domingo, 30 de agosto de 2015

O amor e a lei

“Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc 7, 6).

            Aquele que ama não precisa ficar preocupado com o cumprimento da lei, pois já a cumpre fielmente. Há muito tempo os cristãos sabem disso, mas há uma dificuldade enorme para aceitar esta verdade libertadora. Isto ocorre porque há uma tendência que – em muitos casos, chega a ser doentia – de apego à lei. Há pessoas obcecadas pelo cumprimento da lei. Querem, a todo custo, fazer valer a lei. Estão subordinadas à lei de modo doentio. A psicologia tem muito a dizer sobre este apego, mas aqui não queremos discorrer sobre. Basta-nos dizer, em plena sintonia com o evangelho de Jesus, que o apego à lei é um pecado que tem levado muita gente à perdição.

            É um equívoco ensinar às pessoas a fiel observância da lei como caminho para a salvação. A ninguém Jesus deu autoridade para tal ensino. Quem o faz está na contramão do evangelho. É preciso indicar o amor como o único caminho que leva à salvação, como a via segura para o cumprimento de toda a lei. O discípulo de Jesus, entregue ao amor, não vive em função da lei, mas do amor. Somente quem ama observa os mandamentos de Deus, e também as leis humanas. Quem ama não mata, não suborna, não trapaceia, não adultera, não mente, não ilude, não falseia, não ridiculariza, não rouba; enfim, não age contra o essencial porque o amor não se contradiz.

            Os que amam não faltam com a caridade, verdade, liberdade e bom senso. São livres da falsa prudência dos hipócritas. Não são fóbicos, mas serenos e seguros de si. Pensam sempre naquilo que constitui o núcleo fundamental da fé cristã: A caridade na verdade. Estão livres dos excessos dos inseguros e da hipocrisia dos escravos da letra da lei. Vivem em plena sintonia com o essencial, sem perder tempo com o secundário. E o secundário é aquela preocupação exacerbada com a observância rigorosa da lei em nome de um falso zelo pela Casa do Senhor. Esta Casa, Corpo místico de Cristo no mundo, somente pode ser zelada pela ternura e pelo cuidado das mãos generosas dos que amam a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.

            Onde está a Casa do Senhor? Quem a constitui? São nossos corpos santos, violentados cotidianamente pelas intempéries do tempo presente. O outro é a morada de Deus, Casa santa a ser cuidada com o óleo do amor. Este cuidado corresponde a manter o coração próximo de Deus. Se o mais importante é o cumprimento rigoroso das leis humanas em detrimento das pessoas, então honramos a Deus somente com os lábios. Desse modo, em muitas realidades religiosas e seculares, tudo aparenta ordem e disciplina, mas as pessoas estão sendo excluídas e relegadas ao esquecimento. De que adianta ordem e disciplina sem amor? Tudo não passa de secura, cinza, escuridão, aparência de vida, morte. Há muita morte em muitos lugares ordenados e disciplinados. Há muito cadáver ambulante entre os cristãos!

            Ainda há tempo, na vida particular e eclesial, para seguirmos o mandamento de Deus e abandonarmos as tradições dos antigos. Hoje, muitas de nossas tradições já não ajudam, mas somente atrapalham, atravancam o caminho. Jesus quer mulheres e homens, discípulos missionários livres e impregnados de amor; pessoas que transbordam alegria e paz, de entranhas cheias de doçura e bondade, para adocicar e iluminar esse mundo de trevas, cheio de amargura.  

Abramos, pois, o nosso coração para a força que conduziu Jesus trabalhar em nós. Esta força tem o poder – somente ela o tem – para nos libertar de tudo aquilo que nos torna impuros, e que sai de dentro de nós: más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Mente todo aquele que se afirmar cristão sem se dispor a abrir o coração para o Espírito do Senhor, a fim de que este faça o seu ofício divino, libertando-nos para o amor. Assim renovados, seremos sal e luz do mundo e o Reino de Deus vai se tornando realidade em nós e entre nós.


Tiago de França

sábado, 22 de agosto de 2015

Optar por Jesus

“A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68).

            Estando com seus discípulos, eis que Jesus escuta a reclamação deles: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (Jo 6, 60). Os discípulos não suportam a radicalidade da palavra de Jesus. Este é um problema que persegue o itinerário da vida cristã até os dias de hoje: Muitos dos seguidores de Jesus não suportam a sua palavra. É comum encontrarmos interpretações superficiais da palavra de Jesus, feitas com o objetivo de tentar ocultar a sua força e a sua radicalidade. Isto é demasiadamente perigoso porque é uma traição. Trair Jesus é deixar a sua palavra de lado, e no lugar colocar um discurso vazio, que nada ensina e nada converte.

            Como identificar a verdadeira palavra de Jesus? O que fazer para não se deixar levar pelas mentiras dos discursos, infelizmente presentes em muitas de nossas Igrejas? Não precisamos criar uma resposta, pois o próprio Jesus fala do conteúdo de sua palavra: “As palavras que vos falei são espírito e vida” (v. 63). Se a pregação que escutamos constitui uma repetição infinita de doutrinas que nada falam, nela não está a palavra de Jesus. Quais os efeitos de nossas homilias, sermões, discursos? Se não passam de meras formalidades, então não falam da palavra de Jesus. O povo deixa os nossos templos sem ter escutado a palavra de Jesus e, assim, não se converte.

            Por que após anos de estudos teológicos e exegéticos nas faculdades de teologia, muitos de nossos pastores não pregam a palavra de Jesus? Temos três possíveis respostas para esta indagação. A primeira, porque eles mesmos não aceitam a palavra de Jesus. Ela lhes parece dura demais. Então, inventam outras coisas para falar ao povo. Ao invés de pregar o evangelho, pregam moralismo. Jesus nunca pediu aos seus discípulos para pregar a moral e ensinar os bons costumes. O mandato missionário é para o anúncio do evangelho. Fora disso não há missionário. Por isso, quando os pastores começam a falar ao povo, ensinando-o a respeito do que é ou não pecado, estão fugindo da palavra de Jesus. O Filho de Deus não enviou ninguém com a missão de legislar sobre a vida das pessoas, catalogando pecados.

            A segunda, porque a palavra de Jesus cria a liberdade. Infelizmente, muitos de nossos pastores tem medo de conviver com pessoas livres. Eles sabem que a palavra de Jesus produz fruto, e um dos maiores é a liberdade. O espírito da palavra de Jesus gera a liberdade nas pessoas. Todo aquele que se encontra com esta palavra, aceitando-a e vivendo-a com o coração, transforma-se noutro Cristo. Aqueles pastores assim procedem porque atuam como funcionários de uma empresa preocupada em não perder clientes. Recusam-se a pregar a palavra de Jesus porque sabem que ela gera pessoas livres em relação à religião, impossíveis de ser manipuladas.

