sábado, 30 de janeiro de 2016

A missão dos profetas

“Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria” (Lc 4, 24).

            Deus escolhe algumas pessoas, lhes concede o dom da profecia e as envia em missão. Segundo as Escrituras, esta escolha e consagração acontecem já no ventre materno (cf. Jr 1, 4 – 5). Por isso, o profeta não é escolhido, consagrado e enviado por um homem ou por uma instituição religiosa, mas pelo próprio Deus. Isto significa que ele não pode deixar-se prender por nada, mas é orientado pelo Espírito de Deus, que o ilumina, guia e sustenta na missão. Este é o primeiro ponto a ser considerado na bela e arriscada vocação profética.

            Deus envia o profeta para determinada época e circunstâncias. Ele é enviado para transmitir a palavra de Deus, e esta palavra é colocada em sua boca pelo Espírito de Deus. Por isso, o profeta não pode anunciar suas próprias ideias, levando as pessoas a pensar que estas são palavras de Deus. Esta palavra é a única que salva e deve ser anunciada sobre os telhados, em alto e bom tom, com toda a clareza e liberdade possíveis. Humanamente, o profeta não tem força para nada. É uma pessoa entregue à força de Deus. Carrega consigo a força divina, que é o Espírito de Deus. Confia plenamente nesta força divina e não se apega às seguranças do mundo. Este é o segundo ponto a ser considerado.

                Há profetas dentro e fora das Igrejas e das religiões. Podem ser religiosos, ou não. Alguns frequentam o culto, outros não. Há até profetas que presidem o culto. Estes, geralmente são perseguidos pelas instituições religiosas porque exercem a profecia no interior da religião. Não há religião que aceite plenamente os profetas porque estes denunciam as infidelidades e os desvios que se cometem em nome de Deus. Muitas vezes, são expulsos das instituições religiosas, assim como Jesus foi expulso pelos seus próprios conterrâneos (cf. Lc 4, 28 – 29). Jesus despertou a fúria em seus conterrâneos e não foi tolerado. O profeta é um homem livre, é um peregrino da liberdade, entregue à vontade de Deus. Este é o terceiro ponto a ser considerado.

            Por ser livre e guiado pelo Espírito de Deus, enxerga o mundo com os olhos da fé. Contemplativo e ativo, anuncia o Reino de Deus, apontando para os sinais da presença de Deus no mundo. O Espírito de Deus lhe concede os dons da visão e do discernimento. Na oração e no contato com a realidade encontra a ação amorosa de Deus. Despojado de todo espírito de perturbação e desespero, o profeta é um homem de paz, um promotor da paz. Não de uma falsa paz, oriunda de meros acordos humanos, alicerçados em interesses pessoais e corporativistas; mas de uma paz que é fruto do anúncio do evangelho e da denúncia das injustiças que ceifam a vida do povo de Deus. Este é o quarto ponto a ser considerado.

            Por fim, alguns profetas chegam à coroa do martírio: São brutalmente assassinados por causa do Reino de Deus. Jesus, o Profeta dos pobres, foi assassinado na cruz. Sua morte é fruto de sua adesão à vontade de Deus Pai. O derramamento de sangue é como que a prova da fidelidade do profeta à missão recebida. Muitas vezes, o profeta sabe que seu sangue está prestes a ser derramado, mas permanece fiel. Pode até sentir medo e angústia, mas o Espírito de Deus o sustenta diante das perseguições, incompreensões, ameaças e agressões. O sangue dos profetas caído na terra faz os corações das mulheres e homens de boa vontade arder de alegria e júbilo, infundindo-lhes o dom da fé no Deus que permanece fiel. Este é o quinto e último ponto a ser considerado em nossa humilde reflexão.

            E, para concluir, é preciso considerar a alegria e a confiança do profeta em Deus. Quando reza, o profeta mergulha mais profundamente no seio da Trindade Santa. Muitas vezes, nada fala nem pensa, mas permanece em silêncio diante do mistério grandioso de Deus. Este vai se revelando, mostrando a sua beleza e o seu amor.  

O profeta é um místico que tem a graça de experimentar a beleza e o amor de Deus. E este mesmo Deus o toma para si, na liberdade que lhe convém, conquistando seu coração, amando-o infinitamente. Entregue ao gozo dessa alegria perfeita e libertadora, o profeta já não sente mais falta de absolutamente nada. E na sua bondade, Deus o assiste em suas fraquezas e necessidades. Desse modo, na contemplação do mistério do amor divino, o profeta permanece em plena sintonia com Deus, fazendo sua vontade, gozando da felicidade plena, sendo amigo de Deus, desde agora e por toda a eternidade...


