sábado, 30 de maio de 2015

Uma prece à Comunidade de Amor

Pai amoroso
Envolve-nos com teu amor, libertando-nos do egoísmo
Fecunda-nos para sermos em Ti para os outros

Jesus Libertador
Ensina-nos a amar, amando-nos
Permanece conosco

Espírito Santificador
Converte-nos, mantendo-nos acordados
Despoja-nos para o amor e a liberdade

Em nós, a Comunidade de Amor
Para nossa alegria e salvação
Vida plena, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!

Tiago de França 

sábado, 23 de maio de 2015

Onde está o Espírito Santo?

“O Espírito Santo é força de Deus na história, para edificar o povo de Deus. Portanto, o Espírito constrói um futuro e orienta os discípulos para um porvir” (José Comblin).

            Onde está o Espírito, aí está a liberdade: eis o critério fundamental para sabermos o lugar do Espírito no mundo. Nossa meditação terá esta verdade como espinha dorsal: a de que o Espírito tem como missão a edificação do povo de Deus na liberdade e para a liberdade. À luz do evangelho de Jesus e da realidade atual, queremos oferecer alguns pensamentos sobre a missão do Espírito Santo no mundo. O espaço de um artigo é curto, mas o suficiente para algumas afirmações que, inevitavelmente, podem escandalizar um pouco, mas não em função de tirar a fé, mas para seu esclarecimento e fortalecimento.

            O Espírito não está aprisionado nas Igrejas. Nenhuma denominação religiosa possui o Espírito. Ele não é propriedade particular de ninguém. Portanto, não se deixa manipular por quem quer que seja. É mentiroso todo espetáculo exterior em nome do Espírito. Exorcismos, repousos, curas, gritos, desmaios, visões, êxtases, entre outros fenômenos presentes nas Igrejas cristãs não podem ser invocados como se fossem obra do Espírito. Este não foi enviado para realizar tais coisas, para a mera satisfação dos desejos das pessoas. A missão do Espírito ultrapassa as fronteiras das Igrejas e da religião cristã, ultrapassa os limites do tempo e do espaço. O Espírito está nas pessoas e no mundo, não é religioso nem obra de nenhuma religião.

            As leis e preceitos religiosos não são obras do Espírito. Por mais piedosa que seja uma pessoa, por mais íntegra que pareça ser, sua piedade e consequente integridade não decorrem da ação do Espírito, mas da observância às leis e preceitos. Quem vive de acordo com os preceitos da religião não pode dizer que, necessariamente, vive em plena sintonia com o Espírito. São coisas diferentes. Nem todo religioso é cristão. O Espírito faz o cristão, que por sua vez é discípulo missionário de Jesus de Nazaré. Leis e preceitos não geram, necessariamente, cristãos. Cristão é seguidor do Cristo na força do Espírito. Por isso, é possível que encontremos milhões de cristãos fora do Cristianismo. Na teologia do alemão Karl Rahner, são os “cristãos anônimos”.

            A liberdade cristã é obra do Espírito e não da lei. Não há pessoa livre em Cristo senão pela força do Espírito. A luz do Espírito abre os olhos e os corações das pessoas e estas passam a enxergar e se colocar no caminho de Jesus de Nazaré. O Espírito coloca a pessoa neste caminho, concedendo-lhe a graça de nele perseverar até o fim. O caminho de Jesus é o caminho da liberdade. Esta não existe fora daquele. Todo aquele que se encontra no caminho é uma pessoa livre, capaz de trabalhar no processo de libertação dos outros. Viver em função dos outros: eis a marca fundamental dos que se encontram no caminho de Jesus. Aí está o segredo da liberdade. Liberta-se quem vive para os outros e não para si mesmo. Isto é obra do Espírito.

            A liberdade do Espírito está vinculada à realização do Reino de Deus. Os cristãos não são pessoas livres para fazer o que quiserem da própria vida. Esta não é a liberdade cristã. Não se trata de ser livre para morrer na tranquilidade e na falsa paz. A liberdade cristã é a liberdade do Espírito: livres para ser operários da vinha do Senhor. Trabalhadores livres e sem patrão, membros do Corpo de Jesus para a vida do mundo. Esta é a autêntica liberdade cristã. Livres de si mesmos para a prática libertadora do amor ao próximo. Livres da busca e satisfação dos próprios interesses em detrimento do outro. Livres do pecado, da carne, do medo e da morte. Livres para servir na gratuidade, generosidade, alegria e liberdade.