            A terceira resposta está intimamente ligada à segunda: Ocultando a palavra de Jesus, muitos de nossos pastores não desejam a conversão do povo de Deus. Querem que o povo permaneça na mesmice, na tibieza de uma vida fútil, superficial, alienada, passiva, sujeitada, estéril. Quando as pessoas não reclamam, silenciando-se e contentando-se com o rubricismo litúrgico incapaz de evangelizar, o resultado logo aparece: Pastores e fieis dispersos, desorientados, cadáveres ambulantes frequentando o culto, numa repetição tediosa de gestos e palavras que não levam a nada. Tudo não passa de aparência. Todos fazem de conta que seguem Jesus, mas o desconhecem.

            As palavras de Jesus são espírito e vida: O que isto significa? Qual a nossa experiência com a palavra de Jesus? Ela tem realizado algum efeito em nossas vidas? Ela tem nos transformado, interiormente? Entre todas as palavras proferidas pelos homens, somente a palavra de Jesus é capaz de transformar uma pessoa. Somente ela permanece para sempre. Como afirmou tão acertadamente o apóstolo Pedro: “Tu tens palavras de vida eterna” (v. 68). Quem aderir à palavra de Jesus já participa da vida eterna. Somente ela confere eternidade à vida. A compreensão, aceitação e prática da palavra de Jesus convertem a pessoa, criando nela uma fonte que jorra para a vida eterna. Por meio da palavra de Jesus participamos, misteriosamente, da vida de Deus já neste mundo. Ela nos concede a visão de Deus.

            Quem guarda a palavra de Jesus está livre do medo de todas as coisas, inclusive do medo da morte. Também está livre da tristeza, do desânimo e de toda forma de prisão. Trata-se de uma experiência de encontro com esta palavra de vida, repleta de espírito. No interior de nossas entranhas, ela nos faz experimentar Deus. Misteriosamente, ela nos transforma naquilo que Deus quer: Em irmãos universais, holisticamente sintonizados com todas as coisas. Assim, penetrados por esta palavra, somos, de fato, sal da terra e luz do mundo. Sem a palavra de Jesus estamos na escuridão, dominados pelos medos que este mundo procura nos impor. Sem ela é impossível optar por Jesus e perseverar em seu caminho. Ninguém pode dizer que segue a Jesus sem aderir à sua palavra. É esta que faz o discípulo missionário.

Somente os que a aderem podem iluminar, atrair, santificar, guardar, jorrar, rejuvenescer, nascer de novo, ser irmão, fazer resplandecer a presença amorosa e libertadora de Deus no mundo. Para isso, a palavra precisa chegar à mente e ao coração, ao mais profundo do nosso ser. É preciso que a deixemos trabalhar em nós. A força desta palavra é infinita. É ela que nos converte e nos salva. É a chave que nos abre as portas da eternidade, ainda estando em nossos corpos mortais. Ela é um mistério de amor, que sonda e purifica as profundezas do nosso ser. Por meio dela, Deus permanece em nós, concedendo-nos uma alegria extraordinária, amando-nos, salvando-nos, hoje e sempre.


Tiago de França

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A vocação dos místicos

“Se alguém me tem amor, há de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos morada” (Jo 14, 23).
Introdução

            O objetivo desta reflexão é oferecer um olhar sobre a vida mística, uma tentativa de falar sobre o chamado e a fé dos místicos. Quem são os místicos, e em que consiste a vida mística? Como se manifesta a fé dos místicos? Considerando o tempo presente, com seus sinais evidentes, assim como algumas manifestações místicas no decorrer da história da Igreja, ousaremos algumas afirmações. Antes, é preciso afirmar que a vida mística é misteriosamente diferente das demais formas de vida cristã, pois apresenta algumas características próprias e fundamentais.

            Nossas considerações partem do testemunho de grandes nomes da vida mística da história da Igreja, dentre os quais podemos citar Santa Teresinha do Menino Jesus, São João da Cruz, São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo, Dom Helder Câmara, Anthony de Mello, Thomas Merton, Pe. Alfredinho e o Pe. José Comblin. Há muitos outros, tanto falecidos quanto vivos.

Quero mencionar, ainda, Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia – MT. Para mim, é um dos grandes místicos ainda vivo da Igreja no Brasil. Tenho estima por estes santos, pelas suas histórias de vida e escritos. Há muito tempo os leio, assim como a tantos outros. Desde minha infância tenho me interessado pelo tema da vida mística, e creio que os místicos, mais do que os teólogos, são os que mais conhecem o segredo de Deus, a Sua misericórdia.

  1. A vocação dos místicos
            O místico não é um ser superior aos demais humanos, nem alguém que goza de privilégios na relação com Deus. Também não é alguém que tenha sido chamado por Deus para viver isolado dentro de uma floresta. O místico não é uma criatura anormal, nem estranha, mas um ser humano comum, dotado de virtudes e defeitos. É alguém profundamente convicto de sua condição de pecador remido no sangue de Jesus.  

Por isso, não se sente superior a nada nem a ninguém. A santidade do místico está neste assumir-se pecador diante de Deus e dos homens. Desprovido de qualquer espírito de superioridade e vaidade, coloca-se e permanece na presença amorosa de Deus. Pode ser identificado pela sua simplicidade, mas o que, na verdade, o identifica não é o semblante piedoso que alguns possam ter, mas a sua atitude amorosa na relação com todas as pessoas e com a natureza.

            Como vivem e onde se encontram? São Francisco de Assis vivia no meio do mundo, como Jesus, não tinha onde reclinar a cabeça. Após renunciar à vida cômoda que tinha junto à família, tornou-se um pobre homem, um “lascado”, um frade. Santa Teresinha era monja carmelita, viveu recolhida na vida conventual. Na difícil vida comunitária descobriu a vocação para o amor. Tornou-se doutora da Igreja e padroeira das missões. Dom Helder Câmara tornou-se padre e bispo. Converteu-se aos 56 anos, quando bispo no Rio de Janeiro. Descobriu Jesus nos pobres. Conhecido como “bispo vermelho”, entregou-se à subversão evangélica. Foi perseguido dentro e fora da Igreja. Entrou para a história como um dos bispos que viveu a opção pelos pobres, praticando a misericórdia e a justiça divinas. Poeta e escritor, traduziu a mensagem de Jesus, anunciando-a em várias partes do mundo. Morreu santamente.

            Estas e tantas outras histórias evangélicas de vida mostram que Deus suscita os místicos em diferentes lugares e em variadas formas de vida: uns foram monges no deserto, outros foram bispos, outros filósofos e teólogos, entre outros. Houve místicos que mal sabiam ler e escrever. Alguns viveram em cidades, outros no campo. Também existiram, existem e continuarão existindo místicos anônimos, que não são conhecidos por ninguém.  

