Anualmente, durante o tempo quaresmal, a Igreja lança a Campanha da
Fraternidade, que neste ano terá como tema: Fraternidade: Igreja e sociedade,
e Lema: “Eu vim para servir” (cf. Mc
10, 45). Queremos, neste breve artigo, apresentar algumas considerações sobre
esta importante campanha, como contribuição para uma melhor compreensão do seu
tema e lema.
Discorremos a partir de três pontos que
julgamos fundamentais, sem a pretensão de esgotarmos a temática, que se mostra
muito oportuna para nossos dias: 1) Jesus e a fraternidade; 2) A Igreja como
promotora da justiça e da verdade e 3) A relação da Igreja com as mulheres e
homens de hoje. Partimos de uma leitura crítica do evangelho de Jesus, da
história recente da Igreja, à luz da fé, da realidade do mundo e da atuação de
nossas comunidades cristãs.
- Jesus
e a fraternidade
Uma leitura atenta do evangelho nos mostra
que Jesus de Nazaré viveu uma experiência profundamente missionária. Enviado
por Deus com a missão de inaugurar seu Reino, cumpriu fielmente esta missão. Seu
testemunho foi marcado pelo anúncio deste Reino, que consiste na construção de
um novo céu e de uma nova terra, onde reinarão a justiça e a paz. Na sua
passagem por este mundo, mostrou-se sensível aos pobres e aos pecadores,
amando-os e acolhendo-os, revelando-lhes a misericórdia de Deus. No
desenvolvimento posterior de uma leitura da ação amorosa de Jesus, passou-se a
ver nele a encarnação do próprio Deus na humanidade.
Jesus proclamou a justiça do Reino de Deus,
que supera, infinitamente, a justiça elaborada pelos homens. No Reino anunciado
por Jesus, os pobres e marginalizados estão em primeiro lugar, são os
prediletos de Deus. Desde a antiga Aliança, com a saída do povo de Deus da casa
da escravidão no Egito, Deus tem se mostrado a favor dos oprimidos. Ele fez uma
clara e incontestável opção pelos pobres.
Em Jesus de Nazaré esta opção se torna cada
vez mais evidente: comendo e bebendo com os pecadores públicos de seu tempo,
dar testemunho da misericórdia divina, que alcança a todos, indistintamente. Em
suas palavras e gestos, Deus manifesta sua infinita bondade e amor para com os
pecadores, libertando-os da marginalização e colocando-os no centro da história
da salvação.
Isto é fraternidade: comunidade de mulheres e
homens, que vivendo sob a lei do amor fraterno, encontram o sentido e a
felicidade da vida. A unidade e a partilha, a solidariedade e o perdão, a
cultura do encontro e da amizade, a fé e a esperança, o respeito às diferenças
que constituem a diversidade cultural dos povos e nações, e o espírito de mútua
colaboração constituem os valores fundamentais da autêntica fraternidade
pensada e assumida por Jesus de Nazaré.
Desse modo, nossas comunidades cristãs
precisam ser testemunhas vivas do amor fraterno, pois não há fraternidade sem
amor. Amar como Jesus amou: eis a desafiadora missão que o evangelho nos
propõe. E como Jesus amou? A resposta é simples: amou na liberdade dos filhos e
filhas de Deus. Segundo o testemunho dele, só o amor liberta integralmente a
humanidade das forças do pecado e da morte.
Com Jesus, aprendemos que viver segundo o
espírito de fraternidade corresponde, necessariamente, à acolhida alegre e
generosa do outro. Não há fraternidade sem acolhida e com exclusão de pessoas.
Nada justifica a exclusão das pessoas. Na lógica do Reino, quanto mais pecadora
for a pessoa, mais insistente deve ser o convite para que se converta e
ingresse na dinâmica da fraternidade.
Somente nesta dinâmica as pessoas conseguem
superar os limites inerentes à condição humana, pois encontram força nos
vínculos fraternos que se criam e se fortalecem quando se vive segundo o
espírito fraterno. É segundo este espírito que se supera os males que afetam a
humanidade de todos os tempos e lugares: o egoísmo, o individualismo, a
indiferença, o ódio, o rancor, o preconceito, o racismo, entre outros.
- A
Igreja como promotora da justiça e da verdade
Nossas Igrejas cristãs são chamadas a serem
Casas de fraternidade. É inaceitável que no interior das comunidades seguidoras
de Jesus haja exclusão das pessoas. Nenhum pecado justifica qualquer forma de
exclusão. Esta é essencialmente antievangélica. Portanto, quem julga, condena e
exclui o outro não está agindo conforme o ensinamento de Jesus de Nazaré. O
evangelho é um convite permanente para que se pratique o essencial, que é o
amor, e este é fundamentalmente inclusivo, jamais exclusivo.