Tiago de França

Na foto, José Comblin (1923-2011), profeta da liberdade.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Pastores e mercenários

“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24).

            A caridade evangélica nos ensina que não devemos julgar a fé do próximo. Somente Deus conhece a fé que reside no coração das pessoas. Por isso, nossa reflexão não é um julgamento sobre a fé, mas uma análise de um fenômeno social. A religião é este fenômeno social e cultural que pode ser submetido ao nosso juízo. Este juízo deve ser feito com humildade, liberdade e caridade. 

Não se trata de julgar no sentido condenatório do termo, mas de analisar a realidade à luz da genuína fé cristã, para descobrirmos aquilo que é de Deus e o que é dos homens. Inicialmente, é preciso afirmar, categoricamente, o seguinte: Religião é criação humana, e fé é dom gratuito de Deus para a salvação da humanidade. Não podemos, de forma alguma, confundir religião com fé, pois são duas realidades diferentes.  

            Nossa pretensão é denunciar o amor ao dinheiro presente nas Igrejas cristãs. Cremos que nenhuma delas está livre desse mal. Em todas encontramos pessoas que optaram por servir ao dinheiro em detrimento do serviço a Deus. Nossa denúncia se dirige a todos os cristãos que desprezam a Deus e se apegam ao dinheiro, especialmente aqueles que exercem ministérios em nossas Igrejas. Tanto na Igreja Católica quanto nas Igrejas denominadas evangélicas, encontramos pastores apegados ao dinheiro.

Pastores apegados ao dinheiro não são verdadeiros pastores, mas mercenários. Estes exercem seu ministério com um único objetivo: Ganhar dinheiro. E a realidade do Brasil tem mostrado que eles tem ganhado muito dinheiro. São milhões de reais adquiridos em nome de Jesus! Na verdade, eles não agem em nome de Jesus, pois não foram enviados para roubar o dinheiro do povo, mas para cuidar do rebanho do Senhor.

            Na Igreja Católica cresce cada vez mais o número dos padres cantores, que conseguem vender inúmeras cópias de seus CDs e DVDs, além dos contratos caríssimos para fazer shows. A destinação da fortuna arrecadada é duvidosa. Sabemos da aquisição de carros e casas de luxo; propriedades urbanas e rurais caríssimas; contas bancárias recheadas de dinheiro; sem contar a vaidade das vestimentas, do cuidado excessivo com o corpo através das cirurgias plásticas, entre outros adereços e usos que não se prestam a ministros consagrados para o anúncio da Boa Notícia do Pobre Jesus de Nazaré. Além dos padres cantores, nada comprometidos com as grandes causas do Reino de Deus, também encontramos outros padres, que como párocos e vigários (entre outros ofícios), exploram o povo de Deus, arrecadando e acumulando altas somas de dinheiro.  

Particularmente, conheço um padre, que deve ter seus dez ou quinze anos de ministério, e que já possui uma fortuna avaliada em alguns milhões de reais. E para completar, nas últimas eleições, foi eleito deputado estadual. Qualquer fiel que reze um Pai nosso bem rezado diariamente percebe, ao olhar nos olhos dele, a falta de vocação para o ministério ordenado. É um mercenário clássico: Sabe falar bonito, prega bem as próprias ideias, utiliza-se de paramentos caríssimos que impressionam os fieis, tem semblante piedoso, entre outras características. Os três nomes que tem ganhado maior destaque na mídia são o Pe. Fábio de Melo, Pe. Reginaldo Manzotti e o Pe. Alessandro Campos. Estes são padres cantores.

            Quando olho para os que são realmente mercenários, fico me perguntando: Será que este padre não tem bispo? Por que os bispos fazem silêncio diante de tamanho escândalo? Por que não escutam a exortação do Papa Francisco, que tem convidado a uma vida simples e despojada? Por que as pessoas se deixam tão facilmente enganar pelo discurso falacioso desses falsos pastores? Por que são tão protegidos e conseguem tanto sucesso? Será que não param para pensar a respeito do mal que fazem ao povo de Deus e à Igreja? Por que esta situação não é causa de protestos por parte dos católicos mais comprometidos com a evangelização do mundo? Por que não são expulsos dos seminários aqueles que explicitamente demonstram o interesse de trilhar o mesmo caminho? Por que não são obrigados a prestar contas do dinheiro que arrecadam em suas atividades? Para responder a estas e tantas outras perguntas seria necessário escrever uma obra volumosa, exclusivamente voltada para a abordagem dessa realidade tão perigosa. O problema é grave e amplo. Infelizmente, o número dos envolvidos não é tão pequeno como se imagina.

