O tema da família tem
causado, ultimamente, muita polêmica. De uns tempos para cá, as pessoas estão
reivindicando o reconhecimento civil de novas formas de entidade familiar. No Brasil
e em muitos países do mundo, houve o reconhecimento civil da união homoafetiva.
Casais homoafetivos constituem famílias? Não queremos entrar na discussão sobre
o conflito entre o conceito de família na Constituição brasileira e no
Cristianismo. Nossa reflexão quer abordar, brevemente, apenas duas questões: a
primeira, a necessidade de considerarmos a existência das novas realidades
familiares; a segunda, o reconhecimento da família como sinal do amor divino na
construção de uma sociedade mais justa e fraterna.
Tradicionalmente, as pessoas entendem a família como a
união do homem e da mulher. A Igreja entende que o casamento e a família estão
ordenados para o bem dos esposos, a procriação e a educação dos filhos. Este
parece ser o conceito de família tradicionalmente adotado. Por isso, todos
aqueles que não se enquadram neste conceito não constituem família. Prega-se
que não há exceções porque assim Deus o quis, e está revelado no livro do
Gênesis e em outras páginas bíblicas. Este é o ideal ensinado pelas Igrejas cristãs,
mas a realidade é um pouco diferente. Há uma grande distância entre o ideal e o
real.
O ideal da família constituída a partir da união entre o
homem e a mulher não pode ser imposto às pessoas. E não pode por dois motivos:
primeiro, porque Deus não autoriza nenhuma forma de imposição. Toda imposição
vai contra o projeto de Deus. Os mais radicais entre os cristãos ousam algumas
afirmações, tais como: “Deus instituiu o casamento entre homem e mulher, o
resto vem de Satanás!” É muito comum escutar tal expressão sendo dita com veemência
nos púlpitos de nossas Igrejas. O caminho da exclusão e da condenação das
realidades que não se enquadram no modelo tradicional de família parece não ser
o correto, pois contraria o mandamento de Jesus, que ensinou o amor e a
aceitação das pessoas.
O segundo motivo se refere ao fato de que o mundo é
plural. A pluralidade e/ou a diversidade não dá espaço para imposição de um
único modelo de família. A revelação bíblica não anula a pluralidade. A diversidade
é dom de Deus. Somente quem não compreende a pedagogia divina na história da
salvação é que defende a uniformidade de todas as coisas. Deus criou a
pluralidade de todas as coisas. A obra da criação é plural, jamais uniforme. Por
mais que os cristãos queiram que todo o mundo seja cristão, isto seria
impossível. A pluralidade das culturas não permite a uniformidade religiosa. Um
homem homossexual não pode reprimir sua condição para casar-se com uma mulher
somente para ser aceito pela Igreja e pela sociedade. Isto não seria obediência
a Deus.
As Igrejas cristãs precisam se esforçar mais um pouco
para praticar o mandamento de Jesus: o amor. No amor não há espaço para
julgamento e condenação de pessoas. O amor exige respeito e promoção da
dignidade delas. Estas são livres para amar a quem quiser. Sem nenhuma
dificuldade podemos afirmar que Deus é amor, e que os homens criam as formas de
amor. Estas são plurais. Cada um ama a seu modo, de acordo com suas disposições
e preferências.
Ninguém
recebeu de Deus uma forma prescrita de amor para impor à humanidade. Nenhum versículo
bíblico legitima essa imposição. No evangelho, Jesus ensina a acolher, aceitar
as coisas como elas são, amá-las sem impor condições. Não se trata de acabar
com a família tradicional e exaltar as demais formas de união, não de exaltar
estas em detrimento daquela. Trata-se de olhar o mundo e reconhecer que
inúmeras pessoas não vivem segundo o modelo tradicional de família, e elas não
podem ser condenadas e excluídas por causa disso. A realidade da humanidade não
pode ser esquecida e marginalizada, pois Jesus enviou os seus discípulos para
evangelizar este mundo, sem julgá-lo nem condená-lo. A Boa Notícia do Reino de
Deus é inclusiva porque se fosse exclusiva seria uma má notícia. Quem prega um
evangelho exclusivo, visando somente um grupo seleto de pessoas, não anuncia a
Boa Notícia do Reino de Deus, mas está inventando um outro evangelho.
