domingo, 22 de novembro de 2015

O reinado de Jesus

“Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18, 37).

            Quando olhamos para os reinos deste mundo é impensável conceber Jesus como rei. De fato, ele não reinou neste mundo. E não reinou porque o Pai não o enviou para governar o mundo, mas para dar testemunho da verdade.  

Geralmente, os reis não dão testemunho da verdade, mas são revestidos de poder humano, glorificados e temidos pelos seus súditos. Esta lógica do poder não se aplica a Jesus. Como Filho de Deus, nascido na pobreza da manjedoura, Jesus não tinha poder para nada. Humanamente, era impotente.

Não tinha sequer um lugar para reclinar a cabeça. Então, por que criaram a festa de Jesus Cristo, rei do universo? A história mostra que a festa surgiu para confirmar e/ou legitimar o poder da Igreja na sociedade. O idealizador desta solenidade estava pensando no poder. Por isso, o espírito que deu origem à festa de Cristo rei é reconhecidamente pagão, não evangélico.

            Assim, podemos indagar: afinal de contas, há ou não um reinado de Jesus? Cremos que Jesus há de vir para julgar os vivos e os mortos. Esta verdade integra o nosso credo. Plenamente, não há um reinado de Jesus neste mundo. O reinado de Jesus é o reinado do Pai, e este reinado ainda não é uma realidade plena, mas está se dando, está acontecendo, humilde e discretamente.  

Segundo Jesus, este reinado se parece com uma semente jogada na terra, que silenciosa e misteriosamente está germinando. Os seguidores de Jesus, ao longo da história, a partir das periferias do mundo, estão semeando e cultivando essa semente. E quando nasce o trigo, o joio aparece, mas ainda não pode ser tirado para ser jogado fora. Isto porque ainda não é o tempo da colheita. No tempo oportuno chegará a colheita. E em meio às dores, os filhos de Deus esperam ansiosamente por este dia, dia da libertação definitiva.

            Quando seguem o mestre Jesus, seus discípulos repetem seu gesto libertador: dar testemunho da verdade. O mundo atual, marcado pelas guerras e pelas inúmeras injustiças contra os oprimidos, oriundas da falta de amor, exige discípulos missionários autênticos; e a autenticidade consiste em dar testemunho da verdade.  

Ao dar este testemunho, o cristão permanece na escuta de Jesus; quando se recusa a este testemunho, afasta-se desta escuta. Em que consiste este testemunho? Consiste em permanecer unido a Jesus. Não basta saber dessa permanência, mas é necessário saber também o que ela significa: Onde Jesus está para que eu possa permanecer com ele? Eis o desafio.

Jesus continua nas periferias deste mundo, sofrendo na pele dos sofredores e excluídos. Jesus está sofrendo na vida das vítimas das barragens que se romperam em Mariana, Minas Gerais. Jesus está sofrendo na vida das vítimas dos atentados terroristas de Paris, França. Está na vida das vítimas inocentes dos bombardeios no Oriente Médio... Jesus está gritando de dor, lavado de sangue, mutilado nos membros dos que estão sendo massacrados pelos poderes opressores deste mundo.

            Quem está com estas vítimas? Quem as socorre em seu grito de dor? Quem são os que fazem o papel de bom samaritano, que sente compaixão, se aproxima e cuida das feridas, custeando as despesas da pensão na qual se abriga o caído? Quem irá restituir a dignidade daqueles que ficaram sem lenço e sem documento? Quem restituirá as vidas ceifadas pela lama venenosa, pelas balas e mísseis disparados?...

O que fazer para conter o ódio, a indiferença e a ganância dos poderosos deste mundo? Quem está trabalhando para que a esperança permaneça viva, apesar do clima sombrio e cruel de nossos dias? Será que a mera doação de uma cesta básica, o cumprimento de sentença judicial, impondo multa e outras medidas, é suficiente para tranquilizar a consciência, libertando da culpa e responsabilidade? Qual nossa postura diante do grito ensurdecedor das vítimas? Sacudimos os ombros e cruzamos os braços?...

