domingo, 4 de outubro de 2015

Família: sinal do amor de Deus

          O tema da família tem causado, ultimamente, muita polêmica. De uns tempos para cá, as pessoas estão reivindicando o reconhecimento civil de novas formas de entidade familiar. No Brasil e em muitos países do mundo, houve o reconhecimento civil da união homoafetiva. Casais homoafetivos constituem famílias? Não queremos entrar na discussão sobre o conflito entre o conceito de família na Constituição brasileira e no Cristianismo. Nossa reflexão quer abordar, brevemente, apenas duas questões: a primeira, a necessidade de considerarmos a existência das novas realidades familiares; a segunda, o reconhecimento da família como sinal do amor divino na construção de uma sociedade mais justa e fraterna.

            Tradicionalmente, as pessoas entendem a família como a união do homem e da mulher. A Igreja entende que o casamento e a família estão ordenados para o bem dos esposos, a procriação e a educação dos filhos. Este parece ser o conceito de família tradicionalmente adotado. Por isso, todos aqueles que não se enquadram neste conceito não constituem família. Prega-se que não há exceções porque assim Deus o quis, e está revelado no livro do Gênesis e em outras páginas bíblicas. Este é o ideal ensinado pelas Igrejas cristãs, mas a realidade é um pouco diferente. Há uma grande distância entre o ideal e o real.

            O ideal da família constituída a partir da união entre o homem e a mulher não pode ser imposto às pessoas. E não pode por dois motivos: primeiro, porque Deus não autoriza nenhuma forma de imposição. Toda imposição vai contra o projeto de Deus. Os mais radicais entre os cristãos ousam algumas afirmações, tais como: “Deus instituiu o casamento entre homem e mulher, o resto vem de Satanás!” É muito comum escutar tal expressão sendo dita com veemência nos púlpitos de nossas Igrejas. O caminho da exclusão e da condenação das realidades que não se enquadram no modelo tradicional de família parece não ser o correto, pois contraria o mandamento de Jesus, que ensinou o amor e a aceitação das pessoas.

            O segundo motivo se refere ao fato de que o mundo é plural. A pluralidade e/ou a diversidade não dá espaço para imposição de um único modelo de família. A revelação bíblica não anula a pluralidade. A diversidade é dom de Deus. Somente quem não compreende a pedagogia divina na história da salvação é que defende a uniformidade de todas as coisas. Deus criou a pluralidade de todas as coisas. A obra da criação é plural, jamais uniforme. Por mais que os cristãos queiram que todo o mundo seja cristão, isto seria impossível. A pluralidade das culturas não permite a uniformidade religiosa. Um homem homossexual não pode reprimir sua condição para casar-se com uma mulher somente para ser aceito pela Igreja e pela sociedade. Isto não seria obediência a Deus.

            As Igrejas cristãs precisam se esforçar mais um pouco para praticar o mandamento de Jesus: o amor. No amor não há espaço para julgamento e condenação de pessoas. O amor exige respeito e promoção da dignidade delas. Estas são livres para amar a quem quiser. Sem nenhuma dificuldade podemos afirmar que Deus é amor, e que os homens criam as formas de amor. Estas são plurais. Cada um ama a seu modo, de acordo com suas disposições e preferências.

Ninguém recebeu de Deus uma forma prescrita de amor para impor à humanidade. Nenhum versículo bíblico legitima essa imposição. No evangelho, Jesus ensina a acolher, aceitar as coisas como elas são, amá-las sem impor condições. Não se trata de acabar com a família tradicional e exaltar as demais formas de união, não de exaltar estas em detrimento daquela. Trata-se de olhar o mundo e reconhecer que inúmeras pessoas não vivem segundo o modelo tradicional de família, e elas não podem ser condenadas e excluídas por causa disso. A realidade da humanidade não pode ser esquecida e marginalizada, pois Jesus enviou os seus discípulos para evangelizar este mundo, sem julgá-lo nem condená-lo. A Boa Notícia do Reino de Deus é inclusiva porque se fosse exclusiva seria uma má notícia. Quem prega um evangelho exclusivo, visando somente um grupo seleto de pessoas, não anuncia a Boa Notícia do Reino de Deus, mas está inventando um outro evangelho.