            O Espírito liberta da sede de poder, prestígio e riqueza. Influenciadas pelo sistema capitalista, as pessoas procuram riqueza: desejam e procuram, a todo custo, adquiri-la. Querem ganhar dinheiro e consumir. Acumulam dinheiro e bens. Se for necessário, matam para preservar seus bens. Em nome da conservação e aquisição das riquezas cometem crimes de toda ordem: sonegam, desviam, roubam, enganam, subornam, mentem, matam. Querem ser aplaudidas, ocupando o centro. Preocupam-se com a fama, o sucesso e a reputação. Gostam de ser mencionadas e elogiadas. Oprimem, friamente. Dominam, controlam, especulam, manipulam, querem ser senhores do mundo. Nestas realidades não está o Espírito, pois é liberdade e trabalha pela libertação.

            A força e a alegria dos oprimidos vem do Espírito. Somente os pobres conhecem verdadeiramente o dom do Espírito. Os ricos não conhecem, mesmo se o invocarem piedosamente na celebração solene de Pentecostes. Não conhecem porque vivem uma vida que não é dom do Espírito. Não há exceções. Somente na fileira dos excluídos se conhece a ação amorosa do Espírito, pois este está do lado dos fracos e não dos fortes. O Espírito é a força dos fracos em suas lutas contra a opressão dos poderosos deste mundo. Assim revela as Escrituras. Ninguém tem o poder de desmentir esta verdade revelada: a força de Deus está do lado dos pequenos. Não há meio termo, nem exceções. Não adianta “partilhar” parte da riqueza com as Igrejas. A situação não muda. Os poderosos não contam com a força de Deus, pois esta não está para a opressão, mas para a libertação dos oprimidos. Esta é a alegria dos pobres: contar com a presença amorosa do Espírito em suas lutas.

            O Espírito se manifesta nas periferias do mundo. Um papa veio da Argentina. Isto é um sinal do Espírito. Não que o Espírito tenha criado a instituição pontifícia, pois sabemos que ela é obra humana. O Espírito não cria instituições. Estas são obras humanas, sujeitas a erros e à necessária evolução. Mulheres e homens das periferias das grandes cidades reinventam a vida, desdobram-se para sobreviver, encontram brechas, procuram e aproveitam as oportunidades. Isto é sinal do Espírito. As manifestações das mulheres e homens de boa vontade, reivindicando direitos, denunciando a opressão sistemática dos poderosos nas instituições públicas e particulares. Este é outro sinal da ação do Espírito. Poderosos sendo desmascarados em suas mentiras, desvios e roubos, sendo processados e presos, perdendo suas fortunas. É outro sinal do Espírito. Mulheres e homens, organizando-se em grupos de atuação livre, em prol de outro mundo possível, resistindo ao desespero e à violência dos grandes. Outro sinal do Espírito.

            Muitas outras afirmações poderiam ser feitas, mas o essencial foi evidenciado: O Reino de Deus está acontecendo a partir da vida dos fracos que contam com a força do Espírito. Não se trata de experiência intimista nem de meras revelações privadas, mas da ação divina na história humana, história que acontece no cotidiano da vida. Toda pessoa que se abrir à ação do Espírito será lançada no mundo para servir no amor. Ele lança, encorajando, iluminando, animando, concedendo força e discernimento, perseverança e fidelidade até o fim. E quando Jesus voltar, a festa vai ser linda de ver e viver! Vinde, Espírito Santo. Amém!