            No mundo ‘evangélico’ neopentecostal não é diferente. Podemos encontrar inúmeros pastores que vivem explorando o povo de Deus. Recentemente, em um dos canais de televisão, escutei de um deles a seguinte ‘revelação’: “O Senhor Jesus está me revelando que precisa de 300 mil dizimistas para doar um dízimo mensal de 300 reais!” Não duvido que conseguirá encontrar tais dizimistas. E após a suposta revelação, o suposto pastor foi aplaudido de pé pela multidão de fieis que o rodeava. Basta ligar a televisão para encontrá-los.

Eles exploram sem nenhum pudor. Arrecadam fortunas, que os tornam milionários. Pregam a prosperidade de vida: “Entrega a tua vida e os teus bens ao Senhor Jesus e ele tudo fará por ti!”. Esta é a lógica do discurso deles: Quanto mais você investir dinheiro na fé, mais ela tornará a pessoa bem-sucedida na vida. Para eles, a fé não está separada do dinheiro. Este é como que o combustível daquela. Esta é uma ideologia que não tem nada que ver com Jesus. Trata-se de um mal que Jesus condenava nos mestres da lei e fariseus de sua época.  

            Como saber se o pastor é verdadeiro ou falso? No evangelho segundo João, Jesus responde claramente (cf. Jo 10, 1 – 16): Pastor é aquele que entra pela porta, que chama as ovelhas pelo nome, que as conduz e que dá a vida por elas. E quem é o mercenário? É aquele que rouba, mata e destrói, que abandona as ovelhas quando ameaçadas pelo lobo. Pelas palavras de Jesus, todo pastor que não cuida das ovelhas do rebanho, na verdade, não é pastor, mas mercenário.  

Hoje, os mercenários não se importam com a situação espiritual de suas ovelhas. Não as conduzem a Deus, mas aproveitam-se delas para se enriquecerem. Utilizam-se de falsas promessas, falsas visões e revelações, falsas curas, e reflexões que distorcem o verdadeiro sentido da mensagem de Jesus. Investe-se principalmente nas supostas curas e na promessa de prosperidade. Ocupam-se também das supostas possessões diabólicas. Tudo converge para a constituição de um negócio que rende muito dinheiro, e que não se sabe ao certo o quanto é declarado à receita federal. Os três nomes de maior destaque e que estão entre os mais ricos são o Bispo Edir Macedo, da Universal do Reino de Deus; o apóstolo (é assim mesmo que se autodenomina!) Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus e o pastor Silas Malafaia, da Associação Vitória em Cristo.

            Afinal de contas, qual foi o mandato missionário de Jesus? “Ide e evangelizai” (Mc 16, 15): eis a missão dos verdadeiros discípulos missionários. Nenhum discípulo de Jesus recebeu dele a ordem para criar instituições que visassem arrecadar dinheiro em seu nome para o enriquecimento de líderes religiosos. O Cristianismo, com seu aparato institucional, que muitas vezes exige grandes somas de dinheiro para se manter, não é obra de Jesus. E quando este aparato institucional não está a serviço dos empobrecidos deste mundo, seu destino é fatal: Somente serve para promover e manter privilégios para pessoas e grupos determinados. Independentemente da função que ocupam (leigos e ordenados, fieis e pastores), todos possuem a mesma missão: Evangelizar. Esta é a missão de nossas Igrejas.  

Quando não evangelizam, desviam-se de sua missão fundamental, entregando-se às vaidades e apegos, fazendo alianças com os poderosos, reforçando, desse modo, as forças contrárias ao Reino de Deus, que operam neste mundo. O evangelho de Jesus nos convida à missão, assim como nos exorta a denunciarmos o mal do apego ao dinheiro no interior de nossas Igrejas e no mundo. Este apego não pode ser tolerado, pois provoca a destruição das comunidades cristãs, impedindo-as de seguir Jesus na opção pelos pobres, segundo a vontade de Deus. Tanto no mundo quanto no interior de nossas Igrejas, tal apego também gera corrupção de toda espécie, como as que temos assistido nos noticiários todos os dias.

Tiago de França

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A conversão do apóstolo Paulo

“O Deus dos nossos antepassados escolheu-te para conheceres a sua vontade, veres o Justo e ouvires a sua própria voz. Porque tu serás a sua testemunha diante de todos os homens, daquilo que viste e ouviste” (At 22, 14 – 15).