Assim, não houve nem jamais haverá uniformidade de formas de vida mística. Deus chama para a vida mística de acordo com a realidade de cada época. Nenhuma época é igual à outra, nenhum místico é igual ao outro. Os místicos não seguem modelos pré-estabelecidos, mas simplesmente olham para Jesus e o seguem na radicalidade. Para eles, Jesus é o místico por excelência, e com ele procuram partilhar a vida.

            Há, entre muitas, quatro características que explicitam a vocação dos místicos: a liberdade, a profecia, o desapego e a contemplação. São características intimamente ligadas e reciprocamente implicadas, que não são identificadas separadamente na pessoa do místico. Transformam-no em um discípulo missionário de Jesus, a partir da realidade na qual vive. Nenhum místico vive em função de si mesmo, de sua própria perfeição.  

O místico não procura a perfeição de vida. Esta não é a sua meta, nem a sua vocação. Jesus não o chama para viver buscando um “estado de vida” perfeito. Na Idade Média, devido à mentalidade da época, alguns buscaram tal coisa, mas descobriram outra. Naquela época, entendia-se a santidade como forma de vida separada do mundo, buscando-se a perfeição na vida monástica e conventual. Mesmo assim, Deus fez aparecer alguns místicos neste estilo de vida.

            Antes de discorrermos sobre as quatro características supracitadas, vamos responder à seguinte indagação: Como, na intimidade da vida espiritual, a pessoa descobre que está sendo chamada a uma vida mística? Não há uma fórmula geral para todos os místicos. O chamado ocorre de acordo com a vontade de Deus, pois é Ele que chama da forma como quer. O chamado é uma realidade espiritual e circunstancial. O mesmo Deus chama pessoas diferentes em circunstâncias diferentes. O chamado divino não se enquadra numa tipologia ou categoria teológica de vocação, se assim podemos falar. 

Basta olharmos para o testemunho dos místicos supracitados para vermos a verdade desta constatação. Também esta palavra nos recorda um outro aspecto importante da vida mística: o místico pode ser identificado na sua singularidade existencial no mundo, mas a sua vida permanece um mistério. E é assim porque o místico vive mergulhado no mistério divino, numa constante procura por Deus. Deus o chama para participar de Sua vida, mas não se revela plenamente. Por isso, engana-se quem pensa que o místico alcança plenamente o conhecimento de Deus. Permanece na intimidade do mistério, maravilhosamente admirado com a insondabilidade divina.

1.1 A liberdade dos místicos

            A liberdade dos místicos não é outra senão a liberdade de Jesus: liberdade em relação a si mesmo, às pessoas e à religião. Também na sua relação com Deus, Jesus e o místicos são livres, pois não são escravos de Deus, mas amigos fieis. A maneira como Jesus viveu foi motivo de escândalo para muitos dos judeus de sua época, principalmente para as autoridades civis e religiosas. Eles não conseguiram compreender a liberdade de Jesus: Um pobre homem, nascido em Nazaré, que os questionava com a toda a liberdade e autoridade.  

Não era sacerdote nem doutor da lei, mas ousou fazer alguns reparos na sagrada lei dada a Moisés. É como se hoje um leigo ousasse afirmar publicamente a invalidez de alguns artigos do código de direito canônico, conjunto de leis que rege a Igreja. Certamente seria tratado da mesma forma como Jesus o foi: sendo perseguido e excomungado. Jesus foi considerado um desobediente e subversivo, homem possuído pelo demônio (Belzebu) pelas autoridades religiosas da época. Basta lermos os evangelhos para percebermos a veemência das condenações que sofreu porque ousou ser livre. Apesar disso, permaneceu fiel ao Pai até à morte de cruz.

            O místico é livre como Jesus, tanto dentro quanto fora das instituições religiosas. Dentro destas, não são aceitos nem compreendidos. Às vezes, conseguem ser tolerados; outras vezes, são expulsos. Geralmente, as instituições religiosas não suportam a liberdade dos místicos. Estes são vistos como hereges, tratados como pessoas suspeitas, indignas de confiança. A maneira como se relacionam com Deus é considerada inapropriada, pouco religiosa. Isto ocorre porque os místicos não precisam, necessariamente, de rituais para permanecerem unidos a Deus.  

Alguns místicos não participam de nenhuma forma de culto, pois a sua relação com Deus já não necessita de passar por fórmulas e liturgias rigidamente elaboradas pela brilhante inteligência humana. Por outro lado, há místicos que rezam o rosário de Maria, rezam diariamente o ofício divino, perscrutam a Bíblia, são mestres da liturgia e das Escrituras Sagradas. Isto prova o que acima explicamos: a experiência mística é pessoal e, portanto, única. Cada místico vive à sua maneira, de acordo com a iluminação do Espírito.

            Outro aspecto da liberdade do místico que incomoda os que dirigem as instituições religiosas, assim como aos que vivem irrefletidamente alinhados a ela, é o fato de que o místico não vive em função da manutenção da instituição. Sabemos bem que o propósito de toda instituição, quer religiosa ou não, é manter-se no tempo e no espaço. Quando desaparece é porque se esgotou toda e qualquer possibilidade de salvação. O místico não vive preocupado se a instituição religiosa vai perdurar na história ou não. Para ele, interessa ser livre com Jesus, em função do Reino de Deus.  

Não se trata de mera oposição ao aparato institucional, mas de uma questão profundamente vocacional. Em outras palavras, não faz parte da vocação mística a preocupação pela criação e manutenção de instituições religiosas. Exemplo claro disso é São Francisco de Assis: Não foi ele quem fundou a Ordem dos Frades Menores como a temos hoje. O pobre de Assis simplesmente propôs à Igreja um carisma, após ter sido chamado para despertá-la à conversão, mostrando que a vontade de Deus era que o anúncio do evangelho de Jesus foi vivido numa vida pobre e despojada. Todo o testemunho de São Francisco de Assis gira em torno desse chamado. Foi para isto que ele foi chamado e enviado. Isto explica a permanente tensão entre os que se apegam às instituições e o místico que, porventura, faça parte delas.

            Na verdade, o místico vive como Jesus: Não cria nem pauta a sua vida em preocupações. Se lermos com atenção as narrativas evangélicas, veremos que Jesus não se preocupava com nada. Ele não vivia preso nem ao passado nem ao futuro. Jesus vivia o presente em plena sintonia com vontade de seu Pai. Exortando aos seus discípulos, chamava-lhes a atenção para este importante aspecto da sua missão no mundo: É preciso viver na plena confiança em Deus, sem preocupações. Estas desviam o missionário do essencial, que é o amor.  