Tiago de França

São Romero da América

Um tiro acertado, durante a elevação do Corpo e do Sangue de Cristo
O sangue de Deus misturado com o sangue de um homem
Comunhão plena
Martírio

As lágrimas dos pobres, o grito desesperado das mulheres
Das crianças, dos camponeses, dos homens das mãos calejadas
Tentaram silenciar o pastor
Covardia

Nos braços das mulheres e homens
Ensanguentado entre o sacrário e o altar
Eucaristia viva
Evangelho de Cristo

Romero sabia, estava convicto, tinha os olhos fixos
Em Jesus
Proclamou sobre os telhados, gritando, clamando, chorando
A dor, a perseguição, a morte dos irmãos e irmãs de Jesus

Romero apontou para a Igreja Apostólica:
Pobre, livre, missionária e profética
Ressuscitou a Igreja
No batismo de sangue

Romero ousou escutar o grito de dor de um povo sedento de justiça e de liberdade
Proclamou o Evangelho da liberdade
Caminho perigoso, pedregoso
Incomodou civis e eclesiásticos

Oh, São Romero da América
Estás sendo elevado às honras dos altares
Não para te tornares um mito, um objeto de devoção, mas estás sendo apresentado
Como discípulo missionário de Jesus, no amor e na fidelidade até às últimas consequências

Pede a Jesus, nosso Irmão maior
Que nos arranque, com a suavidade e com a força do seu Espírito
Do pecado gravíssimo da indiferença, da covardia e da falta de amor
Pede a Jesus a graça de sermos, verdadeiramente, cristãos

Tiago de França

terça-feira, 19 de maio de 2015

Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos 2015

“Dá-me um pouco da tua água” (Jo 4, 7).

            O testemunho dos cristãos é substancialmente necessário para que a Boa Notícia do Reino de Deus possa irradiar no mundo. Esse testemunho passa, necessariamente, não somente pelo conhecimento de Jesus Cristo, mas, sobretudo, pela unidade cristã. Cristãos unidos constituem um sinal vivo de que compreenderam a mensagem de Jesus, mensagem que proclama a unidade e a paz.

            Cada denominação religiosa, na diversidade de suas manifestações, professa sua fé em Jesus. Não há manifestações certas nem erradas, mas manifestações de fé sob o impulso do Espírito do Senhor. Este Espírito faz multiplicar a pluralidade de modos de ser e de se adorar a Deus. Não existe uniformidade e quando há quem queira impô-la, as necessárias resistências aparecem. O Cristianismo é uma pluralidade de maneiras de se viver o amor ensinado por Jesus, e todas as maneiras precisam ser reconhecidas e respeitadas.

            Com a samaritana junto ao poço de Jacó, o judeu Jesus nos dá algumas indicações para sermos verdadeiras testemunhas da unidade em meio à diversidade:

            1 – Colocar-se numa atitude de humildade: Ninguém é dono da verdade, nenhuma denominação religiosa é dona da verdade. Jesus é a Verdade e está presente em toda a terra. Jesus não possui nem é possuído por ninguém. Ele não é propriedade particular de nenhuma Igreja cristã, mas permanece no seio de todas. Em nenhum momento Jesus se colocou como superior em relação à samaritana e seu povo, mas quis dialogar, interessando-se pela vida dela, pedindo-lhe água para matar a sede.

            2 – Dialogar sem discurso pronto nem verdades acabadas: No diálogo ecumênico não pode existir imposição de doutrinas nem de verdades preconcebidas. Jesus é a Verdade para todos. No particular de cada denominação religiosa, há modos diferentes de ver e compreender a realidade, Jesus e seu evangelho. Essa diversidade de visões e concepções constitui uma riqueza que precisa ser incrementada e mantida, pois o mundo atual padece pela falta de convicções profundas de fé. É preciso ir ao encontro do outro com um forte desejo de aprender com ele, expressando também, com humildade e profundidade nossas próprias convicções religiosas.

            3 – Acolher o que o outro tem de bom e evitar toda forma de juízo e condenação: A ninguém Jesus deu autoridade para julgar e condenar. Nenhum cristão recebeu de Deus a faculdade de condenar seu próximo, inclusive os que pertencem à mesma religião. Todos cremos em Jesus e no mesmo evangelho. O espírito de competição e a tendência de olhar o negativo no outro e na sua respectiva denominação religiosa devem ser erradicadas, pois causam separação e intolerância religiosa. O outro sempre tem algo a nos ensinar. Mesmo que aparentemente não pareça ter, mas somente o fato de ser um outro diferente, aí há aprendizado. Enxergar a bondade de Deus que está no outro é uma virtude necessária para o ecumenismo.