Impulsionados pelo amor, os cristãos são
capazes de acolher o novo e o diferente, pois sabem que o Espírito do Senhor
age em função da novidade e das diferenças. O Pai e o Filho enviam o Espírito
para que se manifeste e se promova neste mundo a diversidade das expressões da
cultura e da religiosidade. Somente há autêntica fraternidade nas comunidades
que respeitam e promovem a pluralidade de pensamento e modos de ser.
Para promover a fraternidade universal,
nossas Igrejas precisam se transformar, efetivamente, em instrumentos da
justiça do Reino e da verdade do evangelho. Sem justiça e verdade não há
liberdade. Aqui surge a necessidade da profecia em nossas Igrejas. Estas
precisam denunciar as forças do anti-Reino que tendem a dominar toda a
humanidade: a globalização da indiferença (expressão do papa Francisco), a
cultura da eliminação dos fracos e oprimidos, a sede de vingança, a perseguição
às “minorias abraâmicas” (expressão de Dom Helder Câmara, bispo e profeta), a
exploração capitalista da natureza, a fome que mata milhões em todo o mundo, a
intolerância religiosa, entre tantas outras forças que oprimem e matam inúmeras
pessoas.
Não se pode silenciar diante dessas
injustiças. Nossas Igrejas precisam compreender que o anúncio do evangelho
contempla, necessariamente, a denúncia de todas as formas de opressão humana. Neste
sentido, o silêncio diante de tais opressões constitui um pecado gravíssimo de
omissão.
Promover a justiça e a verdade é colocar-se a
serviço da sociedade. Em todo o mundo, nossas Igrejas são chamadas ao serviço
dos mais fracos e indefesos, que são aquelas pessoas que não tem vez nem voz:
os que não tem casa, trabalho, terra, alimentação, saúde, liberdade, paz;
enfim, todas aquelas pessoas feridas em sua dignidade. Há milhões de filhos e
filhas de Deus encerrados no desespero, procurando uma saída para os problemas
que os afligem.
Há muitos que não dão conta mais de esperar,
encontram-se agonizando, sem ter alguém que os socorra. Estas pessoas formam um
o grito que clama incansavelmente por justiça e paz. Elas não desejam
simplesmente a solução imediata de suas necessidades, mas desejam um outro
mundo possível, desejam que cessem as injustiças, desejam o fim da
multiplicação de novas vítimas. Elas gritam contra o conforto de poucos, que se
sustentam do sangue e do suor da maioria. Estão à beira do caminho, como aquele
cego do evangelho, gritando sem cessar: “Jesus,
Filho do Deus vivo, tende piedade de mim, que sou um pecador!”
Não há autêntica Igreja de Jesus Cristo se
este clamor por justiça, liberdade e paz é ignorado. Ignorar o clamor dos
pobres é ignorar o próprio Cristo. As Igrejas cristãs que não procuram servir
aos pobres e oprimidos deste mundo permanecem distantes de Jesus de Nazaré.
Elas podem até promover belas liturgias, mas Deus não as acolhe nem as escuta.
Biblicamente falando, Deus está gritando por justiça na boca dos oprimidos. Estes
constituem o sacramento de sua presença no mundo.
Os documentos do magistério dos Bispos na
América Latina, desde Medellín até Aparecida, não se cansam de mostrar com
clareza e ousadia profética este clamor divino que ecoa sem cessar. Por isso, é
preciso renunciar ao preselitismo, às alianças com os poderosos, à covardia, à
falsa prudência, ao comodismo, aos conflitos entre as Igrejas, à busca pelo
poder, prestígio e riqueza, para, de uma vez por todas, colocar-se na fileira
dos excluídos. Nossas Igrejas precisam levantar as bandeiras dos excluídos, a
fim de que estes sintam que também são Igreja. Promover a mudança de estruturas
é essencial para o surgimento de uma nova humanidade, mais justa e fraterna.
- A
relação da Igreja com as mulheres e os homens de hoje
Como assinalamos no tópico anterior, a Igreja
é chamada a ser um instrumento de salvação da humanidade. Esta afirmação, que
resume bem o espírito do Concílio Vaticano II, ocorrido no início da segunda
metade do século passado, é sempre repetida no seio da Igreja Católica, pelos
membros do clero e pelos leigos mais instruídos. Desde a realização deste
importante Concílio, que mudou radicalmente muitas das práticas da Igreja,
percebe-se que ainda há, infelizmente, certo medo em relação à evolução da
sociedade.