            Certamente, muitos dirão neste domingo solene, que Jesus deve reinar na vida e nos corações dos cristãos. Isto parece belo, mas até que ponto, verdadeiramente, Jesus é acolhido para reinar nos corações dos que se afirmam cristãos? É verdade efetiva, ou somente afetiva e romântica?...

Os lábios louvam o rei Jesus, mas no cotidiano da vida imita-se o sacerdote do templo e o levita, que passam pelo outro lado do caminho, recusando-se à compaixão e ao amor. Se a celebração do senhorio de Jesus reforça nossa superioridade em relação aos outros e o nosso proceder indiferente, então somos hipócritas e fariseus, maliciosamente diabólicos. Temos que nos converter para enxergarmos que o rei Jesus é o Servo Pobre e Sofredor, que não nos aguarda no conforto dos palácios e dos templos, mas nos quer lá onde a lama suja e sufoca, onde a bala fere e mata.

            Nesta hora difícil da história humana, dar testemunho da verdade é, assistidos pela graça divina, sermos fieis a Jesus. Ser fiel a Jesus é permanecer com ele, e isto ultrapassa todo o louvor e piedade. Permanecer é estar com, é comprometer-se com Ele até as últimas consequências. A todo momento estamos sendo tentados a fazermos o papel de Judas Iscariotes, que traiu Jesus; e, em muitas ocasiões, somos traidores: omissos, covardes, mesquinhos, orgulhosos, arrogantes, frios, prepotentes, maliciosos, mentirosos, caluniadores, falsos, medíocres, desumanos. E o pior é que, quando religiosos, gostamos de aparentar santidade e piedade cristã com o intuito de esconder nossa maldade, praticando, assim, um falso cristianismo.

O Espírito de Jesus nos ajuda a sermos fieis, a não sermos covardes e omissos. Despojemo-nos, pois, de toda ambição e sede de poder. Abramo-nos a este Espírito, para sermos humildes servidores, sal e luz do mundo. Não sejamos agentes de Satanás, pai da mentira e da discórdia, mas permaneçamos em Jesus, Luz do mundo. Que nossos gestos e palavras constituam a verdade, única capaz de libertar este mundo das trevas do pecado e da morte. Sejamos luz, suavidade, ternura, aconchego, acolhida, mãos calorosas que acolhem e cuidam, pois nossa espiritualidade é a do cuidado do outro. Fora dessa espiritualidade não pode existir verdadeira celebração ao Cristo rei do universo.


Tiago de França

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Pacto das Catacumbas: Por uma Igreja fiel ao Espírito de Jesus

           No dia 16 de novembro de 1965, há exatos 50 anos, cerca de 40 Padres conciliares, pouco antes do encerramento do Concílio Vaticano II, celebraram a Eucaristia nas Catacumbas de Domitila, em Roma. Depois da celebração, assinaram um pacto que recebeu o nome de “Pacto das Catacumbas”.  

Qual o significado teológico e espiritual deste Pacto para a vida da Igreja? Não queremos fazer uma análise do Pacto, em suas proposições, mas, para que o mesmo não caia no esquecimento – tentação corrente na Igreja – queremos oferecer algumas provocações necessárias para nossos dias.

            O texto do Pacto, logo abaixo transcrito, revela que seus signatários estavam convencidos da necessidade de conversão ao Espírito de Jesus: Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho...” Antes do Vaticano II, os bispos, salvo exceções, viviam dominados pela “psicologia de príncipes” (expressão do papa Francisco).  

Neste sentido, o Pacto aparece como um convite à conversão do coração e da vida toda a Jesus. Os bispos descobriram que na qualidade de apóstolos de Jesus, pois reivindicam a sucessão apostólica, devem ser como o Mestre: Pobre entre os pobres. Príncipes não são pobres, mas ricos, orgulhosamente vaidosos e entregues aos prazeres e seguranças.