Segundo Jesus, quem ama a Deus e ao próximo não precisa se preocupar com nada. Basta que se busque o Reino de Deus e sua justiça, e tudo o mais virá por acréscimo. Assim Jesus viveu: Homem livre, despojado de preocupações, fiel observante da vontade de seu Pai. Quem faz a vontade de Deus Pai não precisa preocupar-se com nada. Isto não é apenas uma questão de convicção e/ou convencimento intelectual, mas vivência, vida cotidiana. Neste sentido, o místico se entrega sem medo aos cuidados de Deus.

Após descobrir a sua vocação, o místico se dar conta de que Deus o chama a viver assim: Como os pássaros do céu e os lírios do campo, sem se preocupar com nada, pois a sua vocação é fazer a vontade de Deus no amor. Justamente por isso, o místico não procura a glória humana, o sucesso, o prestígio, o poder e a riqueza. Estas coisas não lhe despertam nenhum interesse. No momento em que uma destas coisas dominá-lo, a iluminação do Espírito se afasta e a desorientação igualmente o domina. O Espírito somente age na liberdade e para a liberdade.

            Sem deixar-se levar pela indiferença em relação aos fatos do mundo e às pessoas, o místico está em plena sintonia com as tristezas, alegrias, lutas e esperança do povo de Deus. Não é uma pessoa alienada ou isolada do mundo. É possível encontrarmos o místico participando das manifestações do povo, em suas lutas por direitos. Exemplo disso foi o líder pacifista indiano M. Gandhi. Este era místico da tradição hindu, que viveu unido a seu povo nas lutas por libertação.  

Há místicos que vivem na clausura, como monges, vivendo em comunidades ou sozinhos na vida eremítica; mesmo assim, quando o Espírito lhes pede, eles descem da montanha da contemplação para permanecerem com as pessoas da planície o tempo que for necessário. A participação do místico na resolução dos problemas da vida do povo de Deus não lhes tira a tranquilidade espiritual da vida contemplativa, pois consegue ser contemplativo na ação.

O místico não desce da montanha por achar que é a sua missão resolver os problemas do povo, mas porque o Espírito o envia para o meio das pessoas em determinadas circunstâncias. O Espírito o chama pela boca dos oprimidos, que clamam por libertação. O místico não é um libertador político e social, mas um humilde servo de Deus que em nome deste mesmo Deus se coloca à serviço da libertação. O místico não se sente obrigado a nada, pois a sua obediência está restrita à ação do Espírito que o conduz.

1.2 A profecia dos místicos

            A vida mística é essencialmente profética porque se encontra na contramão do mundo. Aos olhos do mundo pós-moderno, o místico é considerado um louco. A renúncia às pretensões meramente humanas leva-o a ser visto como um ser estranho, deslocado da realidade. Em um mundo onde reina a busca pelo prestígio, poder e riqueza, o místico é visto como um bobo, um ser inútil e desprezível. Seu testemunho é uma eloquente denúncia contra as injustiças que se cometem no mundo por causa da busca acima mencionada. A mesma denúncia se dirige à Igreja institucional, quando esta se afasta do projeto de Jesus e se apega às pretensões humanas.

            A liberdade dos místicos incomoda muita gente, assim como o estilo despojado de sua vida. Isto ocorre porque diante de um mundo marcado por inúmeras formas de escravidão e busca desenfreada de poder e dinheiro, a vida mística aparece como luz em meio às trevas. Também na Igreja, a luta pelo poder é um dos grandes males. Constitui uma espécie de câncer que afeta a vida da Igreja desde o momento em que a mesma se aliançou com os poderosos deste mundo.  

Muitos místicos, além do testemunho da própria vida, sob a ação do Espírito que os guia, denunciam as injustiças que se cometem dentro e fora da Igreja, por meio de seus escritos espirituais e teológicos. Um exemplo eloquente desta denúncia é a obra teológica do belga José Comblin, padre e profeta místico da liberdade. Sua obra pneumatológica (sobre o Espírito Santo) não são somente oriundas da sua genial inteligência, que também era dom de Deus, mas, sobretudo, é obra da ação amorosa do Espírito, pura profecia mística, tradução da palavra de Deus, cortante e penetrante como espada de dois gumes.

Não houve na Igreja quem o desmentisse em seu labor teológico, dada a inspiração de seus escritos, alicerçados na verdade do testemunho de Jesus, válidos para todo o sempre. Quem não teve a graça de conhecê-lo em vida, pode fazê-lo através de seus escritos. Particularmente, ainda não conheci uma obra teológica tão atual e profética, tão profunda e tão mística, tão de Deus e tão humana.  

Pessoalmente, José Comblin era discreto e silencioso, contemplativamente místico, homem da escuta atenta e amorosa dos sinais de Deus no meio dos pobres. Admirado e perseguido. Amado pelos pobres que o conheceram de perto. Foi fiel a Jesus até o último suspiro para a glória de Deus e a edificação de seu povo. É um dos meus venerados santos junto a Deus, cuja intercessão não me tem falhado, desde março de 2011, quando concluiu a sua peregrinação terrestre e mergulhou, definitivamente, no seio da ternura da Trindade Santa.

            Quando se utiliza da palavra verbalizada e escrita, o místico reza e medita antes de publicá-la. Ele não está preocupado se está ou não de acordo com aquilo que se convencionou como ortodoxia da fé, mas fala aquilo que o Espírito o inspira falar. O místico não entra em contradição com o evangelho de Jesus. Isto lhe basta. Pensar e viver em sintonia com Jesus e seu evangelho constituem o essencial. A consciência do místico está alinhada com Jesus, procurando, em tudo, ser-lhe fiel. Eis aqui o essencial da vida mística: Ser fiel a Jesus no amor. Não há nada mais importante do que isto. Este é o núcleo da vocação, da santidade e da fé místicas.  

Como as instituições religiosas, com suas normas e doutrinas, não estão plenamente em sintonia com Jesus e seu evangelho, então não é de se estranhar as incompreensões e perseguições ao místico. Aqui temos também a profecia mística: Este grito permanente do Espírito, que apela incansavelmente para a conversão, por meio do testemunho e das palavras do místico. Assim, não lhe causa nenhuma perturbação espiritual quando acusado de heresia ou de qualquer outro tipo semelhante de acusação.

Com os olhos fixos em Jesus, o místico não se deixa abalar pelas acusações, incompreensões, perseguições, ameaças, injúrias, calúnias, difamações, excomunhão e tantas outras formas de males. Como diz o livro de Salmos: “Quem confia no Senhor é como o monte de Sião, nada o pode abalar porque é firme para sempre”. A confiança do místico no Deus que o chamou é inabalável. Unido a este Deus não teme a nada nem a ninguém, mas permanece humildemente firme e sereno. A certeza da morte é algo pavoroso aos olhos do mundo; para o místico, é motivo de alegria e de encontro definitivo com Deus. A plena confiança em Deus anula o medo da morte.