            Paulo de Tarso era homem culto, educado na escola de Gamaliel. Foi instruído no rigor da Lei. Aprovado pelo Sumo Sacerdote e conselho de anciãos, foi orientado a perseguir os cristãos, seguidores do Caminho. Dirigindo-se a Damasco se encontrou com Jesus, e este mudou radicalmente a sua vida (cf. At 22, 3 – 16). De perseguidor a missionário, tornou-se um dos maiores anunciadores do evangelho de Jesus, reconhecido por todos como ungido de Deus e fundador de comunidades cristãs que constituíram a Igreja Primitiva. Vamos meditar a vocação deste grande homem, procurando compreender as palavras de Ananias, homem piedoso e fiel à Lei, que o esperava em Damasco, conforme orientação do próprio Cristo Jesus.

            O Deus que o chamou foi “O Deus dos nossos antepassados”, Pai de Jesus e nosso Deus. Não foi um homem que o escolheu, mas o próprio Deus. E a escolha foi para o conhecimento da vontade divina. Eis, portanto, nossa vocação primeira: Conhecer a vontade de Deus. Este conhecimento está acima de qualquer outro e constitui a garantia plena da felicidade e da salvação do gênero humano. Paulo também foi escolhido para ver Jesus e ouvir a sua voz. Ver e escutar Jesus são atitudes que visam conhecê-lo, tal como ele é. Conhecer, ver e ouvir: Eis as ações que todo discípulo deve ter para ser enviado em missão. Mas como e onde isto ocorre? Ocorre dentro de nossos templos? Conhecemos, vemos e ouvimos Jesus em nossas faculdades de teologia? Vamos pensar um pouco.

            O como ocorre é ação do Espírito: Ocorre de forma dinâmica, livre e espontânea. Não há um manual que ensine a conhecer, ver e ouvir Jesus. Tudo ocorre no movimento da vida. No cotidiano despojado da vida dos pobres se manifestam o conhecimento e a visão de Jesus. É a realidade da vida que fala de Jesus, e é por meio dela que ele nos fala; especialmente nos dirige sua palavra através do clamor das vítimas deste mundo. Estas nos falam de Jesus porque estão com ele na cruz, participando de sua paixão dolorosa e redentora. Também na vida contemplativa, os místicos conhecem, veem e escutam Jesus. Eles fazem a mesma experiência quando vivem a experiência mística em meio ao barulho deste mundo. Há místicos dentro e fora da clausura. Entre eles não há graus de importância, pois a experiência se mede pela entrega do místico ao mistério de Deus.

            Inicialmente, o apóstolo Paulo se encontrou com Jesus, ouviu a sua voz, mas não conseguiu vê-lo, pois a experiência sensível o impediu de fazê-lo: Jesus apareceu como que em forma de uma luz forte. O mais importante do encontro não foi exatamente a forma como Jesus apareceu, mas a escolha divina que o elegeu à vida apostólica. Na vida dos escolhidos e eleitos por Deus os sinais sensíveis que atestam a sua presença são poucos. São sinais que apontam para o mistério maior. Não podem ser buscados nem provocados em vista da vaidade humana, mas acolhidos na humildade e na discrição, para a edificação da vida espiritual, em vista de uma união cada vez mais clara e convicta com Deus.

            Um exemplo que atesta a presença de Deus na vida de seus escolhidos e eleitos: a perfeita alegria (expressão de São Francisco de Assis). Não há palavras que possam dizer com precisão o sentido deste sinal amoroso de Deus. Sabe-se que se trata de uma alegria que não passa, que não é dada por este mundo, que pode ser experimentada já nesta vida e que perdura para a vida eterna. Quem a sente experimenta a verdadeira paz e ninguém consegue tirá-la, porque é fruto da graça divina, da ação do Espírito. O que o Espírito dá ninguém tira. Jesus a experimentou e a transmitiu a seus discípulos por meio do sopro do Espírito que sonda todas as coisas. Os escritos paulinos também comprovam a mesma coisa: também ele experimentou a perfeita alegria.

            Por que conhecer, ver e escutar Jesus? Ananias responde: Porque tu serás a sua testemunha diante de todos os homens, daquilo que viste e ouviste. Ser testemunha de Jesus diante dos homens: Esta é a razão por excelência do conhecimento, da visão e da escuta de Jesus. Ser testemunha de Jesus é colocar-se em seu caminho e nele perseverar. Permanecer fiel ao que foi visto e escutado, partilhar com os irmãos e irmãs a beleza da escolha e eleição divinas. Partilhar com os irmãos e irmãs o mistério de Deus, que se revela em seu amor infinito e incondicional pela humanidade. Essa partilha cria fraternidade e renova toda a face da terra, transformando-a naquilo que Deus quer: Em um Reino de justiça e paz para todos.