            Viver no estilo dos pobres não é algo fácil em um mundo marcado pela busca incansável da riqueza, do poder e do prestígio. Desde tempos antigos, estes três males tem afetado a vida da Igreja, especialmente os clérigos (padres e bispos, cardeais e papas). Não precisamos explicitar com detalhes a história da Igreja desde a época em que foi reconhecida religião oficial do império romano.  

Os fatos falam por si e nos causam vergonha até os dias de hoje: Uma história marcada pelo apego à opulência e a toda espécie de devassidão. O reconhecimento desse passado sombrio é um passo significativo no caminho da conversão, pois esta não é possível sem o reconhecimento humilde dos pecados e crimes cometidos no passado. Não há arrependimento sem reconhecimento das fraquezas.

            Os bispos que assinaram o Pacto não quiseram somente ficar no reconhecimento das fraquezas: “...colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos...” Quiseram assumir um compromisso perante Deus e toda a Igreja: O compromisso de seres homens pobres entre os pobres, em vista de uma Igreja servidora e pobre. 

Dentre outros brasileiros, Dom Helder Câmara, então arcebispo de Olinda e Recife (PE) foi um dos propositores que assinou o Pacto. Assinou com o testemunho da própria vida, e quem o conheceu de perto viu que, de fato, vivia o estilo de vida dos pobres, residindo, humilde e despojadamente, na sacristia de uma pequena igreja, em Recife, após ter renunciado ao conforto do palácio episcopal.

            O Pacto é um instrumento profético que denuncia a vida luxuosa de inúmeros bispos da Igreja, que viviam e até hoje vivem segundo o “mundanismo espiritual” (outra expressão utilizada pelo papa Francisco). Em que consiste esse mundanismo espiritual na vida dos bispos?  

Consiste naquilo que o Pacto denuncia como pecado contra a vida apostólica: aparência e realidade de riqueza (ouro, prata, roupas caras, paramentos luxuosos, insígnias de matéria preciosa; posse de imóveis e somas de dinheiro em conta pessoal; uso de títulos que signifiquem grandeza e poder; gozo de privilégios e honrarias; preferência pelos ricos e poderosos; distanciamento dos pobres e sofredores; ausência nas lutas por justiça e paz; aposentadorias que envolvem grandes somas; recusa à vivência da colegialidade episcopal; depravação sexual; abuso de poder e autoridade; uso de palácio ou de residências luxuosas; uso de carros luxuosos; entre outros comportamentos que causam escândalo ao povo santo de Deus.

            Bispos verdadeiramente pobres, que aspiram viver como Jesus viveu, não podem aderir a estas condutas e/ou formas de proceder. Não há discurso que convença o povo de que quem assim vive possa agradar a Deus. O Deus e Pai de Jesus se encarnou na periferia do mundo. Na pessoa de Jesus de Nazaré, o bom Deus optou claramente pelos pobres, e esta deve ser a opção da Igreja.

O evangelho de Jesus é muito claro quanto a isto: Seus seguidores devem viver segundo o seu estilo: Pobre e despojado. Com isto, não estamos fazendo apologia à miséria. Jesus não defendeu a miséria, mas a denunciou, assim como denunciou a riqueza. Os discípulos missionários de Jesus precisam ser pessoas pobres, não miseráveis nem ricos. Entendemos como miséria a situação de escassez crônica, da falta do necessário para viver. Por isso, não está de acordo com a vontade do Deus que é fonte da vida em abundância.

            Mesmo após o Vaticano II ter apontado para o caminho da conversão pessoal, estrutural e pastoral, inúmeros clérigos continuaram e até hoje continuam optando pelos ricos e poderosos. Neste sentido, os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, apesar de seus pontos positivos, infelizmente, não ajudaram os clérigos a se converterem a Jesus. A nomeação de bispos fechados às indicações do Vaticano II e aos sinais dos tempos, fizeram com que a Igreja se tornasse cada vez mais uma instituição distante do povo.