            4 – Aproximar-se para ver, compreender e se envolver: Não há ecumenismo na cultura do “cada um no seu quadrado”! Comunhão é proximidade e envolvimento com o outro, sem medo de ser feliz. Não se aprende sem este necessário envolvimento. Sem participação na vida do outro, corre-se o risco de tudo não passar de mera diplomacia, mero discurso que somente aparenta unidade. Como compreender o outro sem conhecer a sua realidade, o seu contexto vivencial? Como fez Jesus, é necessário partilhar a água, a conversa, a alegria, o pão e a esperança. Jesus foi acolhido porque foi ao encontro para anunciar a Boa Notícia da libertação, da inclusão dos excluídos, da ressurreição dos perseguidos e mortos.

            5 – Viver a cultura do encontro para o reconhecimento e promoção das diferenças: O encontro das diferenças é coisa bela de ver e viver! É pura graça de Deus, dom do seu Espírito. O cristão feliz e comprometido com o anúncio do evangelho de Jesus compreende o valor da unidade nas diferenças e com o testemunho da própria vida torna possível esta feliz utopia do Reino: A unidade dos cristãos. A edificação do Reino de Deus neste mundo está intimamente ligada à unidade cristã na diversidade das expressões religiosas. Unidos no amor de Jesus, os cristãos conseguem dar um testemunho eloquente de unidade e paz para o mundo atual, marcado pela intolerância religiosa e pelas diversas formas de violência.

            Por fim, é preciso repetir sem cessar o ensinamento fundamental de Jesus sobre a unidade cristã: Reconhecer as diferenças, unir-se nas lutas pela promoção da dignidade humana, rumo ao Reino definitivo. Não podemos perder tempo com brigas motivadas pelas diferenças de doutrinas e formas de culto. É preciso ir além, na direção do Reino, sendo presença do Ressuscitado no mundo. Não precisamos de inimizades entre os cristãos, mas unidos somos chamados a enfrentar, com coragem e ousadia, os grandes inimigos do Reino de Deus. É preciso unirmo-nos para a oração, a partilha do pão, o cultivo da esperança e para a colaboração nas grandes causas do Reino de Deus, Pai e Mãe de todos.


Tiago de França

sábado, 9 de maio de 2015

Permanecer no amor de Jesus

“Como o Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (Jo 15, 9).

            O amor caiu na banalização. Muito se fala sobre o amor e há quem o confunda com o egoísmo. O amor continua sendo uma experiência exigente, fonte de alegria e salvação para todos aqueles que o acolhem. A espiritualidade cristã nos desafia, propondo-nos o seguinte: Amar como Jesus amou. Precisamos amar como Jesus, ou seja, na liberdade e para a liberdade.

O verdadeiro amor liberta, o falso amor prende e aliena. Aliás, onde há prisão e alienação não há amor, mas egoísmo. Se com nosso amor prendemos e alienamos as pessoas e dizemos que as amamos, na verdade, estamos enganados. O verdadeiro amor não prende nem é interesseiro. Em outras palavras, o amor não serve para ser o meio pelo qual podemos nos aproveitar das pessoas. Onde há a busca pela satisfação dos interesses não há amor, mas egoísmo.

            Quem verdadeiramente ama sempre almeja libertar-se e ajudar na libertação do outro. É o que Jesus nos ensina: O amor para termos vida plena. As pessoas podem possuir todos os bens, mas a vida e a liberdade não dependem desses bens. Elas podem também adquirir toda a ciência, mas a vida também não depende do conteúdo de seus conhecimentos. Elas ainda podem ter boas intenções e desejos, mas a vida requer atitudes de amor.

No evangelho encontramos o missionário Jesus, o enviado do Pai, amando gratuita e generosamente as pessoas, libertando-as de todo mal. Ele nos ensina que para nos libertarmos do mal só temos um caminho: O caminho do amor. O amor é o caminho. Fora do amor não há saída, não há salvação. Para seguir Jesus é preciso amar como ele amou. Esta é a exigência do caminho. Sem amor não há seguimento, não há fé, não há verdadeira amizade, não há felicidade, não há religião autêntica.