            Paulo foi uma fiel testemunha do Cristo ressuscitado diante dos homens: Encontrou-se com Jesus, o conheceu de perto, o viu na carne sofrida de seus irmãos e irmãs, o escutou no clamor das vítimas de seu tempo. Deus o escolheu e o ungiu para a missão, concedendo-lhe o dom da palavra que revela a ação de Deus no mundo. Seus escritos falam de sua intimidade com Jesus, da sabedoria divina revelada na cruz de Cristo e da esperança que nos motiva a seguir adiante, construindo o Reino de Deus. As cartas paulinas são uma tradução do evangelho de Cristo, uma releitura fiel e eficaz da mensagem de Jesus para que surja no mundo uma humanidade nova.

            Com o apóstolo Paulo, homem convertido a Jesus, a Igreja é convidada a se colocar numa atitude de escuta amorosa, de serviço permanente aos pobres da terra. Desse modo, transformar-se-á numa testemunha fiel, humilde e servidora, de Jesus de Nazaré. Despojando-se das pretensões e/ou ambições mundanas, a Igreja fortalecerá a esperança dos pobres, a fim de que o Reino de Deus apareça na história.  

Alimentados pela esperança, pelo amor e pela fé, orientados pelo conhecimento da vontade divina, reconhecemos que o projeto de Deus vai transformando este mundo, atualmente tão marcado pelo derramamento de sangue dos inocentes e fracos. Responder a este convite é missão da Igreja, comunidade dos crentes em marcha, rumo à plena libertação. Que o Espírito que guiou Jesus e Paulo na missão nos mantenha firmes e fieis a este santo propósito.


Tiago de França

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

UM OLHAR SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL - A esperança em meio às tribulações

           
           Atendendo aos apelos dos amigos e comunidades, resolvi escrever a presente reflexão. Trata-se de um olhar sobre nossa atual situação brasileira e planetária à luz da fé, do evangelho e da realidade. Independentemente, de nossas crenças religiosas e de nossas preferências partidárias, somos chamados a pensar, com sinceridade e verdade, sobre a realidade, para não cairmos na tentação de nos tornarmos pessoas alienadas, dadas ao escárnio e à ridicularização.

Claro que o leitor é livre para concordar ou discordar, afinal de contas vivemos num país que, apesar dos pesares, aderiu ao estado democrático de direito. Religiosamente, o Cristianismo é favorável à divergência de pensamento, pois não é uniforme, mas essencialmente plural. Jesus não impôs uma maneira de ser e pensar, mas propôs um projeto chamado Reino de Deus, que exige adesão livre, consciente e responsável, sob a ação do Espírito de Deus.

            Estamos vivendo momentos difíceis em todas as esferas da vida humana. O ano de 2015 chegou ao seu fim com um histórico preocupante: Inúmeros conflitos oriundos da crise civilizatória. A situação nos passa a impressão de que chegamos ao fim dos tempos. A mídia sensacionalista nos fala da realidade de maneira catastrófica. Há um forte movimento que, propositadamente, impõe o desespero nas pessoas. Isto ocorre porque sabemos muito bem que em meio ao desespero as pessoas não conseguem refletir, e uma vez não refletindo sobre a realidade, a manipulação se torna tarefa fácil. A mídia explora a emoção das pessoas, cegando-as e manipulando-as.

            Um povo marcado pelo desespero não consegue enxergar o futuro. Portanto, é preciso manter viva a esperança, pois esta mantém o povo na vigilância, na espera pela transformação. Esta espera não é passiva nem alienada, mas ativa e consciente. Trata-se de uma esperança ativa, que move para frente, que impulsiona à ação. Não é mera crença individual, mas realidade comunitária, compromisso efetivo pela libertação integral da humanidade. Nesta realidade comunitária se encontra uma multidão de pessoas que acredita na construção de um outro mundo possível. Multidão formada por crentes e não crentes, religiosos e não religiosos, preocupados com a promoção da humanidade.

            O testemunho das Sagradas Escrituras fala da esperança cristã, de uma esperança que perpassa toda a história da salvação, tendo sua realização plena na pessoa de Jesus. A historiografia bíblica nos fala das tribulações que afetaram o povo de Deus na sua marcha pela libertação. Foram muitas as tentações e quedas, mas o Deus e Pai de Jesus permaneceu fiel. Sua fidelidade decorre do seu infinito amor e da aliança que fez com o povo que escolheu para si.