A preocupação pelo cumprimento fiel das regras litúrgicas, o devocionismo, o culto à personalidade do papa, a prática de eventos de massa, o rigor disciplinar, as sanções aos teólogos que ousaram evoluir na reflexão sobre a fé, a omissão diante dos abusos sexuais, os acordos firmados com os poderosos deste mundo, a marginalização dos projetos e iniciativas populares, e tantos outros males marcaram mais de três décadas de inverno espiritual na Igreja pós-Conciliar. Neste período, salvo exceções de experiências isoladas e perseguidas, o conservadorismo fez com que o Pacto fosse esquecido. Para os conservadores, o Pacto não é evangélico, mas coisa do comunismo, este entendido como um mal a ser combatido.

            De repente, eis que o colégio cardinalício resolveu permitir que o Espírito trabalhasse na escolha do novo papa e, pela primeira vez na história da Igreja, chega à Diocese de Roma um latino-americano, filho da Argentina e da Companhia de Jesus (Jesuítas). Escandalosamente, um papa sintonizado com o Espírito de Jesus e com o espírito do Vaticano II.  

Ousado, iniciou a reforma da Cúria Romana, sua maior inimiga. Apreciado pelo povo e odiado pelos que vivem apegados ao poder e ao dinheiro, o papa Francisco insiste na continuidade da reforma, apesar dos riscos. Sendo acompanhado pelas preces de toda a Igreja, sob a proteção de Deus, espera-se novos tempos. Mantendo-se fiel à missão recebida, está fazendo jus ao nome escolhido: Franciscus, homem da humildade, da simplicidade e da caridade evangélica, desde Assis, Itália, antes da grande reforma luterana. Para a alegria de muitos e a tristeza de outros, pela primeira vez após o Vaticano II, um papa retoma o Concílio para o bem da Igreja, e as orientações do Pacto para a vida episcopal.

            O que esperar da situação na qual estamos inseridos? A esperança não decepciona porque Deus permanece fiel. À luz do evangelho de Jesus, marcados pelo batismo e auxiliados pela força da Trindade, somos chamados a manter viva a esperança, o amor e a fé. Tanto dentro quanto fora das fronteiras da Igreja, vivemos tempos sombrios, difíceis. Tempos que exigem mulheres e homens fortes, convictos, fieis, alegres, ousados, cheios de amor e fé.

Desastres naturais, atentados terroristas, injustiças de toda espécie, gente sofrendo e morrendo, gritos e lágrimas, indiferença e frieza tem tomado conta do mundo. Apesar disso, os sinais de Ressurreição permanecem vivos. Há muita gente amando em nome de Jesus, construindo, desse modo, o Reino de Deus; livres do desespero, gerador da morte.  

O chamado divino não cessa. Jesus está batendo à porta do nosso coração. Ele quer habitar em nós. Não sejamos omissos. O tempo é de profecia, de graça e salvação. Ai daquele que não enxergar Jesus passar! Mantenhamos as lâmpadas acesas. Deus é amor. A sua presença é certa, peçamos a graça de percebê-la e senti-la. Ele liberta do medo. Ele é vida na liberdade e no amor. Chama-nos, chama-nos, chama-nos... Qual é a nossa resposta?... O Pacto indica o sim generoso, ousado, alegre, manso e confiante.

Tiago de França da Silva
Desde Belo Horizonte – MG, 17 de novembro de 2015.
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PACTO DAS CATACUMBAS (Texto integral)

Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.

3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.

4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.

5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.

7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.

9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.

10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.

11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos:

- a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;

- a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:

- esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles;

- suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo;

- procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...;

- mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.

13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.
Ajude-nos Deus a sermos fiéis.


(Catacumba de Domitila, 16 de novembro de 1965)

sábado, 7 de novembro de 2015

O dom da partilha

“Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver” (Mc 12, 43 – 44).