1.3 O desapego dos místicos

            Sem desapego não há vida mística. A primeira forma de desapego é o desapego em relação a si mesmo. Desapegar-se dos próprios desejos, da satisfação destes. Não ser escravo dos próprios desejos: eis um caminho autêntico para a liberdade mística. O místico está permanentemente atento a si mesmo, aos seus desejos e inclinações, praticando a virtude evangélica da vigilância. Esta atenção a si mesmo não ocorre por causa do medo do pecado. Este medo não faz parte da vida mística. O místico sabe que o medo do pecado leva ao pecado.  

A vigilância de si mesmo está em função da escuta de Deus. Quando se liberta da satisfação egoísta dos próprios desejos, o místico está em paz, de ouvidos abertos para escutar a voz de Deus. Por isso, não é uma pessoa apegada a si mesma porque não alimenta nenhuma pretensão, não busca nada para si, não está presa ao espírito de superioridade; apenas se reconhece como pessoa amada por Deus. Quando olha para si, o místico não enxerga um ser especial, dotado de poderes ou privilégios especiais, mas vê um ser humano que optou por viver segundo o Espírito de Deus. O místico não tem apego à própria vida. Isto o liberta do medo da morte.

            A segunda forma de desapego é o desapego em relação a bens materiais. O desejo de posse não atinge o místico, pois possuir bens materiais não é o seu interesse. Basta-lhe a comida, um lugar para dormir, algumas roupas simples para se vestir, uma proteção para os pés e ter saúde no corpo. Assim como Jesus, basta ao místico ter as mínimas condições para manter-se vivo. O conforto do luxo e as tantas seguranças criadas pela evolução humana não lhe causam nenhuma atração. O místico sabe dos perigosos das seguranças oferecidas pelos sistemas criados pelo homem. Deus é a sua segurança. Não vive a procura de nenhuma espécie de segurança e/ou bem material.  

Despojadamente, é livre e goza a paz. Não se preocupa com nada porque nada possui. Seu desapego é uma denúncia contra toda pessoa que vive a procura de riqueza, lícita ou ilicitamente. Não se trata de exibicionismo, mas de liberdade para viver dignamente, em plena comunhão com o Deus e Pai de Jesus, que somente se revela aqueles que não prendem o seu coração à riqueza. O coração do místico é ocupado por Deus, não deixando espaço para o apego a bens materiais.

            A terceira forma de desapego é o desapego em relação às pessoas. O místico as ama sem apegos. Ama-se na liberdade, sem se submeter ao outro nem o submetendo. Não vive em função da realização da vontade de quem quer que seja, exceto a de Deus. O místico não projeta nada para o outro, nem se submete aos projetos deste. Relaciona-se com as pessoas sem se deixar cair na tentação de possuí-las. Não manipula nem se deixa manipular. Não procura satisfazer seus desejos em relações interesseiras, nem se transforma em objeto de satisfação dos desejos de ninguém. O místico procura despertar o amor no coração das pessoas, mostrando-lhes o quanto é bela e fecunda a verdadeira amizade.  

Desse modo, o místico não se frustra porque não cria expectativas em ninguém. Para ele, cada pessoa é aquilo que é. Não há necessidade de esperar nada de quem quer que seja. Ele trata os outros como trata a si mesmo, ama os outros como ama a si mesmo. Por isso, não sofre porque não se frustra nem se decepciona. Amor que se manifesta na compaixão, na solidariedade e na alegria é o sentimento que orienta o místico na sua relação com o outro. Ao se relacionar com o outro, o místico age de tal forma que o torna cada vez mais livre.

            Uma última forma de desapego é o desapego em relação ao passado e ao futuro. O místico tem plena consciência de que a vida acontece no presente. Sabe que tem passado e futuro, mas se encontra no presente. Desapegado do passado, não orienta a sua vida por lembranças de acontecimentos passados. Para o místico, o passado literalmente passou! Isto não significa que seja uma pessoa sem memória, fechada aos ensinamentos que o passado possa transmitir. O místico reconhece a importância da memória histórica para a vida particular e social do ser humano.

1.4 A contemplação na vida mística

            Contemplar é enxergar o Invisível no visível. Este parece ser um conceito à altura do místico. Este vive contemplando o mistério divino. Participando da intimidade com Deus, é absorvido pelo amor fecundo e alegre, que consiste na graça divina operante. Sabe-se e sente-se amado por Deus e O experimenta de forma tão radiante e profunda que a linguagem humana é incapaz de descrever.  

O mistério divino, apesar da autorrevelação de Deus, permanece insondável, imperscrutável, infinito. Na vida mística não se possui a plenitude do conhecimento de Deus, pois tal conhecimento não é possível neste mundo, mas somente no mundo que há de vir. Trata-se de uma realidade escatológica, a ser revelada pelo próprio Deus no tempo devido.

            O místico, sob a ação do Espírito que o ilumina, encontra a Deus em todas as coisas: nas pessoas e no mundo, em toda a criação. Jesus garantiu aos seus discípulos que continuaria presente na vida deles após a sua ascensão. De fato, Jesus está presente na vida da Igreja e do mundo. O místico goza dessa presença amorosa, sentindo-a e enxergando-a em sua vida.  

Na história da Igreja podemos encontrar mulheres e homens místicos que tentaram falar dessa presença viva e feliz de Jesus. Esta presença é superior a qualquer entendimento humano. Nenhuma realidade humana consegue ser tão simples e, simultaneamente, tão misteriosa. Trata-se de uma presença procurada, ou seja, o místico vive a procura de Jesus e Jesus vive procurando-o. O místico está condicionado pelos limites da condição humana, condição experimentada por Jesus. A iniciativa de tal procura sempre parte de Jesus.

            Na intimidade da contemplação, o místico recebe de Deus o dom da visão da realidade. Ver as coisas como elas realmente são é um dom divino, concedido gratuita e imerecidamente. Juntamente com esta visão, Deus concede o dom do discernimento. Iluminado pelo Espírito, o místico enxerga o que muitos não conseguem enxergar; além disso, aprende a perscrutar os sentimentos que povoam o coração humano.  

Esta visão da realidade e dos sinais dos tempos faz com que o místico seja reconhecido como uma pessoa sábia e prudente. Plenamente reconciliado consigo mesmo, com Deus e com a vida, torna-se capaz de ouvir as pessoas, despertando-as para o amor.

