Nestes dias, nas redes
sociais, principalmente no Facebook, a polêmica em torno da encenação da
crucificação de Jesus durante a parada do orgulho LGBT (lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais), em São Paulo, no dia 7 do corrente mês, chamou
a atenção de todos. De modo geral, cristãos de inúmeras Igrejas publicaram seu
repúdio sobre o uso indevido da cruz de Cristo no evento. As opiniões são
diversas a respeito do fato. No mundo religioso, entre os mais conservadores,
as condenações são veementes. Há o que podemos chamar de demonização da população LGBT. Entre os neopentecostais, tanto
católicos quanto evangélicos, opiniões extremistas são de causar vergonha:
julga-se e condena-se em nome de Jesus. É possível analisar o fato à luz do
evangelho, utilizando-nos do remédio da
misericórdia e não de condenações desnecessárias? Sim, é o que faremos no
breve espaço deste artigo.
Inicialmente, é preciso dizer que não se trata de apoiar
a religião e condenar pessoas homoafetivas, nem de absolvê-las em detrimento da
religião. Os vocábulos juízo e condenação são inadequados ao diálogo entre o
mundo religioso e o mundo homoafetivo. Dois motivos inicialmente podem ser
considerados: primeiro, porque Jesus proibiu, severamente, o julgamento e
condenação das pessoas; segundo, porque não há uma separação entre os dois
mundos. Não é nenhuma novidade o fato de que no mundo religioso encontramos
inúmeras pessoas homoafetivas. Este segundo motivo já coloca as Igrejas em uma
profunda contradição. A história desautoriza as Igrejas para emitirem qualquer
condenação a pessoas homoafetivas.
Olhando para o evangelho, encontramos Jesus no meio dos
pecadores públicos, sendo acusado de comilão
e beberrão, amigo dos cobradores de impostos e pecadores. Isto foi um
escândalo para a época. Além disso, Jesus tinha a fama de ser um violador das
leis judaicas. Estas e outras coisas lhe renderam perseguições e o levaram à
morte de cruz. Viver livremente entre os pecadores: eis a opção de Jesus. Aliás,
Jesus inaugurou o Reino de seu Pai a partir da realidade dos pecadores. Teologicamente
falando, Deus se manifestou na humanidade, na pessoa de Jesus, entre os
pecadores, para a salvação destes. Quem nega esta verdade, nega o próprio
Cristo e com ele não tem nenhum vínculo. Ele revelou que com o Pai e o
Espírito, a salvação acontece a partir das vítimas das opressões de todos os
tempos e lugares. Jesus não era filho de sacerdote, nem foi criado na “pureza”
do Templo, mas nasceu em Nazaré, cidade mal afamada do Império Romano. Questionava-se
se poderia sair algo bom de Nazaré!
Este é o Cristo da genuína fé cristã. Não há outro. É ele
que se encontra no evangelho, e não há outro evangelho senão o dele. Seu mandato
missionário é claro: Ide e anunciai a Boa Notícia para toda a humanidade! Os cristãos,
chamados a segui-lo, tem esta missão a cumprir: anunciar a Boa Notícia. Nesta não
há julgamento e condenação de pessoas. A ninguém Jesus conferiu o poder de
julgar e condenar. Quem se intitular juiz de seu próximo em nome de Jesus está
se condenando. Não há meio termo: Quem condenar será condenado! Este é um
princípio evangélico que encontra seu fundamento em um outro: Todos somos irmãos.
Diante de Deus todos somos pecadores. Somente Deus é Santo. Um pecador não tem
autoridade para julgar e condenar outro pecador, pois um cego não guia outro
cego. Portanto, peca gravemente quem julgar e condenar pessoas homoafetivas. Deus
não condenou estas pessoas, nem nas Escrituras nem na pessoa de Jesus.
O
que na Bíblia está escrito como possibilidade de condenação de homoafetivos é
algo que precisa ser lido à luz do contexto epocal (Quem, onde, quando, para
quem e com que finalidade escreveu). Por isso, extrair versículos bíblicos,
descontextualizando-os, para julgar e condenar pessoas é um pecado grave que se
comete contra o Deus que inspirou o texto sagrado. O princípio que rege a
genuína hermenêutica bíblica é: A Bíblia não foi escrita para condenar as
pessoas, em hipótese alguma. Em nenhuma passagem bíblia Deus condena o ser
humano à perdição eterna. A vingança, o preconceito, a discriminação, a acepção
de pessoas e toda espécie de comportamento desumanizador não tem nenhuma
legitimidade nas Escrituras Sagradas. Estas foram escritas para transmitir a
mensagem de salvação e não de condenação da humanidade. Quem julga e condena em
nome de Deus e com pseudofundamento na Bíblia irá responder diante de Deus por
tão grave pecado.