            O mundo atual é marcado pela cultura do individualismo. Há muita gente que só pensa em si mesma, vivendo em função de si mesma. Em tudo procura satisfazer-se, não aceitam perder, somente querem ganhar. Essa gente, antes de se envolver em alguma coisa, se pergunta: O que vou ganhar com isso? Por isso, sente dificuldade de praticar a solidariedade porque nesta não há retorno, pois é, essencialmente, gratuita. Estender as mãos para a acolhida do outro, para abraçá-lo em suas necessidades, está se tornando cada vez mais atitude rara. As pessoas querem tirar vantagem em tudo. Quem assim procede não conhece Jesus e sua mensagem.

            Segundo a lógica capitalista, os problemas e necessidades do outro não despertam nenhum interesse nem incômodo. “Eu estou cuidando da minha vida, procurando o meu espaço, satisfazendo as minhas necessidades. Trabalho para isso. Quem tiver seus problemas e necessidades que as resolva! Não tenho nada a ver com isso! Não tenho culpa nas carências de ninguém”, pensa o egoísta no seu íntimo. Visivelmente, quem assim pensa e procede, desconhece Jesus e sua mensagem. Curiosamente, em nossas Igrejas há inúmeras pessoas que pensam e agem dessa forma. Acham que são seguidoras de Jesus, praticando o egoísmo. Ainda não aprenderam que a fé cristã não é compatível com o egoísmo. Quando este vigora aquela desaparece.

            Qual a recompensa merecida para o egoísta? A morte espiritual. Pode ser rico e gozar de alegrias passageiras, mas, no fundo, é triste e infeliz. É assim porque a verdadeira alegria é filha da generosidade e da partilha. Infeliz daquele que não é sensível ao sofrimento do outro. Trata-se de pessoa mesquinha e desprezada, pois são poucos os que suportam conviver com o egoísta. Este anula de sua vida a existência frágil do outro e se coloca como autossuficiente. Trata-se, ainda, de pessoa morta, que ousa ocupar espaço no mundo. A morte do egoísta é a falta de amor, pois quem ama é generoso e solidário com o outro. O egoísta não ama, mas se aproveita das pessoas para a satisfação de seus instintos egoístas.

            É comum vermos as pessoas buscando o poder, o prestígio e a riqueza, com a única finalidade – dizem elas –, de serem felizes. Falam de boca cheia de seus anseios e sonhos materialistas. Dedicam suas energias à busca incansável da vida tranquila e confortável, alicerçada nas seguranças que o poder e o dinheiro podem oferecer. No meio da multidão dos que assim vivem, há uma minoria que pensa e age em função da felicidade do outro. Lutam, diuturnamente, pela promoção da dignidade do outro. Estas, sim, conhecem Jesus e sua mensagem, pois se deixam guiar por seu Espírito, que as liberta do mal do egoísmo. Somente as pessoas generosas, que partilham do que são e do que tem, é que realmente podem ser felizes. Não existe felicidade no egoísmo. Neste somente há mentira e perturbação mental. Todo egoísta não tem paz interior. É uma criatura perturbada, insatisfeita, pois o egoísmo a corrói por dentro, tirando-lhe a verdadeira alegria e tranquilidade.

            O que nos ensina Jesus sobre o dom da partilha? Ensina-nos que somos irmãos. Ser irmão significa reconhecer no outro um filho de Deus. Deus Pai quer que seus filhos vivam a fraternidade. Ser fraterno é reconhecer no outro um irmão, remido no sangue de Jesus. Como o cristão ama a Deus? Não há outra forma de amar a Deus senão amando o próximo. Não se ama a Deus com os lábios e com o pensamento. O amor não é uma realidade abstrata, coisa do mundo das ideias. O amor é concreto, é ação libertadora, é a força poderosa capaz de salvar toda a humanidade. É encontro fecundo e transformador entre as pessoas, que as liberta do preconceito e da indiferença. Somente o amor liberta do egoísmo. O egoísta se converte quando aprende a amar as pessoas na gratuidade, generosidade e liberdade.