            Em alguns casos, o Espírito concedeu e tem concedido a alguns místicos outros dons divinos: o dom da palavra para orientar os corações atribulados; o dom da cura de doenças físicas e espirituais; o dom do discernimento dos espíritos; entre outros sinais extraordinários que a inteligência e a linguagem humanas não conseguem compreender e expressar. 

Alguns místicos medievais, e também modernos, experimentaram visões e arrebatamentos espirituais e/ou experiências semelhantes. Tais experiências e dons extraordinários não constituem a meta da vida mística. O verdadeiro místico não busca tais coisas, mesmo sendo frutos da graça de Deus. Estas manifestações podem ou não ocorrer. Não são provocadas pelo místico nem são frutos de méritos pessoais. São realidades espirituais que fazem parte da vida mística, mas podem não aparecer na vida de muitos místicos. Também neste aspecto, a iniciativa parte de Deus, que misteriosamente age para a divinização do ser humano.

            O místico contempla Deus e suas maravilhas. Permite-se sondar pelo amor divino. Entrega-se, sem medo, nas mãos divinas, para ser trabalhado como o bairro nas mãos do oleiro. Torna-se, de fato, amigo e companheiro de Deus. Na contemplação, o místico mergulha no mais profundo de si mesmo, conhecendo o lado sombrio de sua personalidade. Nesta ida ao mais profundo de si mesmo, conhece uma profunda tristeza e vergonha, pois descobre o quanto é fraco e pecador.  

A passagem pelo lado sombrio do próprio interior levou e leva muitos místicos a experimentar o que São João da Cruz chamou de noite escura da alma. A tensão dos conflitos internos na vida mística leva muitos a experimentar o ocultamento, ausência ou silêncio de Deus. Apesar das dificuldades enfrentadas nas lidas espirituais, o místico sabe que não é definitivamente abandonado por Deus, pois este permanece presente, mesmo quando sua presença se pareça com ausência.

            O místico é uma pessoa iluminada e conduzida pelo Espírito Santo. Em sua vida, tudo acontece graças a este Espírito, que sonda as profundezas de Deus e revela a misteriosa presença divina no mundo. No e pelo Espírito, torna-se capaz de Deus. Com o Pai e o Filho, o Espírito faz morada no místico, envolvendo-o e divinizando-o. 

Diante desse mistério, não há cálculos nem palavras, nem imaginação, nem inteligência, nem lógica, nem raciocínios, enfim, nenhuma elaboração do pensamento capaz de alcançar a sua profundidade. Tudo é mistério. E é do querer divino que permaneça sendo. Nossas afirmações e negações não diminuem nem acrescentam nada ao mistério de Deus. Somente pelo amor poderemos conhecê-lo parcialmente nesta vida e plenamente na outra.

Conclusão

            Cremos que uma maneira eficaz para concluirmos nossas considerações sobre a vocação dos místicos é com uma oração ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo – Comunidade de Amor. Na vida mística, a oração é um permanecer diante de Deus através de um diálogo fecundo, revelador e transformador. Os místicos são mulheres e homens de oração. Por meio desta, seus corações falam ao coração de Deus. Além dos aspectos já mencionados, é também pela oração que podemos afirmar que a vida dos místicos constitui viver a eternidade no tempo presente, um mistério insondável de amor, um dom imerecido de Deus.

Pai, misericordioso e justo
Eu sou em Ti
Guarda-me em Teu amor

Meu coração é Teu
Ele é a tua habitação
Podes ficar à vontade

Em Jesus revelaste-me a tua presença
Não permitas jamais
Que me separe de Ti

Peço-te, humildemente
Apesar de minhas fraquezas
Que não me falte o teu amor, a tua luz, o teu aconchego. Isto me basta. Amém!

Tiago de França da Silva
Desde Guaraciama, Norte de Minas Gerais, 31 de julho de 2015.
Dia da memória de Santo Inácio de Loiola, presbítero e fundador.

sábado, 8 de agosto de 2015

O que está acontecendo com a política brasileira?

           
           Desde a Antiguidade Clássica, a política tem sido o instrumento utilizado pelo ser humano para a promoção da cidadania. Esta não existe sem aquela. Com este breve artigo, não queremos apresentar uma solução para a crise política no Brasil, mas apenas levantar algumas perguntas e reflexões. Não sou cientista político, mas na qualidade de cidadão brasileiro e de observador da realidade, à luz da crítica filosófica, pretendo fazer algumas perguntas que possam nos ajudar a enxergar com mais clareza o conflituoso e, às vezes, confuso cenário político atual.

            Enxergar a realidade com os olhos da crítica é extremamente importante para não cairmos na tentação do extremismo: A defesa violenta de determinada pessoa ou grupo em detrimento de outra pessoa ou grupo social. Meras defesas e ataques parecem não construir um país democrático. Inúmeros brasileiros tem se utilizado das redes sociais para somente fazer isso: defender e atacar. Dificilmente, encontramos discussão madura e responsável de projetos e objetivos comuns. Foca-se na calúnia e difamação do outro e chamam isso de liberdade de expressão. E em meio a tanto barulho e confusão, os mais espertos vão escapando, tirando vantagem, rindo à toa.

            É necessária a superação da cultura da eliminação do outro. Não é pequeno o número dos que acham que as crises política e econômica se resolverão com a eliminação de certas figuras do cenário político. É o que tem pregado, por exemplo, um bom número de políticos do PSDB: Afirmam, categoricamente, que a solução para a crise está na eliminação da Presidenta da República, Dilma Rousseff. Se perguntarmos a qualquer pessoa de bom senso: “A saída da Presidenta vai resolver tais crises?” Certamente, a resposta será negativa. Não estamos precisando de um novo Presidente da República. Este não é o nosso problema. Então, qual é o nosso problema?

Há ou não crise das instituições?

            Nosso problema é estrutural e, na verdade, não interessa aos oportunistas resolvê-lo. O político oportunista não está preocupado com a urgente e necessária mudança de estruturas na política brasileira, mas vive buscando mais poder. A real situação provocada pelas crises não lhe causa interesse. O discurso oportunista explora o negativo em detrimento do positivo, em vista da conquista do poder. O político oportunista é igual urubu que vive à procura de carniça: Sua atuação ocorre a partir dos elementos negativos do cenário político. Seu interesse é a conquista e a manutenção do poder. Nada mais. Quer o poder a todo custo. Não respeita os limites impostos pela legalidade.

            O Congresso Nacional brasileiro está repleto de políticos oportunistas: Mulheres e homens, eleitos pelo povo, que destituídos da ética e dos princípios norteadores da democracia, não se cansam de procurar a satisfação de seus próprios interesses. Analisando a composição do Congresso, logo se vê que se trata de uma instituição política doente, composta por pessoas doentes. A doença dessas pessoas é a sua sede de poder e de dinheiro. Para conseguir tais coisas, agem descaradamente, sem escrúpulos. Sabendo da falta de consciência ética e política daqueles que os elegeram, não se preocupam com a repercussão de seus atos antidemocráticos, pois sabem que, mesmo sendo desmascarados e expulsos, posteriormente são reconduzidos aos mesmos postos, ou a outros melhores.