Infinitamente misericordioso, Deus perdoou o pecado do seu povo e o ajudou a manter-se no caminho que conduz à vida. Em Jesus, Deus veio ao mundo para permanecer com o seu povo, confirmando a promessa que havia feito na antiga Aliança, renovando-a no amor. A partir daí surge uma nova e eterna Aliança, que permanece viva até os nossos dias. Esta é a fé que nos vem desde Abraão, passando pelos profetas, renovando-se no sangue de Jesus e mantida pela força do Espírito Libertador. Esta é a esperança dos que creem em Deus, esperança que jamais decepciona.

A esperança cristã sobrevive em meio às tribulações porque a força amorosa de Deus está atuando nos corações dos crentes. Misteriosamente, Deus está agindo no mundo. Por ser misteriosa, a inteligência humana é incapaz de compreendê-la plenamente. Marcados por esta esperança e por esta força misteriosa, os verdadeiros cristãos não se deixam abater pelo desânimo, pela alienação, pela confusão nem pelo desespero. O terror do Estado Islâmico, as crises econômica, climática, política, moral, religiosa, enfim, a crise de humanidade que assola o mundo não consegue arrancar dos corações fervorosos os dons da fé, da esperança e da caridade.

Com o coração contrito e humilde, o autêntico cristão permanece de pé, com as lâmpadas acesas, agindo conforme o amor de Jesus, esperando, ansiosamente, pela manifestação gloriosa dos filhos e filhas de Deus, no grande dia marcado por Deus. Esta é a fé e a esperança que move os que realmente acreditam no poder de Deus, poder que se manifesta a partir da fraqueza humana, a partir das periferias do mundo.

Somente aos que confiam plenamente e que se encontram no caminho de Jesus, sintonizados com o Espírito Libertador, Deus confere o dom da visão. E este dom, acompanhado pelo discernimento, faz enxergar a presença de Deus em todas as coisas. Sem esta sintonia com o silêncio amoroso de Deus não há possibilidade de senti-lo em todas as coisas. A maneira como Deus age não é compatível com a maneira humana de agir, pois Deus está muito além das expectativas humanas.

O testemunho das Escrituras Sagradas nos revela uma verdade fundamental que está se manifestando nestes dias em todo o mundo: O mal por si só se destrói. Não adianta aqueles que se entregam à corrupção e à toda espécie de desvio de conduta pensarem que viverão na impunidade durante toda a vida. Os que morrem sem responderem por seus crimes perante os tribunais da justiça humana não escaparão do juízo divino. O Deus e Pai de Jesus faz justiça aos oprimidos, neste mundo e no que há de vir. Quando há desrespeito à mãe natureza, os homens são engolidos por ela. Esta é uma forma clara de justiça. A crise hídrica, a seca e as catástrofes naturais são formas de a natureza fazer justiça.

Quando bem cuidada, a mãe natureza permanece generosa; quando agredida e violentada, responde à altura da violência recebida. E não adianta orar, pedindo a Deus que intervenha sobre as forças da natureza. Esta oração não é ouvida porque não se trata de autêntica oração, mas de fuga da realidade. Quando há desrespeito da natureza, Deus não escuta a prece dos que a ofendem. Enquanto as pessoas não aprenderem a conviver com a mãe natureza, serão punidos severamente. Infelizmente, ainda assistiremos a muitas catástrofes naturais nas próximas décadas, e as atuais parecerão insignificantes diante das que virão.

No campo da política, ignora-se o bem comum e vigora os interesses pessoais e corporativistas. Esses interesses, para serem satisfeitos, precisam da corrupção; ocorre por meio desta. Na coisa pública (res pública), quando não vigora o bem comum, a corrupção torna-se inevitável. É o que está acontecendo no Brasil e no mundo inteiro. A corrupção não é um mal do Brasil, mas da política mundial. Aliás, onde há ser humano atuando, a corrupção está presente. Até na religião encontramos este mal terrível. O ranking dos países nos quais a corrupção se destaca é uma prova de que a corrupção assola toda a humanidade.

Historicamente, sabemos que desde o momento em que os europeus invadiram o Brasil, este país é marcado pela corrupção. Isto é novidade somente para aqueles que não conhecem a história do país. Encontramos a corrupção durante o tempo do império, passando pela república velha, república nova, ditadura militar, redemocratização, a queda de Collor, o período FHC, governo Lula até chegar hoje. O PT era a esperança das classes trabalhadoras. Estas pensavam que Lula e Dilma poderiam fazer as reformas necessárias para o autêntico progresso do Brasil: Reformas agrária, tributária, política, previdenciária etc., mas estas reformas não foram efetivadas. São muitos os fatores que contribuíram para que não se tornassem realidade, além da falta de maior empenho dos governos Lula e Dilma.