            No evangelho segundo Marcos, encontramos Jesus admirado com o gesto de uma pobre viúva que depositou duas moedas no cofre do Templo. Segundo Jesus, ela deu tudo o que tinha para viver. Na sua pobreza, foi mais generosa do que os ricos, que davam daquilo que lhes sobrava. Jesus louva o gesto concreto da viúva e ensina a seus discípulos o dom da partilha. Partilhar não é dar o resto e/ou a sobra. Não é livrar-se das pessoas para que não mais nos incomodem. Não é fazer doações para tranquilizar a consciência. Partilhar, segundo a ótica do evangelho, é voltar-se para o outro. Não é mero gesto momentâneo, mas é permanecer com o outro, atento às suas necessidades e problemas. É colocar-se a serviço do outro. É comungar da sua vida. O dom da partilha exige a necessária compreensão da situação do outro, exige compaixão, atenção, gratuidade, humildade, disponibilidade, muito amor e dedicação. O Deus e Pai de Jesus permanece na vida de quem partilha no amor.

            Quem se abre ao sagrado exercício espiritual da partilha fraterna conhece uma paz interior que o mundo não consegue dar. Exerce uma profecia que denuncia o mal maior que oprime mulheres e homens no mundo inteiro: O apego aos bens materiais. Este apego aos bens gera o egoísmo. Os escravos dos bens materiais não dispõem de tempo para pensar nos outros, pois estão concentrados na manutenção e multiplicação dos próprios bens. Para estes escravos, não se pode nem pensar no outro porque isto representa perda de tempo. Por isso, desconhecem sentimentos como a compaixão, que exige colocar-se no lugar do outro. O verdadeiro cristão não pode ser assim, pois se o é, não é cristão.

            Por fim, abrir-se à ação amorosa do Espírito é a atitude de quem deseja livrar-se, definitivamente, do mal do egoísmo. Este Espírito tem a força de manter o discípulo no caminho de Jesus: Caminho da partilha generosa e feliz. Este Espírito nos concede a graça de partilharmos o sorriso, o abraço, a atenção, o ouvir, o pão. Com o coração humilde, contrito e aberto, somos chamados a sentir as dores do corpo de Cristo nos corpos dos sofredores, a fim de que quando chegar o grande dia da glorificação final dos filhos e filhos de Deus, possamos festejar eternamente, participando do banquete do Reino de Deus. E quando chegar esse dia, a festa vai ser linda de viver!


Tiago de França

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A vida na morte

Segundo São Francisco de Assis, a morte é nossa irmã. Não há quem escape dela: ricos e pobres, arrogantes e humildes, ignorantes e sábios, doentes e sãos, ateus e crentes; enfim, todos os seres vivos se encontram com a morte, que os obriga a deixar a existência material. Quer aceitemos, quer não, ela nos vem ao encontro.

Claro que não precisamos viver em função da morte, pensando nela a todo instante, mas nos faz bem vivermos reconciliados com a certeza de sua vinda. Infelizmente, há um número incalculável de pessoas que vivem ameaçados pela morte todos os dias. São os feridos em sua dignidade, padecendo pela falta de alimento, moradia, saúde, trabalho etc. Estas pessoas não tem paz porque a escassez que as ameaça lhe tirou a tranquilidade. Há uma multidão de gente atormentada neste mundo, e no meio dela há muitas pessoas desejando a morte.

            O que dizer para estas pessoas? As filosofias humanas não possuem uma resposta esperançosa. Há quem diga que é normal que uma parcela da humanidade deva viver sofrendo, sendo ameaçada constantemente pela morte. Segundo esta filosofia da morte, a vida não está para todos, mas para uma parcela da humanidade. Quem adere a esta filosofia não enxerga nenhum problema no extermínio de pessoas na África e no Oriente Médio, assim como em todo o mundo. Adolf Hitler continua tendo seus seguidores em todas as partes do mundo.