            Jesus não nos ensinou uma religião, mas nos abriu o caminho do amor. O amor liberta do egoísmo, da mentira, da ilusão, do espírito de superioridade, da mera satisfação de nossos interesses mesquinhos, de nossa frieza e indiferença, da cegueira e da covardia, da falta de perdão, das nossas ambições desmedidas, de nossos apegos doentios, da falsa aparência de santidade, da hipocrisia; enfim, o amor nos liberta de nós mesmos, deixando-nos livres, abertos, disponíveis e sempre atentos à vontade de Deus.

Sem amar como Jesus amou é impossível encontrar a saída para nos libertarmos desses males que nos transformam em pessoas prejudiciais e perigosas. Fora do amor estamos entregues às forças do mal e ao poder da morte. Somente o amor nos faz encontrar repouso e paz.

            Como Jesus amou? Jesus amou os pecadores, acolhendo-os. Ele não os julgou nem os condenou. Esta é nossa grande tentação: Queremos amar as pessoas transformando-as naquilo que a gente deseja. A gente sempre quer que o outro seja de acordo com a nossa vontade. Há um desejo violento de controlar o outro, submetendo-o aos nossos caprichos. Toda pessoa é tentada a fazer isso. Ninguém escapa dessa tentação. Poucos conseguem resistir.  

Quando queremos mudar o outro em nome do amor, terminamos sufocando o amor. Quando este é sufocado, as várias formas de apego tomam o seu lugar. E onde há apego há violência contra o outro e onde há violência não há paz. Muito facilmente, rejeitamos a maneira como Jesus amou para amarmos a partir dos nossos desejos, geradores de apegos. Enquanto não nos convertermos ao estilo de Jesus não aprenderemos a amar a nós mesmos nem ao próximo. Trata-se de um chamado universal, aberto e dirigido a todas as mulheres e homens de boa vontade.

Eis, portanto, as características do amor de Jesus: abertura, gratuidade, generosidade, mansidão, reciprocidade, fidelidade, ausência de julgamento e condenação, aproximação, ausência de medo, paciência, perseverança, serviço ao outro, alegria e liberdade. Estas virtudes fazem parte do estilo de Jesus, é a sua maneira de amar. Se quisermos segui-lo de verdade não há outro caminho senão este: “Isto é o que vos ordeno: amai-vos uns aos outros” (Jo 15, 17).

Em um mundo marcado pela indiferença, que se manifesta pelas inúmeras formas de violência contra a dignidade da pessoa humana, os seguidores de Jesus precisam, urgentemente, fazer a diferença, amando como Jesus amou: na liberdade e para a liberdade. Com nossas próprias forças jamais conseguiremos amar como Jesus porque somos limitados e fracos, mas se nos unirmos a Ele, com certeza, podemos todas as coisas no amor. Fora do amor de Jesus não adianta ser religioso, pois religião sem amor não tem nenhum valor diante de Deus.


Tiago de França

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Uma reflexão sobre a Igreja à luz do n. 49 da Evangelii Gaudium

“Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa em um emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’” (Mc 6, 37).

            O n. 49 da exortação apostólica Evangelii Gaudium, do papa Francisco é de grande inspiração para pensarmos a vida e a missão da Igreja no mundo atual. Claro que se trata de um tema que exige muito espaço. Por isso, neste breve artigo iremos discorrer, brevemente, sobre alguns pontos fundamentais explicitados pelo papa no respectivo número desta sua importante exortação para toda a Igreja.

Tempo oportuno para sair...

            Sair para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Eis, portanto, a missão da Igreja: oferecer, na liberdade e na gratuidade, a vida de Jesus. Para isto, a própria Igreja precisa experimentar esta vida de Jesus. Internamente, na comunidade dos discípulos, os que estão no caminho precisam experimentar a vida de Jesus. Experimentar não é ter uma ideia, não é mera imaginação ou compreensão puramente intelectual. Não dispensando o valor da compreensão e do conhecimento de Jesus, o discípulo é chamado a experimentá-lo e senti-lo presente na sua vida porque somente após ter se encontrado com ele é que será capaz de oferecê-lo à multidão faminta.