            As reformas que são “feitas” pelos oportunistas não passam de uma mentira bem contada. Eles se utilizam da mídia oficial para passar a ideia de que são pessoas sérias e comprometidas, sendo que são mentirosos e ladrões. A falácia de seus discursos é visível. Ninguém precisa ser cientista político para identificá-la. Não há verdade, mas pseudoverdade. A ética que vigora é a ética daquilo que convém. Os partidos políticos não passam de meras formalidades para atender às exigências legais de existência e funcionalidade. Como não pode existir político no vácuo, então filia-se a um partido, independentemente de ideologia partidária, o que tem deixado de existir, progressivamente.

Na oposição há governo e no governo há oposição. Exemplo disso ocorre com o Presidente da Câmara dos Deputados: Faz parte do partido que compõe a base aliada do governo, mas declarou ser inimigo do governo. Para ele, não há nenhuma contradição nisso. A base aliada ao governo não tem trabalhado na perspectiva da fidelidade, mas na da sede de poder. Se o governo não satisfaz seus interesses, então são contra o governo. E o povo, onde fica? O povo não precisa se meter nisso, bastando votar nas eleições. É isto que vigora em Brasília.

Além do Congresso Nacional, o Poder Judiciário tem ganhado destaque, desde os tempos do chamado mensalão. O ex-ministro do STF – Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, apareceu como o herói nacional: Jogou inúmeros petistas na cadeia, não mexeu com os psdebistas e pediu aposentadoria. Deixou a falsa ideia de que a corrupção no Brasil começou com a chegada do PT ao governo. Claro que somente os alienados e, portanto, destituídos do mínimo de conhecimento da história do país são os que acreditam nisso! Agora é a vez do juiz Sérgio Moro: Nas redes sociais está sendo venerado como herói nacional. Está sendo aplaudido de pé, especialmente pela oposição ao governo e pela mídia oficial (Globo e Veja, principalmente).

Nestes dias, um ministro do STF afirmou que as instituições públicas do Brasil estão em pleno funcionamento, referindo-se especialmente ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Esta certamente é uma boa notícia, considerando a nossa história. Curiosamente, de Lula para cá ambas as instituições, juntamente com a Polícia Federal tem jogado muita gente rica na cadeia. Nunca se prendeu tanta gente rica em toda a história do Brasil! Estamos cansados de saber, e a história não nos deixa mentir, que os ricos praticamente nunca conheceram o encarceramento no Brasil, pois a amizade com juízes e políticos, o poder operativo dos excelentes advogados, o apoio da mídia antidemocrática e as somas incontáveis de dinheiro sempre constituíram a força dos ricos, garantindo-lhes a impunidade.

Apesar disso, é preciso perguntar ao honrado ministro do STF: Tais instituições estão funcionando a favor de quem? Esta pergunta, geralmente, é evitada. E é assim porque desmascara a falsa ideia de que temos uma democracia consolidada, de que temos um Poder Judiciário imparcial. A imparcialidade é um belo princípio, que só tem servido para ser cobrado nos exames das universidades e concursos. É clara e, portanto, evidente a instrumentalização do Judiciário em favor de determinados interesses. Os juízes (não todos, claro!) se utilizam do seu poder para cometer ilegalidades legais! Comportam-se como se fossem deuses, que jamais podem ser alcançados pela lei. Colocam-se acima dela, sem pudor algum, com toda a veemência da complexa linguagem jurídica, criada para ocultar ilegalidades. O povo assiste ao jornal, escuta a expressão “delação premiada”, não compreende nada e afirma: “Gostei desse juiz! Bem que ele poderia ser o nosso Presidente da República!”

Todas as instituições públicas precisam ser reformadas. Todas sugam muito dinheiro público. As injustiças são gritantes. Para 2016, querem aumentar os salários dos ministros do STF para 39 mil reais. Atualmente, recebem R$ 33.763 mensais! Enquanto o governo pensa formas de superação da crise econômica, os ministros do STF estão pensando no aumento dos próprios salários! E o discurso é o do salário justo. Certamente, muitos dirão: “Realmente, eles tem trabalhado demais, por isso, merecem este aumento!” Sem contar que além dos salários, gozam das regalias funcionais. Para se ter uma ideia, o orçamento do STF pensado para 2016 será de 624,8 milhões de reais! Isto mesmo. A Suprema Corte de Justiça brasileira é uma das mais caras do mundo. Agora, sejamos sinceros e pensemos uma resposta honesta à pergunta: Por que será que tantos operadores do direito desejam ser ministros do STF?...

Além dos excessivos gastos, a moralidade anda em baixa em todas as instituições. Nosso artigo poderia se estender por inúmeras páginas se fôssemos mencionar os vergonhosos casos de corrupção, envolvendo muitos membros das instituições públicas. A impunidade é tão certa que a corrupção já não escandaliza as pessoas. Estas concordam que aquela faz parte do cotidiano das instituições, sendo considerada como elemento comum e natural. A corrupção virou cultura! A integridade passou a ser vista como tolice. A corrupção se transformou em uma espécie de câncer que tem se mostrado altamente violento e incurável. E o número daqueles que aumentam a sua força mortal só tem aumentado. Não é pequeno o número dos que procuram as instituições públicas visando somente dinheiro, poder e privilégios.

A demonização de figuras políticas é uma das estratégias dos políticos oportunistas interessados na aquisição do poder. Conforme o exposto, o problema é outro. Não há dúvidas de que as instituições não estão mais conseguindo corresponder às expectativas do povo, à promoção da justiça social. Por isso, sem as urgentes e necessárias reformas, que devem contar com a participação popular, provavelmente nada mudará no país. O sistema está corrompido e agonizante. Não bastam as boas intenções, o bom currículo, um histórico político honrado. São poucos os políticos honestos (que ainda existem, apesar de tudo!) que conseguem resistir às tentações da corrupção. Muitos se corrompem, irreversivelmente.

Há muitos políticos corruptos, tanto no governo quanto na oposição, que reforçam o sistema, tornando-o pior do que antes, mas não se pode afirmar que um político seja o responsável ou culpado pelas crises nas quais estamos mergulhados. Nenhuma crise surge do dia para a noite. O que estamos vivendo no presente possui raízes profundas no passado. Nada é novidade. A novidade é que as instituições responsáveis pelas investigações, apesar de suas limitações, estão tendo a oportunidade para cumprir o seu papel constitucional. Claro que precisam melhorar, mas em relação a um passado não muito distante, a situação melhorou, significativamente.