Todas as vítimas das inúmeras injustiças que se cometem
neste mundo podem entrar em plena comunhão com a cruz de Cristo. Na cruz, Jesus
se uniu a todas aquelas pessoas feridas em sua dignidade, perseguidas e
assassinadas. Em Jesus, as pessoas homoafetivas são nossas irmãs. Também elas
foram remidas no sangue de Jesus. E para o escândalo dos cristãos, juntamente
com os ladrões e prostitutas, elas entrarão no Reino de Deus primeiro do que os
líderes religiosos. O próprio Jesus fez tal afirmação, dirigindo-se às
autoridades religiosas de seu tempo. Quando julgam e condenam os pecadores, os
cristãos se esquecem dessa parte do evangelho, fazendo o que Jesus reprova. Todo
sofredor, independentemente de sua situação sexual, encontra acolhida no
coração amoroso da Comunidade Trinitária. Esta é Amor e neste não há julgamento
e condenação de quem quer que seja. Deus é incapaz de condenar porque Ele é
amor. Ele somente cura, restaura, concede a vida e salva. Por isso, é pura
misericórdia infinita. Os cristãos precisam aprender com Jesus, seu Senhor e
Mestre, a serem misericordiosos e amorosos, sendo, somente desse modo, fieis ao
evangelho.
A atriz Viviany Beleboni, transexual de 26 anos, que
apareceu na parada da comunidade LGBT, utilizando-se do símbolo da cruz, como “crucificada”,
está em plena sintonia com o sentido teológico da cruz de Cristo. Na cruz se
encontram os crucificados da história: as vítimas das inúmeras formas de
violência que se cometem neste mundo, contra as “minorias abraâmicas”
(expressão do santo bispo dom Helder Câmara). A cruz de Jesus está em todos os
lugares nos quais as pessoas estão sendo massacradas. Jesus não se encontra nas
imagens foleadas a ouro e prata de nossas Igrejas, mas se encontra sofrendo na
carne das vítimas do ódio, do preconceito, da discriminação, do racismo e toda
forma de ostracismo social. O sentido da cruz está no Crucificado. É ele o
centro da fé cristã. Jesus não foi levado ao madeiro da cruz para transformá-la
num símbolo religioso. Ele não pensava em símbolo, mas nas pessoas massacradas
pelo Império e pelos fardos pesados impostos pelos religiosos de sua época.
Na ótica do Reino, Deus não está preocupado se uma pessoa
é lésbica, gay, travesti, transexual ou heterossexual. Todos são irmãos e seus
filhos amados. Este julgamento e acepção que se faz não é coisa de Deus, mas
problema humano. Trata-se da dificuldade que se tem em aceitar o outro como ele
é. Trata-se, ainda, da dificuldade que se tem em aceitar a diversidade de todas
as realidades. O mundo nunca foi nem jamais vai ser uniforme. As Igrejas
precisam aprender a pedagogia de Jesus, presente em seu agir missionário:
Aproximar-se das pessoas, escutá-las com a devida atenção e respeito, buscar
compreendê-las em seus contextos e histórias, amá-las para que se sintam
acolhidas, redimidas e salvas. Este é o remédio da misericórdia. É preciso
também compreender que os símbolos apontam para a realidade, e que esta é mais
importante que aqueles. Não são os símbolos que salvam, e não foi Deus quem o
criou. A cruz simboliza salvação, não condenação. Jamais se pode condenar uma
pessoa por ela ter se identificado com a cruz de Jesus. Isto é ignorância,
covardia, desumanidade, farisaísmo, pecado grave.
Por fim, queremos concluir nossa reflexão, dando ênfase a
algumas afirmações necessárias para uma fé esclarecida, sadia e restauradora:
1) Deus é Amor e quem Nele crê só está na verdade se amar o próximo sem cair na
tentação de mudá-lo; 2) Deus é Misericórdia e quem Nele crê só está na verdade
se aprender a perdoar o próximo, sem guardar ressentimentos; 3) Deus é Comunhão
e quem Nele crê só está na verdade se encontrá-lo no rosto sofrido do outro, na
acolhida deste rosto revelador do amor divino; 4) Deus é Paz e quem Nele crê só
está na verdade quem aprendeu a ser pacífico, não compactuando com a cultura da
eliminação do outro, por causa de suas diferenças e 5) Deus é Liberdade e quem
Nele crê só está na verdade quando se coloca a serviço da libertação integral
do outro. Quem reforça a opressão do outro é inimigo de Deus. Religião sem amor
é hipocrisia, e somente o amor liberta as pessoas de seus males.
Tiago de França
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