            Olhando a tibieza de muitas almas, observando com silêncio e ternura, lamentamos ao reconhecer que falta essa experiência de encontro afetivo e efetivo com a vida de Jesus no seio da Igreja. Parece existir mais um culto do que uma caminhada diuturna com Jesus, o divino Pastor. Falta intimidade com ele, que não é oriunda somente da experiência orante, mas, sobretudo, da comunhão fraterna. Jesus continua esperando no outro. Este parece cada vez ignorado na indigência, miséria, confusão, enfim, nas regiões enlameadas deste mundo. Para chegar até Jesus é necessário sair. Trata-se de uma atitude espiritual, humana e, portanto, existencial. É um movimento constante do discípulo orante e peregrino, que sente o coração arder quando escuta seu Mestre falar das Escrituras a caminho de Emaús.

O caminho: acidente, ferida e enlameamento...

            Vivemos prevenidos, querendo a todo custo nos salvar. Há uma excessiva preocupação pelos planos e seguros da vida. A maioria vive hoje pensando no amanhã. Poucos estão acordados. Há uma busca de tudo, menos do Cristo que se encontra no outro. Isto gera enfermidade, tira a verdadeira alegria e causa a morte de muitos cristãos. Assim como Jesus, o papa aponta para o acidente. Acidenta-se por causa dos riscos. Quem não corre riscos não está exposto a acidentes. Quem vive no conforto, devidamente assegurado, está tranquilo, mas não tem paz. Esta tranquilidade, artifício do demônio, desvia o discípulo do caminho de Jesus. Com Jesus não há prevenção contra os acidentes da missão. Acidentar-se faz parte, é condição para a missão. Não há missionário que saia ileso, pois a vocação missionária conduz à cruz de Cristo.

            Ao acidentar-se, aparecem as feridas. Coisa comum da condição humana. A perfeição evangélica se manifesta nos membros acidentados do Corpo de Cristo que é a Igreja. Este é um mistério sublime, que escapa à inteligência humana. É a realidade daqueles missionários presentes no meio do povo santo e pecador: amigos dos ladrões e das prostitutas, dos bêbados e dos usuários de drogas, enfim, companheiro de luta das minorias abraâmicas. Facilmente, o missionário se fere porque corre riscos nos lugares de encontro com os crucificados da história. A hagiografia dos mártires não nos deixa mentir. Basta-nos um exemplo da história recente da Igreja no Brasil: Irmã Dorothy Mae Stang, mártir da Igreja na Amazônia, brutalmente assassinada por aqueles que devoram a vida da floresta. O testemunho desta santa mulher é de participação na paixão, morte e ressurreição de Jesus.

            Há muita lama e sujeira neste mundo. Os discípulos de Jesus convivem com os considerados pecadores públicos. Estes pecadores, prediletos de Jesus, não escondem suas feridas. Elas são chagas abertas e dolorosas, que clamam pelo óleo da misericórdia. Também os discípulos de Jesus são pecadores, sujos de lama. No caminho fazem a experiência paulina do quanto mais se manifesta o pecado, mais se manifesta a misericórdia de Deus. Em meio ao pecado e às forças de morte, o Ressuscitado lhes revela a sua presença, a sua força e seu amor. Trata-se da experiência de Zaqueu, chefe dos cobradores de impostos, que tendo reconhecido e acolhido Jesus em sua casa, converteu-se, encontrando-se com a Luz que liberta de toda escravidão, cegueira e escuridão.

Preocupações, obsessões e o fardo da lei...

            O papa denuncia a falta de amor e o apego à lei. Todas as leis religiosas são frutos da imaginação e inteligência humanas. Não é, portanto, Deus o autor de nenhuma lei religiosa. Por isso, ninguém recebeu Dele a missão para obrigar a quem quer que seja a obediência à lei. Todas as leis são humanas, tantos as civis quanto as religiosas. Por isso mesmo, são relativas e sujeitas à evolução do tempo e da história. Na vida eclesial, os Concílios são a prova por excelência do aperfeiçoamento das leis à luz do evangelho e dos sinais dos tempos. O apego à lei não gera outra coisa senão a morte da vida da Igreja. Quando se absolutiza a lei, marginaliza-se o evangelho. A história da Igreja não nos deixa mentir. 

