atende a seus interesses. O leitor pensa que a Globo está preocupada com a corrupção? Ou pensa que a notícia é destituída de interesses? Se pensa, cuide em aprender a pensar sobre aquilo que escuta. Quem não pensa e analisa, vai considerar que a história do Brasil começou a desandar a partir do governo Lula. Se chegou a essa conclusão, é bom cuidar em estudar história, filosofia, sociologia e algumas noções de ciências políticas. Tem preguiça? Então não opine sobre o que não conhece. Acredita no “tudo mastigadinho”? Seja mais inteligente!

            É de fazer vergonha a corrupção? Sim. Envergonha um possível racionamento de energia e água? Sim. Envergonha a falta de controle da inflação? Claro que sim. Isso não alegra ninguém. Mas de onde vem isso? Falta água, é culpa do governo. Falta luz, é culpa do governo. Falta poder de compra do salário mínimo, é culpa do governo. E nós, temos alguma culpa? E o sistema capitalista, selvagem e assassino, que mata centenas de pessoas em todo o mundo, através da exclusão de milhões e do enriquecimento de um punhado de gente desocupada, que enrica do dia para a noite sem muito esforço? Este sistema tem alguma culpa? Quem o mantém? Quem está a seu serviço? Se não parou para pensar possíveis respostas para estas indagações, ainda é tempo.

            É vergonhosa a preguiça mental de milhões de brasileiros que perdem seu precioso tempo nas redes sociais, “curtindo” e “compartilhando” recortes de jornais e revistas, que mais mentem do que falam a verdade dos fatos. Facilmente, cria-se um clima apocalíptico. A sensação é que chegamos ao fim dos tempos. Calunia-se, difama-se, deturpa-se, engana-se, ilude-se; cultiva-se ideologias que somente reforçam ódio, rancor, ressentimento contra pessoas, governos e instituições. “A Dilma vai tirar o direito à carteira assinada!”, inventa um; “A Dilma vai cortar o auxílio-doença”, acrescenta outro; “A Dilma recebeu dinheiro de propina na Petrobrás”, ridiculariza outro, e por aí vai. E nada disso está acontecendo. E por que tais boatos tornam-se dignos de crédito? Porque as pessoas não foram educadas para analisar e pensar sobre o que verdadeiramente acontece.

            Boatos em redes sociais podem decidir o destino de um país? Bandeiras sem causa decidem alguma coisa? Agitadores políticos desinformados e sem crítica fundamentada na verdade dos fatos possuem a razão? A mídia especulativa e movida por interesses pode, indiscriminada e irresponsavelmente, decidir quem governa e quem não governa? Claro que não, mas dependendo da intensidade do sono que domina a consciência de muitos, o pior pode acontecer. Administra-se um país do tamanho do Brasil com a força do grito e da ignorância, sem vontade política e sem ética? Muitos acham que sim. Infelizmente, a maioria dos nossos congressistas, oriundos das classes abastardas e sem compromisso com os pobres do povo, constitui uma famigerada raça de criminosos institucionalizados, que somente pensam em si mesmos, agem conforme seus interesses e ainda gozam do respaldo da lei, criada por eles e em função deles.

            Quem estiver pensando que uma possível cassação da Presidenta da República dará um basta na crise política e econômica do Brasil está redondamente equivocado. Crise política se resolve com reforma política que modifica, efetivamente, a estrutura ultrapassada que já não responde aos anseios da verdadeira democracia. Quem fará essa reforma? Collor de Melo, Renan Calheiros, Tasso Jereissati, José Serra, Jair Bolsonaro, Tiririca e companheiros congêneres? Jamais! Estes e outros tem medo de reforma política. A reforma política deve passar, necessariamente, por uma nova Constituinte Exclusiva. Quando o governo fala em plebiscito e conselhos de participação popular nas instâncias de decisões, o que diz a oposição? O povo quer nos substituir, e nós somos representantes legítimos do povo! Ora, de qual povo? Do povo de seus grupos e familiares? Não vejo outro.