A cultura que daí surge é a da eliminação do outro. Este, uma vez excluído, tem que morrer. Deficientes, idosos, doentes crônicos, pobres que nada produzem e nada consomem, viciados no álcool e nas drogas, entre outras categorias de pessoas, são consideradas descartáveis e, por isso mesmo, devem ser eliminadas. Os jornais falam das mortes dessas pessoas e há muita gente que não vê problema nisso. Quem não vê problema algum nesse cenário de morte não pode afirmar-se cristão e, se o fizer, mente descaradamente.  

O que Jesus fala para todas as pessoas que vivem sendo constantemente ameaçadas pela morte, em decorrência das inúmeras injustiças que se cometem neste mundo? A Boa Notícia de Jesus, a este respeito, possui duas certezas maravilhosas: a primeira, consiste no fato de que Jesus permanece entre as vítimas das chacinas que se cometem no mundo. Quando os cristãos sofredores enxergam a presença de Jesus, aí já se inicia o processo glorioso da ressurreição da carne e da vida eterna.

O sofrimento e a morte ganham sentido, deixando de ser sinônimo de desgraça. A segunda certeza está intimamente ligada à primeira, que consiste na fidelidade de Deus ao seu povo. Deus é fiel e jamais o abandonará. Esta é a esperança que move a peregrinação dos que creem, dos que se encontram na caminhada rumo à plenitude do Reino de Deus.

Neste sentido, o Dia de Finados não é dia de celebração da morte, pois em Cristo Jesus a morte perdeu o seu poder, marcando apenas uma leve pausa na existência cristã. Na morte, a força de Deus se manifesta e a vida ressurge. Unidos a Jesus na morte, os cristãos participam da ressurreição.

Antes de participar da morte de Cristo, os seguidores de Jesus fazem a mesma opção que ele fez, ou seja, lutam contra as injustiças geradoras de morte no mundo. As lutas pela vida dos injustiçados já é participação na paixão, morte e ressurreição de Jesus. É nesta perspectiva, que a morte dos mártires não é sinal de derrota nem de desgraça, mas de ressurreição. Os cristãos autênticos não tem medo da morte, pois sabem que o Deus e Pai de Jesus é fiel, permanecendo com os seus filhos na morte para dar-lhes a vida.

Por fim, é preciso dizer que a morte nos recorda da transitoriedade de todas as coisas. Ela nos ensina que somos mais felizes quando vivemos despojadamente, sem nos apegarmos a nada nem a ninguém. A morte das mulheres e homens livres é suave e benfazeja. Quando apegados à riqueza, ao poder e ao prestígio, o ser humano sofre desnecessariamente com a morte, pois esta acaba com os apegos.  

Assim, a morte é a palavra final da liberdade. Uma vez morto, o homem nada possui. Em um mundo marcado pelo materialismo e consumismo, a notícia da própria morte causa angústia e medo. Para os que creem em Jesus e vivem conforme seu mandamento, “é morrendo que se vive para a vida eterna”.


Tiago de França

domingo, 1 de novembro de 2015

Ser santo hoje

         
          Cada época possui seus próprios santos e nenhum é igual ao outro. Os santos da Igreja primitiva são diferentes dos santos medievais. Os santos modernos são mais diferentes ainda. Isto significa que não há um único modelo de santidade. O que há em comum é que todos são seguidores de Jesus, praticantes de seu mandamento: o amor. É o amor que santifica as pessoas.

            Houve uma época em que se pensava que a santidade era um dom reservado aos clérigos e às religiosas dos conventos e mosteiros. Até o Concílio Vaticano II se pensava dessa forma. A santidade estava intimamente ligada à virgindade do corpo, ao sacramento da Ordem e à consagração religiosa. Ensinava-se que a santidade era para as mulheres e homens puros e, portanto, imaculados.  

