“Saiamos,
saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a
Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos
Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas
estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às
próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que
acaba presa em um emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos
deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos
irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus
Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e
de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos
encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos
transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos,
enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar:
‘Dai-lhes vós mesmos de comer’” (Mc 6, 37).
O n. 49 da exortação apostólica Evangelii Gaudium, do papa Francisco é de grande inspiração para
pensarmos a vida e a missão da Igreja no mundo atual. Claro que se trata de um
tema que exige muito espaço. Por isso, neste breve artigo iremos discorrer,
brevemente, sobre alguns pontos fundamentais explicitados pelo papa no
respectivo número desta sua importante exortação para toda a Igreja.
Tempo
oportuno para sair...
Sair para oferecer a todos a vida de Jesus
Cristo! Eis, portanto, a missão da Igreja: oferecer, na liberdade e na
gratuidade, a vida de Jesus. Para isto, a própria Igreja precisa experimentar
esta vida de Jesus. Internamente, na comunidade dos discípulos, os que estão no
caminho precisam experimentar a vida de Jesus. Experimentar não é ter uma
ideia, não é mera imaginação ou compreensão puramente intelectual. Não
dispensando o valor da compreensão e do conhecimento de Jesus, o discípulo é
chamado a experimentá-lo e senti-lo presente na sua vida porque somente após
ter se encontrado com ele é que será capaz de oferecê-lo à multidão faminta.
Olhando a tibieza de muitas almas, observando com
silêncio e ternura, lamentamos ao reconhecer que falta essa experiência de
encontro afetivo e efetivo com a vida de Jesus no seio da Igreja. Parece
existir mais um culto do que uma caminhada diuturna com Jesus, o divino Pastor.
Falta intimidade com ele, que não é oriunda somente da experiência orante, mas,
sobretudo, da comunhão fraterna. Jesus continua esperando no outro. Este parece
cada vez ignorado na indigência, miséria, confusão, enfim, nas regiões
enlameadas deste mundo. Para chegar até Jesus é necessário sair. Trata-se de
uma atitude espiritual, humana e, portanto, existencial. É um movimento
constante do discípulo orante e peregrino, que sente o coração arder quando
escuta seu Mestre falar das Escrituras a caminho de Emaús.
O
caminho: acidente, ferida e enlameamento...
Vivemos
prevenidos, querendo a todo custo nos salvar. Há uma excessiva preocupação
pelos planos e seguros da vida. A maioria vive hoje pensando no amanhã. Poucos
estão acordados. Há uma busca de tudo, menos do Cristo que se encontra no
outro. Isto gera enfermidade, tira a verdadeira alegria e causa a morte de
muitos cristãos. Assim como Jesus, o papa aponta para o acidente. Acidenta-se
por causa dos riscos. Quem não corre riscos não está exposto a acidentes. Quem
vive no conforto, devidamente assegurado, está tranquilo, mas não tem paz. Esta
tranquilidade, artifício do demônio, desvia o discípulo do caminho de Jesus. Com
Jesus não há prevenção contra os acidentes da missão. Acidentar-se faz parte, é
condição para a missão. Não há missionário que saia ileso, pois a vocação
missionária conduz à cruz de Cristo.
Ao acidentar-se, aparecem as feridas. Coisa comum da
condição humana. A perfeição evangélica se manifesta nos membros acidentados do
Corpo de Cristo que é a Igreja. Este é um mistério sublime, que escapa à
inteligência humana. É a realidade daqueles missionários presentes no meio do
povo santo e pecador: amigos dos ladrões e das prostitutas, dos bêbados e dos
usuários de drogas, enfim, companheiro de luta das minorias abraâmicas. Facilmente,
o missionário se fere porque corre riscos nos lugares de encontro com os
crucificados da história. A hagiografia dos mártires não nos deixa mentir.
Basta-nos um exemplo da história recente da Igreja no Brasil: Irmã Dorothy Mae
Stang, mártir da Igreja na Amazônia, brutalmente assassinada por aqueles que devoram
a vida da floresta. O testemunho desta santa mulher é de participação na
paixão, morte e ressurreição de Jesus.
Há muita lama e sujeira neste mundo. Os discípulos de
Jesus convivem com os considerados pecadores públicos. Estes pecadores,
prediletos de Jesus, não escondem suas feridas. Elas são chagas abertas e
dolorosas, que clamam pelo óleo da misericórdia. Também os discípulos de Jesus
são pecadores, sujos de lama. No caminho fazem a experiência paulina do quanto
mais se manifesta o pecado, mais se manifesta a misericórdia de Deus. Em meio
ao pecado e às forças de morte, o Ressuscitado lhes revela a sua presença, a
sua força e seu amor. Trata-se da experiência de Zaqueu, chefe dos cobradores
de impostos, que tendo reconhecido e acolhido Jesus em sua casa, converteu-se,
encontrando-se com a Luz que liberta de toda escravidão, cegueira e escuridão.