            Por trás da cobertura exaustiva da mídia oficial brasileira, encabeçada e representada pela Rede Globo, que até se parece com urubus à procura de carniça, está o sonho de entregar novamente o país nas mãos do partido que é inimigo até do cheiro do povo: O PSDB. Estão procurando chegar ao poder por meios ilegítimos e ilícitos, via golpe. Aprenderam com os militares de 1964 e querem repetir a dose. Só que estão se esquecendo de que estamos em 2015, mas, infelizmente, com um povo constituído por uma parcela que alimenta um saudosismo doentio em relação a um passado sombrio, tudo é possível. Os simpatizantes do PSDB e do DEM, que encabeçam a vergonhosa oposição ao governo, vez e outra, vão às ruas para pedir a volta da ditadura militar. Qualquer pessoa bem informada e de bom senso logo percebe que se trata de uma classe de gente rica e sem princípios democráticos norteadores. Esta turminha de gente desocupada pode, de fato, derrubar um governo legitimamente eleito nas urnas e jogar o país no precipício? Não podemos permitir uma lástima dessas.

            O país precisa de água para gerar energia e desenvolvimento. Quem fabrica água, o governo? Escutando determinadas opiniões, às vezes, tenho a impressão que o governo possui uma indústria de água potável e está exportando água para o deserto do Saara! São ridículas certas análises e certas expressões oriundas de pessoas sem o mínimo de juízo político. Como é que um povo que desperdiça 37% da água tratada pode culpar o governo pela falta de água? Como pode um povo que desmata e polui rios e nascentes pode culpar governo pela falta d’água? Vamos ser realistas! Vamos criar juízo e vergonha na cara para aprendermos a lidar com nossa riqueza hídrica, a fim de que não acabe de vez! A honestidade, o bom senso, a consciência crítica e a boa vontade são remédios eficazes contra a ignorância política e o mal da escassez de água. Se assim procedermos, a natureza, sábia e estressada de tanta exploração, certamente continuará fazendo a sua parte.

            Que os investigados e verdadeiramente responsáveis pelos desvios na Petrobrás respondam, judicialmente, pelos seus crimes. Que o Poder Judiciário saiba aplicar a lei em função do bem comum. Quem saibamos discernir os sinais dos tempos, libertando-nos das mentiras e das ideologias legitimadoras da exploração. Que aprendamos a crescer com a crise financeira, situação comum em um sistema que não respeita a dignidade da pessoa humana. Que saiamos fortalecidos e cada vez mais conscientes de nosso papel de cidadãos, despojados do infantilismo e de posturas pouco coerentes. É o que desejamos para este momento ímpar em que estamos inseridos na história da jovem e sofrida democracia brasileira. Se a justiça e o bem comum prevalecerem, de fato, algo novo surgirá; do contrário, se nos precipitarmos, agindo sob a manipulação da mentira e da cultura do ódio, infelizmente, a situação poderá piorar, irreversivelmente.


Tiago de França

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A flor do outro lado do rio

Encostado na cadeira, alegre, numa reunião de pessoas
Olhares, calor, passa-tempo
Palavras jogadas ao vento
Olhares atentos

De lado uma pequena flor, deslumbrante e simples
Despida, convidada, sorridente
Sentada à frente
Meiga

Medo, tensão
Indecisão
Sussurros ao pé do ouvido, risos
Quem poderia adivinhar?...

Um abraço apertado, lágrimas
Muitas lágrimas, muitas lágrimas, colo, cafuné...
E as palavras,
Multiplicam-se, infindam-se, esvaem-se, cansam...

Reencontro, gozo
Desaparecem-se as palavras, o olhar é o fio condutor
Da comunicação amorosa
Gostosa

Telepatia de sentimentos
Te conheço, por que essa voz?
Essa respiração, essa ansiedade,
Essa pressa

Um no outro, sintonia
Mais lágrimas, mais aperto
Mais...
De repente a serpente, toda ela venenosa

Fotografia dada de presente
Despedida, abril
Maio, junho, julho, agosto, desgosto
Treze, catorze, quinze, outubro, onze...