Pregava-se a existência de uma classe de gente considerada eleita em detrimento dos demais pecadores. Era a classe dos santos e santas de Deus. Estes eram e continuam sendo canonizados pela Igreja, tendo reconhecidas suas virtudes. Curiosamente, mesmo após o mencionado Concílio, a Igreja continua a exigir que exista milagre para que haja a canonização. Isto explica o fato de o povo católico querer milagres dos santos, não se interessando em “imitá-los” em suas virtudes.

Os santos eram considerados entes superiores, pois viviam enclausurados na vida monacal e conventual, rezando, diuturnamente o ofício divino (antigo breviário) e buscando a perfeição pessoal através de práticas ascéticas. Eram mulheres e homens experimentados na vida espiritual, entranhados nos mistérios da vida silenciosa e orante. De fato, não podemos duvidar da santidade de uma multidão de pessoas que assim viveram, sendo, portanto, fieis aos apelos do Espírito, de acordo com suas épocas. Cada santo é fiel ao Espírito e vive esse apelo de acordo com a sua época.

Hoje, os santos são diferentes. A maioria não usa mais os hábitos e batinas pretas medievais. Não possuem um semblante triste e penitencial. Permanecem unidos à cruz de Cristo na alegria, na constância do amor, da esperança e da fé. A maioria já não é reconhecida oficialmente pela Igreja. Muitos se encontram no anonimato, amando a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmos. Despojadamente, são promotores da justiça e da paz. Vivendo de acordo com o que pede o Espírito, estão em todas as religiosas. São sinais da presença amorosa de Deus no meio do mundo.

Na Igreja Católica, a maioria dos santos é leiga, ou seja, não são ordenados. Entre estes últimos podemos encontrar alguns santos: homens dedicados às grandes causas do Reino de Deus. Outros vivem à procura da santidade, mas não a encontram porque estão como que cegos, atingidos pelo mal do poder. Na vida eclesiástica, o poder impede muitos clérigos de serem santos. Isto ocorre porque os santos padres são aqueles que se colocam na fileira dos excluídos, servindo-os com humildade, simplicidade, amor e zelo. Agora, durante o pontificado do papa Francisco, os clérigos apegados ao poder, longe de serem santos conforme o evangelho, estão cada vez mais agressivos, semeando a discórdia na Igreja, exercendo com eloquência o papel de traidores do povo santo de Deus.

Como identificar e diferenciar, hoje, o verdadeiro do falso santo em nossas Igrejas? Os verdadeiros santos são aqueles que pautam a sua vida no amor. Vivem amando, incondicionalmente. Vivem fazendo a opção de Jesus, o Santo de Deus, fonte de toda santidade. Não se mede a santidade de uma pessoa pela sua fidelidade aos preceitos religiosos, pois podemos ter bons religiosos, mas que podem ser inimigos de Deus. Ninguém se torna santo diante de Deus porque é fiel aos preceitos religiosos. Estes tem a sua importância, mas por si mesmos não santificam ninguém. Somos justificados no amor. Somos salvos no amor. Somos santos e santas no amor. Fora do amor somente pode existir aparência de santidade.

Então, o que fazer para ser santo? Não há nenhum manual que traz regras a serem cumpridas. O manual dos santos é o evangelho. Este é a regra de vida dos santos. Quem ouvir os apelos do Espírito e se deixar interpelar, passará por uma transformação interior e será, neste mundo, um outro Cristo. Santos são mulheres e homens convertidos a Jesus, pessoas pecadoras que vivem sob a ação do Espírito, totalmente voltadas para o outro, na esperança da manifestação gloriosa dos filhos de Deus em Cristo Jesus. Esta é a vocação dos santos. É o chamado que Deus faz a todos, sem distinção. É uma obra de amor, repleta de alegria e de ternura, de graça e redenção. É o Tudo presente em todos, agora e para sempre.

Tiago de França