A possibilidade de um golpe

            Os brasileiros com menos de 30 anos de idade não fazem muita ideia do que seja um golpe, exceto os que gostam de ler e refletir sobre a história do Brasil, especialmente o período que vai de 1964 a 1985. Atualmente, nossos jovens estão nas redes sociais, e não se interessam, salvo exceções, por história, filosofia e sociologia. O Facebook e o WhatsApp não os deixam sossegados! Excepcionalmente, discutem política, ética, e outros temas importantes para a vida em sociedade. Estes temas são motivos de piadas nas redes sociais. Geralmente, as pessoas brincam com coisa séria.

            O candidato Aécio Neves, do PSDB, estava convencido de que iria sair vitorioso nas eleições presidenciais de 2014, mas não foi o que ocorreu. A maioria do povo brasileiro escolheu manter a Dilma Rousseff na Presidência da República. Segundo a Justiça Eleitoral, a vitória correu dentro da legalidade. Mesmo assim, o candidato da oposição tentou provar o contrário, mas sem sucesso. Com a acentuação das crises hídrica e econômica, iniciou uma campanha de desestabilização do governo, numa tentativa sórdida de desmoralizar a pessoa da Presidenta e seu partido. 

Tentam encucar nas cabeças dos brasileiros três ideias falsas: (a) Que a corrupção no Brasil surgiu a partir do governo Lula; (b) Que a Presidenta Dilma é a responsável pelos desvios de dinheiro da Petrobrás e (c) Que as crises atuais foram provocadas unicamente pelos governos do PT. Por isso, pensam, ainda, que a única forma de resolver o problema é tirar a Presidenta e seu partido do poder. O curioso é que milhões de brasileiros, desprovidos de uma reflexão séria sobre a realidade, acreditam nestas ideias. O bom senso e a própria realidade as desmentem, desmascarando seus autores. Independentemente de nossas preferências, precisamos admitir a veracidade dos fatos, pois somente estes, livres de qualquer manipulação interesseira, nos oferecem a verdade que liberta da mentira.

O senador Aécio Neves, do PSDB, não está disposto a esperar pelas próximas eleições presidenciais, em 2018. Quer chegar, a qualquer custo, à Presidência da República. Já defendeu a cassação da Presidenta Dilma, e agora está defendendo novas eleições. Por acaso as eleições presidenciais de 2014 não foram válidas? Claro que foram, e a Justiça Eleitoral a reconheceu. Não havendo crime de responsabilidade, só há um jeito de o mesmo chegar à cadeira presidencial: Via golpe! Assim fizeram os militares, em 1964: Tomaram para si o poder e dominaram o Brasil por pouco mais de duas décadas. João Goulart foi violentamente derrubado e o povo teve que suportar as consequências do golpe: perseguições, tortura, exílio, assassinatos, prisões ilegais, falta de liberdade, ameaças, terror.

Hoje, não são os militares os interessados pela tomada do poder, mas a oposição ao governo, encabeçada pelo mencionado senador mineiro e seu partido, historicamente reconhecido como inimigo dos movimentos sociais e das lutas populares por justiça social. Nenhum político eleito pode ser obrigado a deixar o cargo porque uma parcela da população, que não o elegeu, não se identifica com sua pessoa e com seu jeito de governar.  

A Presidenta Dilma não pode ser cassada porque muitos brasileiros, eleitores do mencionado senador, não gostam dela. Este não gostar não constitui motivo relevante para cassação, pois se assim fosse, estaríamos sujeitos a uma insegurança enorme em matéria política. Teríamos que eleger, indefinidamente, novos presidentes, segundo o gosto e a moda de grupos de eleitores. Isto não é permitido pela Constituição Federal de 1988. Esta reza que o eleito e devidamente empossado, salvo cometimento de crime que legitime cassação, deve ser mantido no exercício da função até o término de seu mandato. Esta é a lei, e é assim que deve ser, enquanto a mesma vigorar.

Caso a tentativa de golpe continue sendo levada adiante e chegue a ser efetivada, ou seja, caso ousem passar por cima do que determina a Constituição do país, juntamente com todos os eleitores que, legitimamente, foram às urnas e elegeram a Presidenta, todos os demais brasileiros, conscientes da importância de se preservar a democracia, devem ir às ruas para impedir este crime contra a soberania do poder popular. Democraticamente, o país precisa progredir, não regredir. Precisamos de democracia cada vez mais participativa e aberta, não de golpe e de covardia. É preciso nos mantermos atentos, pois muitas coisas ocorrem sutilmente, na calada da noite. Os cavardes agem nas trevas, não à luz da transparência. São amigos da mentira e da ilusão. Pregam a salvação, mas são detentores do atraso e da confusão.

Não se trata de defender a Presidenta da República, mas de manter a legalidade e a democracia, conquistada com o suor e o sangue dos que lutaram para que ela ressurgisse na história recente do Brasil. E o Poder Judiciário, juntamente com o Ministério Público e a Polícia Federal, que tem ganhado destaque nos últimos anos, não podem se deixar instrumentalizar pelas forças que operam golpe, pois tais instituições foram pensadas e criadas para reforçar e manter o Estado Democrático de Direito. Punido severamente deve ser todo brasileiro que atentar contra a democracia.

As crises são momentos importantes na história de todos os povos. São oportunidades para aprender, amadurecer e crescer. Não podem ser transformadas em oportunidade para golpes. Estes constituem instrumento dos inimigos da autêntica democracia que deve orientar a vida política do país. Crises exigem união de esforços, criatividade, diálogo, ousadia, perseverança, suportar na paciência as dificuldades, humildade para rever a caminhada feita, grandeza de alma para continuar acreditando no futuro. Crises não são eternas, mas sintomáticas. Elas sinalizam que algo está fora do lugar e/ou funcionando mal. Lutar pelo agravamento das crises, recusando-se à efetiva colaboração, é sinal de traição ao povo brasileiro. Não foi para isto que o povo elegeu os políticos.

Uma oposição verdadeiramente a favor do Brasil, deve deixar de lado os interesses pessoais e partidários para, juntamente com o governo legitimamente eleito, procurar soluções para a superação das crises. Este é o caminho. É preciso vontade política e amor ao país. Livres do pessimismo, esperamos que o melhor aconteça, mas sem cairmos na ilusão. Com os pés no chão da realidade, façamos a nossa parte: Vamos erradicar a cultura do ódio e da eliminação do outro! Sejamos, de fato, brasileiros que amando o seu país, acreditam na verdade e na liberdade, na justiça e no amor, valores que precisam ser praticados na política, para que esta seja “a forma mais perfeita de caridade” (Papa Paulo VI).

Tiago de França