Além do envolvimento na corrupção, por parte de alguns membros do PT, as alianças com políticos e partidos que não tem efetivo compromisso com o verdadeiro desenvolvimento do Brasil, constituem os motivos pelos quais o governo Dilma está agonizando atualmente. Até o momento, os que usam do bom senso sabem da idoneidade da Presidenta Dilma (contra ela não há nenhum processo judicial em curso, por desvio de dinheiro público e/ou crime contra a coisa pública; em nossa análise, não consideramos válidas as acusações sem provas), e isto é um fator positivo; fator que não resolve, por si só, o problema das crises política e econômica que assola o país.

Infelizmente, o PMDB, maior partido da base aliada do governo Dilma, é famoso pela sede de poder e dinheiro. Trata-se de um partido que suga o Governo, fazendo chantagem de toda espécie para manter os cargos adquiridos e para adquirir outros. Até o vice-presidente da República, que é do PMDB, resolveu, recentemente, através de uma carta, declarar a sua oposição à Presidenta da República. Quem conhece o PMDB e o vice-presidente Michel Temer não ficou surpreso com as declarações contidas na carta. Esta somente explicita a forma como o PMDB faz política no Brasil, desde a época da ditadura militar.

Enquanto isso, aproveitando-se de ambas as crises, a oposição ao governo, encabeçada pelo PSDB, na pessoa do frustrado senador mineiro Aécio Neves, procura agravar cada vez mais a situação, utilizando-se dos jogos vergonhosos da antipolítica, prestando um claro desserviço ao país. É evidente a falta de interesse em, verdadeiramente, ajudar o país a sair das crises política e econômica.

Enquanto o povo sofre, principalmente os pobres, a oposição está preocupada em derrubar o governo e, dessa forma, retomar seu terrível projeto de governo, pautado nos interesses dos mais poderosos em detrimento dos mais pobres do povo brasileiro. Segundo nosso discernimento, esta é a realidade que não pode ser mascarada nem escondida. A mídia neoliberal, que sempre apoiou as forças que exploram o povo, se mantém fiel: Permanece distorcendo os fatos e reforçando o que há de pior na política brasileira, ajudando, dessa forma, a destruir a frágil democracia que temos.

A situação retrata que vivemos num momento de alto risco. As instituições funcionam precariamente. O Poder Legislativo federal é de causar vergonha ao cidadão que leva a sério a política. Diariamente, assistimos a discursos, posturas e projetos de lei contrários ao bem comum. Vigoram o autoritarismo e o conservadorismo, o oportunismo e o cinismo, a falta de moral e de ética, o desrespeito e a falácia. Nossa esperança é a de que o povo esteja atento e aprenda a votar nas próximas eleições, pois praticamente todos os corruptos que hoje envergonham a política brasileira, certos de que não serão punidos, se candidatarão novamente. Aprender a votar conscientemente, é um bom começo na construção da verdadeira democracia.

Por fim, merece a nossa atenção o cenário religioso atual, principalmente no que se refere à Igreja Católica. O momento é de alegria e entusiasmo, graças ao testemunho eloquente do papa Francisco. Depois do Concílio Vaticano II, a eleição de Francisco foi um dos momentos mais significativos ocorrido na Igreja Católica. Após um longo inverno, marcado pela letargia, novos ares tomou a Igreja. Em meio à escuridão dos escândalos e do autoritarismo, reacendeu-se a esperança. Francisco é filho do continente latinoamericano, marcado pelo sofrimento e pela esperança. Sua sensibilidade e sua voz a favor das vítimas do sistema capitalista neoliberal causa admiração nas mulheres e homens de boa vontade e, simultaneamente, é motivo de escândalo para os opressores das nações. Estes últimos o respeitam, diplomaticamente, mas odeiam seus gestos e palavras.

No interior da própria Igreja, também há opositores ao estilo de ser do papa. Eles argumentam que Francisco não entende de Teologia, que fala demais, que não tem postura de pontífice, que é demasiadamente liberal, que está causando desordem na Igreja, que está absolvendo teólogos suspeitos, que se mete demais nos assuntos do mundo e pouco nos da Igreja, entre outras acusações que, segundo nossa visão, são infundadas. Os maiores opositores do papa se encontra na Cúria Romana, no próprio Vaticano: opositores declarados, que agem direta e indiretamente, contrariando as medidas tomadas reformistas pelo papa. Estes opositores consideram-se consagrados ao serviço de Deus!...