Nossas Igrejas precisam aprender a reler a mensagem de Jesus, para encontrar nela o espírito de misericórdia que conduziu Jesus na sua missão terrena. É verdade que Jesus não tocou no tema da homossexualidade. Este é tratado com muito rigor no Antigo Testamento. Tratado sem o óleo da misericórdia. Por isso, os cristãos precisam reler o Antigo Testamento na perspectiva de Jesus, com os olhos de Jesus. A teologia do Antigo Testamento é diferente da do novo. Fala do mesmo Deus, mas numa perspectiva diferente.

Sem o devido entendimento desta teologia é impossível compreender a questão homoafetiva na Bíblia. Peca gravemente contra Deus todo aquele que extrair um versículo bíblico para utilizá-lo no julgamento e condenação de pessoas. Isto vale para os dois Testamentos bíblicos. A literalidade bíblica, quando se exclui o necessário trabalho exegético, torna-se perigosa. Quem não tem clareza do que a Bíblia fala corre o risco de manipulá-la para reforçar fobias e preconceitos. Apesar de conter a Palavra de Deus, a Bíblia pode ser transformada num instrumento de julgamento, condenação e exclusão de pessoas. Este é um problema grave que tem afetado todas as Igrejas cristãs.

            Facilmente, as Igrejas correm o risco de cair na hipocrisia quando julgam, condenam e excluem pessoas homoafetivas. Às vésperas da abertura do Sínodo Ordinário dos Bispos, que tratará da família, em Roma, um dos membros da Congregação para a Doutrina da Fé, um dos organismos mais poderosos da Cúria Romana, o padre polonês Krzysztof Charamsa, revelou ser gay. A homossexualidade no clero não constitui nenhuma novidade. Aqui não queremos discutir se é certou ou errado um padre ser gay. Questionamos a hipocrisia religiosa que se revela no fato de que se condena facilmente a homossexualidade presente na sociedade, sendo que boa parte do clero é homossexual.  

Como um padre homossexual pode afirmar que um leigo homossexual não alcançará o Reino de Deus? A contradição é evidente. Nenhuma Igreja cristã está obrigada a renunciar às suas convicções e preceitos religiosos para realizar o casamento gay, mas é também verdade que nenhuma Igreja cristã recebeu de Jesus a autoridade para excluir aqueles que não se enquadram nem observam os preceitos religiosos. Neste sentido, vale a palavra do papa Francisco, por ocasião da abertura do Sínodo sobre a Família: “Uma Igreja com as portas fechadas trai a si mesma e a sua missão. E, ao invés de ser uma ponte, torna-se uma barreira”. É necessário abertura e construção de pontes. Nossas Igrejas não podem se transformar em pedras de tropeço na vida das pessoas, pois a missão dada por Jesus foi a de anunciar a Boa Notícia, e esta liberta, não oprime.

Abrir-se para compreender não é, necessariamente, aceitar o que é contrário à doutrina religiosa, mas é respeitar e acolher as pessoas em sua condição e escolhas. Este parece ser o caminho apontado pelo evangelho de Jesus. Fora disso, reina a hipocrisia, que somente escandaliza o povo de Deus, desmotivando-o em sua peregrinação rumo à plenitude do Reino de Deus. Por mais difícil que seja, podemos afirmar sem sombra de dúvidas, que o critério estabelecido por Jesus para a participação no Reino de Deus é o amor, e isto significa que Deus não perguntará se as pessoas são cristãs ou não, se são heterossexuais ou homossexuais, se cumpriram ou não os preceitos religiosos, mas perguntará pelo amor porque somente o amor é que nos salva. Sem amor, toda religião e todo preceito religioso não possui nenhuma validade diante de Deus. Sem amor, nenhuma família é feliz, por mais religiosa que seja. Isto é o que podemos compreender a partir da ação amorosa de Deus em Jesus de Nazaré, revelada no evangelho da vida e da liberdade.


Tiago de França

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