E quem amou, odiou também?
Egoísmo? Apego? Solidão? Desilusão?
Não
Talvez, quem sabe! Silêncio, negação

Tentativas, falta de chuva
Terra seca, má notícia
Beira do rio, pés na água e pedrinhas na mão
Bem lá no outro lado, na distância da travessia, de um rio caudaloso

Correnteza instransponível
Tempo ruim
Não, não, não...
Anoiteceu, o vinho acabou, chegou a escuridão

Hora de voltar pra casa,
Aquecer o coração
Tudo longe, tudo incerto, tudo líquido
E a flor crescerá do outro lado. Há frio, passou a fome e o calor. O vinho? Acabou.

Tiago de França

domingo, 1 de fevereiro de 2015

A autoridade da palavra de Jesus

“O Senhor teu Deus fará surgir para ti, da tua nação e do meio dos teus irmãos, um profeta como eu: a ele deverás escutar” (Dt 18, 15).

            Segundo o evangelho de Marcos (cf. 1, 21 – 28), na cidade de Cafarnaum, numa sinagoga, ensinando em dia de sábado, “todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da lei”. O evangelista não fala do conteúdo do ensinamento de Jesus, mas a leitura atenta de todo o seu evangelho revela que Jesus, o Filho do Homem, é a Palavra de Deus. O conteúdo do seu ensinamento é o amor que liberta, integralmente, as pessoas. Naquele tempo, todos escutavam os mestres da lei e estes falavam da lei. Esta estava no centro do seu ensinamento. Com Jesus é diferente, pois o amor ocupa o centro de seu ensinamento, dado com autoridade.

            Este amor não é mera declaração ou poesia. Não é o meio que muitos se utilizam para escravizar o outro. Não exclui nem condena ninguém, mas acolhe e promove, edifica e constrói, abre portas e confere a verdadeira alegria, é manso e humilde, destituído de poder e de ilusão. O amor ensinado por Jesus coloca o outro sempre em primeiro lugar, pois não é egoísta. Promove sempre a liberdade e coloca a pessoa no caminho que conduz a Deus. Reconhece as diferenças e se manifesta de diversas formas. Não é uniforme nem cria uniformidade. Quem o acolhe entrou no reino da liberdade e se torna capaz de todas as coisas. Nada é impossível para aqueles que amam como Jesus amou. Este ensinamento é muito diferente daquele que era dado pelos mestres da lei.

Os mestres da lei tinham medo do amor e se apegavam à lei. Não conheciam o amor e pensavam que estavam agradando a Deus porque ensinavam a cumprir, rigorosamente, a lei. Esqueceram-se de que ninguém se justifica diante de Deus porque cumpre os preceitos da lei. Neste sentido, Jesus acolhe a lei judaica, corrigindo-a, conferindo-lhe um novo sentido, o sentido da liberdade.

Toda lei que não liberta não tem nenhuma validade diante de Deus porque Deus quer um povo constituído de pessoas livres. Geralmente, as leis visam o enquadramento e, consequentemente, à escravidão. Nenhuma sociedade é mais justa porque possui excelentes códigos de leis. No Brasil temos excelentes leis, bem elaboradas e devidamente aprovadas, mas somos um dos países mais corruptos do mundo. Não são as leis que constroem a liberdade de um povo. O mesmo podemos dizer das leis religiosas: nenhuma religião se justifica diante de Deus porque seus membros cumprem fielmente as leis.

Jesus foi reconhecido como um profeta. Para nós, cristãos, é o profeta por excelência. Mais que profeta, é o Messias prometido e esperado. O profeta é um homem livre, enviado por Deus para uma missão determinada, num lugar e num tempo determinados. Não fala de si nem de suas ideias, mas anuncia a palavra de Deus. Esta palavra é colocada na boca do profeta e deve ser anunciada conforme a inspiração divina. O fiel cumprimento de sua missão consiste no anúncio desta palavra de vida e de liberdade.