Nossas
Igrejas precisam aprender a reler a mensagem de Jesus, para encontrar nela o
espírito de misericórdia que conduziu Jesus na sua missão terrena. É verdade
que Jesus não tocou no tema da homossexualidade. Este é tratado com muito rigor
no Antigo Testamento. Tratado sem o óleo da misericórdia. Por isso, os cristãos
precisam reler o Antigo Testamento na perspectiva de Jesus, com os olhos de
Jesus. A teologia do Antigo Testamento é diferente da do novo. Fala do mesmo
Deus, mas numa perspectiva diferente.
Sem
o devido entendimento desta teologia é impossível compreender a questão
homoafetiva na Bíblia. Peca gravemente contra Deus todo aquele que extrair um
versículo bíblico para utilizá-lo no julgamento e condenação de pessoas. Isto vale
para os dois Testamentos bíblicos. A literalidade bíblica, quando se exclui o
necessário trabalho exegético, torna-se perigosa. Quem não tem clareza do que a
Bíblia fala corre o risco de manipulá-la para reforçar fobias e preconceitos. Apesar
de conter a Palavra de Deus, a Bíblia pode ser transformada num instrumento de
julgamento, condenação e exclusão de pessoas. Este é um problema grave que tem
afetado todas as Igrejas cristãs.
Facilmente, as Igrejas correm o risco de cair na
hipocrisia quando julgam, condenam e excluem pessoas homoafetivas. Às vésperas
da abertura do Sínodo Ordinário dos Bispos, que tratará da família, em Roma, um
dos membros da Congregação para a Doutrina da Fé, um dos organismos mais
poderosos da Cúria Romana, o padre polonês Krzysztof Charamsa, revelou ser gay.
A homossexualidade no clero não constitui nenhuma novidade. Aqui não queremos
discutir se é certou ou errado um padre ser gay. Questionamos a hipocrisia
religiosa que se revela no fato de que se condena facilmente a homossexualidade
presente na sociedade, sendo que boa parte do clero é homossexual.
Como
um padre homossexual pode afirmar que um leigo homossexual não alcançará o
Reino de Deus? A contradição é evidente. Nenhuma Igreja cristã está obrigada a
renunciar às suas convicções e preceitos religiosos para realizar o casamento
gay, mas é também verdade que nenhuma Igreja cristã recebeu de Jesus a
autoridade para excluir aqueles que não se enquadram nem observam os preceitos
religiosos. Neste sentido, vale a palavra do papa Francisco, por ocasião da
abertura do Sínodo sobre a Família: “Uma Igreja com as portas fechadas trai a
si mesma e a sua missão. E, ao invés de ser uma ponte, torna-se uma barreira”. É
necessário abertura e construção de pontes. Nossas Igrejas não podem se
transformar em pedras de tropeço na vida das pessoas, pois a missão dada por
Jesus foi a de anunciar a Boa Notícia, e esta liberta, não oprime.
Abrir-se
para compreender não é, necessariamente, aceitar o que é contrário à doutrina
religiosa, mas é respeitar e acolher as pessoas em sua condição e escolhas. Este
parece ser o caminho apontado pelo evangelho de Jesus. Fora disso, reina a
hipocrisia, que somente escandaliza o povo de Deus, desmotivando-o em sua
peregrinação rumo à plenitude do Reino de Deus. Por mais difícil que seja,
podemos afirmar sem sombra de dúvidas, que o critério estabelecido por Jesus
para a participação no Reino de Deus é o amor, e isto significa que Deus não
perguntará se as pessoas são cristãs ou não, se são heterossexuais ou homossexuais,
se cumpriram ou não os preceitos religiosos, mas perguntará pelo amor porque somente
o amor é que nos salva. Sem amor, toda religião e todo preceito religioso
não possui nenhuma validade diante de Deus. Sem amor, nenhuma família é feliz,
por mais religiosa que seja. Isto é o que podemos compreender a partir da ação
amorosa de Deus em Jesus de Nazaré, revelada no evangelho da vida e da
liberdade.
Tiago
de França
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