Com certa constância, a Igreja é acusada de
permanecer parada no tempo. As análises teológicas de renomados estudiosos como
José Comblin, João Batista Libânio, Jon Sobrino, Roger Lenaers, Ivone Gebara,
Marcelo Barros e tantos outros/as, mostram que a instituição Igreja, ora
avança, ora retrocede. Claro que num curto espaço de um breve artigo não
podemos falar com a necessária precisão de detalhes sobre estes avanços e
retrocessos.
Para finalizar nossas considerações, queremos
chamar a atenção para o momento atual da Igreja Católica, criadora e promotora
da Campanha da Fraternidade. A feliz renúncia do papa Bento XVI e a eleição do
papa Francisco é, sem sombra de dúvidas, um sinal do Espírito do Senhor neste
momento da história da Igreja. Assim como escutamos, extasiados, os mais velhos
falarem da belíssima e providencial atuação do santo papa João XXIII, que,
ousada e profeticamente, convocou e inaugurou o Concílio Vaticano II, também
nós, futuramente, causaremos muito entusiasmo em muitas pessoas quando falarmos
a respeito do papa Francisco, que até o momento presente tem se mostrado fiel à
sua missão de responsável pela unidade da Igreja no mundo.
Ninguém imaginava que um dia chegaria à Sé
Apostólica um papa oriundo da América Latina, dotado de palavras e gestos
profundamente marcados pela simplicidade e humildade evangélicas. Um papa que
surpreende, desconcerta, escandaliza, denuncia, chora, rir, abraça, acolhe e
desperta a esperança. Após longos anos de grandes discursos e documentos
exortativos, elaborados numa linguagem pouco acessível, surge um papa que fala
na linguagem do povo e da janela de onde profere, dominicalmente, seu breve
discurso orante, deseja que todos tenham um bom almoço e um bom domingo! Após
longos anos de centralização de poder e uso de recursos que mais chamam a
atenção do que evangelizam, surge um papa que, apesar das limitações impostas
pelo ofício pontifício, esforça-se em ser jovial, aberto, cordial e próximo de
todos, especialmente dos mais pobres. Estes voltaram a ser mencionados com mais
veemência nos discursos do Bispo de Roma.
O momento atual é de entusiasmo e abertura.
Diante desse cenário favorável, duas perguntas nos inquietam: Estamos
aproveitando bem esse momento de chamada à conversão eclesial? Após o papa
Francisco cumprir sua missão e entregar o bastão de pastor ao seu sucessor, a
Igreja vai continuar remando para frente, ou retrocederá ao passado, para
reinstalar-se nas falsas seguranças oferecidas pelo poder, prestígio e
riqueza?...
Neste ano, a Igreja é o assunto da Campanha
da Fraternidade. Trata-se de uma feliz oportunidade para respondermos três
perguntas fundamentais: Que tipo de Igreja somos nós? O que estamos
fazendo no mundo? O que podemos fazer para corresponder aos apelos de Jesus de
Nazaré contidos no seu evangelho? No cartaz da Campanha deste ano
aparece o papa Francisco no ritual do lava-pés, gesto vivido e recomendado por
Jesus na última ceia. Esta deve ser a postura da Igreja diante das mulheres e
dos homens de hoje: uma Igreja que coloca o avental e se inclina para servir à humanidade,
pois servir é a sua missão primordial. É somente através do serviço que
toda as Igrejas se convertem ao evangelho de Jesus de Nazaré. Onde não há
serviço há traição do evangelho. Facilmente cede-se à corrupção quando não se
abraça o serviço como missão.
Em primeiro lugar os ministros ordenados,
depois todos os leigos, precisam tomar consciência de que cada um em particular
e vivendo na comunidade é chamado a formar a Igreja sintonizada com o evangelho
da vida, da justiça, da liberdade e da paz. Beijar os pés do próximo é
colocar-se a serviço dele, ajudando-o a permanecer firme no amor, aceitando-o
do jeito que é, construindo o Reino de Deus: este é, certamente, o grande apelo
da Campanha da Fraternidade deste ano.
O amor que se manifesta no serviço gratuito
ao próximo está acima de todas as coisas. É o essencial de uma campanha que
deseja despertar e promover a fraternidade em um país marcado pela corrupção e
por tantas outras injustiças, geradoras de exclusão, sofrimento e morte. Ninguém
está excluído dessa campanha. O convite está aberto a todos/as. Quem crê ou não
em Jesus, seja bem-vindo/a! O espírito de fraternidade ultrapassa as fronteiras
religiosas e não está preso às crenças, mas é aberto a toda pessoa de boa
vontade e bom coração. Para os que professam a fé na Igreja Católica, peçamos
ao Espírito do Senhor que nos ajude a cultivar este espírito de fraternidade,
aproveitando bem este tempo propício da Quaresma.
Tiago de França
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