Iluminado e guiado pelo Espírito do Senhor, o profeta anuncia sem medo e com audácia, na liberdade e para a liberdade. Em alguns casos, suas palavras são acompanhadas com sinais grandiosos. O certo é que a palavra anunciada provoca efeitos nas pessoas e na realidade. A denúncia das injustiças e de toda espécie de opressão leva o profeta ao martírio. Alguns profetas não são assassinados, mas não escapam da incompreensão, da rejeição, da perseguição e da tortura. No Brasil, entre muitos, são testemunhas eloquentes o bispo Helder Câmara (1909-1999) e a irmã Dorothy Stang (1931-2005).

Deus suscita profetas e profetisas dentro e fora das religiões. Por isso, o profeta não é, necessariamente, religioso. Aliás, o fator religioso é o que menos caracteriza o profeta porque este não vive em função de uma determinada religião. No Cristianismo há profetas que exerceram e exercem funções de lideranças e há os que são leigos. Na Igreja Católica, a maioria dos profetas são leigos, ou seja, não ordenados.

Quando membro de uma religião, o profeta entra, inevitavelmente, em conflito com as estruturas religiosas, geralmente alicerçadas no poder. Os que vivem apegados às estruturas religiosas sabem que os profetas são pessoas livres e que precisam da liberdade para cumprir sua missão. Não há profecia sem liberdade. O Espírito age somente na liberdade em vista da liberdade.

O autêntico profeta do Senhor é uma pessoa destituída de poder humano e não é enviada por Deus para legitimar nenhuma espécie de poder. A única forma de poder que o profeta conhece é o poder divino manifestado na fraqueza humana. Por causa da denúncia dos abusos de poder, o profeta é, geralmente, perseguido, julgado e condenado pelas estruturas civis e religiosas. Estas tendem a expulsá-los porque não suportam a força da palavra profética. Em alguns casos, o poder eclesiástico até tolera o profeta, mas este vive sob suspeita. Dom Helder Câmara é um exemplo disso, pois viveu tais coisas.

Há profetas em toda parte. Alguns se destacam mais, outros menos. A maioria atua na discrição, sem chamar a atenção de ninguém. Estão anunciando a palavra de Deus. São como as formiguinhas: lenta e silenciosamente, estão construindo o Reino de Deus. Não perdem uma ocasião para revelar a palavra libertadora Daquele que os enviou.

Outros são percebidos com mais evidência porque denunciam injustiças que envolvem gente considerada grande e importante. Estes profetas correm mais risco, mas não renunciam à missão recebida porque sabem que não podem renunciar. Um dia terão que “prestar contas” a Deus e sabem muito bem que Deus não os abandona, mas os acompanha fielmente na missão, encorajando-os e fortalecendo-os.

Os profetas estão no mundo, construindo o Reino de Deus. Aparentemente, não possuem nada de extraordinário. Não são poderosos nem são seres de outro mundo. O que os identifica é o amor a Deus e ao próximo, a liberdade para a ação, a fé Naquele que os enviou e a esperança na construção de outro mundo possível.

Por fim, não nos esqueçamos da recomendação divina, que aparece no livro de Deuteronômio: “a ele deverás escutar”. Ai de quem não escutar os profetas! Eles apontam para o caminho que conduz a Deus. Anunciam a misericórdia de Deus. Estão em íntima comunhão com este Deus, Pai cheio de ternura e de bondade. Os profetas conhecem os segredos de Deus. Ai de quem os persegue, tortura e mata! Neles está o Espírito de Deus, que sonda todas as coisas, até as profundezas de Deus (cf. 1 Cor 2, 10).


Tiago de França

Obs.: Acompanha nossa meditação uma fotografia na qual aparece o Pe. Ezequiel Ramin, italiano, missionário comboniano, martirizado em Cacoal, diocese de Ji-Paraná - RO, em 24 de julho de 1985.