            Em quaisquer das comunidades eclesiais que constituem a Igreja no mundo, quando a lei é colocada no centro, o evangelho é colocado de lado. E os sintomas são claros: obsessões, que se manifestam nos excessos da disciplina, nas fobias comportamentais, na falta de controle emocional, no julgamento e condenação de pessoas, na falsa aparência de santidade, na falta de caridade com os empobrecidos, na passividade diante do sofrimento do outro, da falta de respeito às pessoas, enfim, naquilo que o papa denominou na mesma exortação de mundanismo espiritual.  

Os pastores sabem que o povo de Deus não se deixa facilmente escravizar. Todos sabemos que o povo conhece o que contraria a vontade de Deus. O Espírito do Senhor presente na vida do povo torna-o sensível aos apelos do evangelho e à percepção daquilo que contraria este mesmo evangelho. O povo sabe que só há evangelho onde há caridade. Somente aí há obediência.

            Jesus não pediu para anunciar uma lei totalmente reciclada por ele. Deus não o enviou com a missão de legislador nem de reformador. Jesus anunciou uma Boa Notícia que consistia nele mesmo, entregue para a vida do mundo. E o povo de Deus em marcha rumo à plenitude do Reino é chamado a viver a sua missão neste mundo: ir tornando este Reino realidade, até que o próprio Cristo Jesus conclua a obra iniciada conforme os desígnios divinos.

Estruturas que geram o pecado e a morte...

            O ser humano tende à acomodação. É uma gravíssima tentação a ser vencida, diuturnamente. Tendemos a vivermos em função da procura por sombra e água fresca. Rejeitamos a cruz e queremos a glória. Queremos a ressurreição sem a experiência da cruz. Ao longo dos séculos, inúmeras estruturas foram criadas, recriadas e reforçadas. A elas se apegam inúmeras pessoas que se tornam infiéis ao evangelho. Jesus tirou seus discípulos da vida tranquila e os lançou em meio aos lobos deste mundo. Deu-lhes o Espírito da verdade e da liberdade. Estes discípulos saíram, feriram-se, acidentaram-se, enlamearam-se, foram perseguidos e mortos em nome do seu Mestre. Assim aconteceu porque eram desprovidos de estruturas humanas que os prendessem e acomodassem. Entregaram-se à missão, confiando na presença fiel do Ressuscitado.

            O chamado permanece o mesmo: renunciar às estruturas que corrompem para assumir os riscos da missão. Somente contando com a força divina este caminho é possível. Nunca foi nem será tarefa fácil. Em tempos de indiferença e falta de amor, o apelo de Jesus ressoa com mais força: Ide e evangelizai! A reforma da vida humana e de toda a Igreja passa, necessariamente, pela conversão ao amor. É necessário atender ao apelo ao amor. Enquanto este apelo não for correspondido, nada se transforma. Não há conversão possível. Hábitos, normas e estruturas que afastam do evangelho precisam, urgentemente, serem abandonados. Aquilo que não mais corresponde às exigências da missão precisa ser renunciado com coragem e ousadia profética.

Até quando?...

            Até quando o medo paralisará nossa vida e a vida eclesial? Por que preferimos a ilusão e a falsidade e, assim, abandonamos a verdade do evangelho? Quais as razões para a incansável satisfação de nossos interesses pessoais e corporativistas? Por que não conseguimos resistir às tentações do poder e do dinheiro? Há uma multidão de gente faminta, com sede de justiça e de paz. Desde o momento de nosso batismo, de nossa incorporação na grande Assembleia dos chamados à missão de anunciar e denunciar, Jesus nos olha nos olhos, aponta-nos para o povo e nos fala de nosso compromisso: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Não há nenhuma justificativa plausível para apresentarmos a Deus por nossa omissão diante do grito incessante da multidão. Fomos batizados no Cristo e somente morrendo com ele, com ele ressuscitaremos. Não sejamos, pois, covardes! “Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo!”

Tiago de França