Preocupações,
obsessões e o fardo da lei...
O papa denuncia a
falta de amor e o apego à lei. Todas as leis religiosas são frutos da
imaginação e inteligência humanas. Não é, portanto, Deus o autor de nenhuma lei
religiosa. Por isso, ninguém recebeu Dele a missão para obrigar a quem quer que
seja a obediência à lei. Todas as leis são humanas, tantos as civis quanto as
religiosas. Por isso mesmo, são relativas e sujeitas à evolução do tempo e da
história. Na vida eclesial, os Concílios são a prova por excelência do
aperfeiçoamento das leis à luz do evangelho e dos sinais dos tempos. O apego à
lei não gera outra coisa senão a morte da vida da Igreja. Quando se absolutiza
a lei, marginaliza-se o evangelho. A história da Igreja não nos deixa mentir.
Em quaisquer das comunidades eclesiais que constituem a
Igreja no mundo, quando a lei é colocada no centro, o evangelho é colocado de
lado. E os sintomas são claros: obsessões, que se manifestam nos excessos da
disciplina, nas fobias comportamentais, na falta de controle emocional, no
julgamento e condenação de pessoas, na falsa aparência de santidade, na falta
de caridade com os empobrecidos, na passividade diante do sofrimento do outro,
da falta de respeito às pessoas, enfim, naquilo que o papa denominou na mesma
exortação de mundanismo espiritual.
Os
pastores sabem que o povo de Deus não se deixa facilmente escravizar. Todos
sabemos que o povo conhece o que contraria a vontade de Deus. O Espírito do
Senhor presente na vida do povo torna-o sensível aos apelos do evangelho e à
percepção daquilo que contraria este mesmo evangelho. O povo sabe que só há
evangelho onde há caridade. Somente aí há obediência.
Jesus não pediu para anunciar uma lei totalmente
reciclada por ele. Deus não o enviou com a missão de legislador nem de
reformador. Jesus anunciou uma Boa Notícia que consistia nele mesmo, entregue
para a vida do mundo. E o povo de Deus em marcha rumo à plenitude do Reino é
chamado a viver a sua missão neste mundo: ir tornando este Reino realidade, até
que o próprio Cristo Jesus conclua a obra iniciada conforme os desígnios
divinos.
Estruturas
que geram o pecado e a morte...
O ser humano tende
à acomodação. É uma gravíssima tentação a ser vencida, diuturnamente. Tendemos a
vivermos em função da procura por sombra e água fresca. Rejeitamos a cruz e
queremos a glória. Queremos a ressurreição sem a experiência da cruz. Ao longo
dos séculos, inúmeras estruturas foram criadas, recriadas e reforçadas. A elas
se apegam inúmeras pessoas que se tornam infiéis ao evangelho. Jesus tirou seus
discípulos da vida tranquila e os lançou em meio aos lobos deste mundo. Deu-lhes
o Espírito da verdade e da liberdade. Estes discípulos saíram, feriram-se,
acidentaram-se, enlamearam-se, foram perseguidos e mortos em nome do seu
Mestre. Assim aconteceu porque eram desprovidos de estruturas humanas que os
prendessem e acomodassem. Entregaram-se à missão, confiando na presença fiel do
Ressuscitado.
O chamado permanece o mesmo: renunciar às estruturas que
corrompem para assumir os riscos da missão. Somente contando com a força divina
este caminho é possível. Nunca foi nem será tarefa fácil. Em tempos de
indiferença e falta de amor, o apelo de Jesus ressoa com mais força: Ide e
evangelizai! A reforma da vida humana e de toda a Igreja passa,
necessariamente, pela conversão ao amor. É necessário atender ao apelo ao amor.
Enquanto este apelo não for correspondido, nada se transforma. Não há conversão
possível. Hábitos, normas e estruturas que afastam do evangelho precisam,
urgentemente, serem abandonados. Aquilo que não mais corresponde às exigências
da missão precisa ser renunciado com coragem e ousadia profética.
Até
quando?...
Até quando o medo
paralisará nossa vida e a vida eclesial? Por que preferimos a ilusão e a
falsidade e, assim, abandonamos a verdade do evangelho? Quais as razões para a
incansável satisfação de nossos interesses pessoais e corporativistas? Por que
não conseguimos resistir às tentações do poder e do dinheiro? Há uma multidão
de gente faminta, com sede de justiça e de paz. Desde o momento de nosso
batismo, de nossa incorporação na grande Assembleia dos chamados à missão de
anunciar e denunciar, Jesus nos olha nos olhos, aponta-nos para o povo e nos
fala de nosso compromisso: “Dai-lhes vós
mesmos de comer”. Não há nenhuma justificativa plausível para apresentarmos
a Deus por nossa omissão diante do grito incessante da multidão. Fomos
batizados no Cristo e somente morrendo com ele, com ele ressuscitaremos. Não
sejamos, pois, covardes! “Saiamos,
saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo!”
Tiago de França