Nas bases da Igreja, o clero e o povo estão entusiasmados. Bispos e padres, exceto os mais conservadores, leem e divulgam a mensagem do papa. Espiritualmente, estão em sintonia com ele. Diariamente, rezam pelo papa. Os leigos, principalmente os engajados nas pastorais sociais, sentem-se motivados na pastoral. As declarações de amor à Igreja e ao papa invadiram as redes sociais. Diferentemente de outras épocas, há uma sintonia entre os leigos e o papa. Os gestos e palavras de Francisco não escandalizam os mais simples dos leigos, mas lhes transmite alegria e entusiasmo. Entre os católicos não praticantes, crentes de outras denominações religiosas e ateus, também encontramos certa empatia em relação ao papa. Este tem sido muito elogiado pela sua simplicidade e despojamento.

O fator preocupante é a relação conflituosa que há entre o papa e a Cúria Romana. Trata-se de um conflito que se tornou mundialmente conhecido. Nos pontificados dos papas São João XXIII e Paulo VI, este conflito não era do conhecimento do público. Hoje, graças à mídia especulativa e à ousadia dos opositores que compõem a Cúria, boa parte do conflito se tornou conhecida. O próprio papa fez questão de explicitar o problema, denunciando o que ele mesmo denominou de “doenças” curiais. Por incrível que pareça, essa oposição curial tem o poder de impor limites às reformas pretendidas pelo papa.

Segundo o senso comum, as pessoas pensam que o papa é o Chefe Supremo da Igreja, com poderes suficientes para determinar qualquer mudança. De fato, o direito canônico lhe confere estes poderes, mas na prática, a situação é bem diferente. Em muitos casos, a Cúria é superior ao papa, ao colégio cardinalício e ao colégio episcopal em todo o mundo. Após o Vaticano II, foi durante o pontificado do polonês João Paulo II, que a Cúria mais ganhou poder na Igreja. Quando este não tinha mais saúde para governá-la, então passou a ser governada pela Cúria. Apesar disso, Francisco permanece firme no anúncio do evangelho e na denúncia das injustiças, inclusive das que se cometem no interior da Igreja.

Temas como ordenação de mulheres, fim do celibato obrigatório, revisão da forma como são nomeados os bispos, revisão dos ministérios, de alguns temas doutrinas e do direito canônico, comunhão eucarística para os casais de segunda união, revisão da formação dos presbíteros, entre outros temas importantes para a vida eclesial não são do interesse da Cúria Romana. Por isso, dada essa conjuntura desfavorável, talvez o papa Francisco não ouse nenhuma mudança no que se refere a estes temas. O tema da comunhão aos casais de segunda união poderá ser resolvido, se o papa for realmente ousado e enfrentar audaciosamente seus opositores. Isto pode ocorrer durante este ano jubilar da misericórdia.

Trata-se de um tema de ordem pastoral, que não obriga ou exige nenhuma modificação na doutrina da Eucaristia, e que pode ser resolvido diretamente pelo próprio papa. Todos os argumentos teológicos contrários à comunhão eucarística aos casais de segunda união, levantados pelos conservadores, não possuem nenhuma fundamentação evangélica. Na verdade, não há nenhuma razão teológica para que a Igreja continue negando a Eucaristia aos casais de segunda união. No evangelho, Jesus é claro ao afirmar que toda pessoa que tiver sede deve ir a ele, e a ninguém deu autoridade para impedir esta busca e este tão sublime encontro com Jesus. A missão da Igreja é matar a sede e a fome que as pessoas tem de Deus, através do pão da Palavra e da Eucaristia.

Nossa esperança é a de que a Igreja tenha o rosto de Jesus, que se torne, de fato, a “advogada dos pobres” (expressão presente no Documento da Conferência de Aparecida). Para defender os pobres, a Igreja precisa optar por eles. Esta não é uma opção meramente política e/ou sociológica, mas profundamente evangélica, pois foi a opção de Jesus. Reforçar a esperança dos pobres em suas lutas por libertação: Eis a missão da Igreja. Toda oposição à marcha dos pobres por libertação é oposição ao próprio Deus que os escolheu e elegeu.   

Escolha e eleição que não estão meramente presentes nos tratados de teologia e nos documentos oficiais da Igreja, mas estão, sobretudo, no conjunto das Escrituras Sagradas, do Gênesis ao Apocalipse. Todo aquele que nega esta divina predileção, nega a ação divina na história, pois o Deus e Pai de Jesus nunca esteve do lado dos opressores, mas tão somente dos oprimidos, concedendo-lhes a sua bênção e a sua força. A força divina se manifesta na fraqueza dos pobres do povo de Deus: Eis o resumo da fé cristã, genuinamente alicerçada no testemunho das Sagradas Escrituras. A esperança dos pobres tem nesta fé o seu sentido e a sua força.

Por mais tenebrosos que sejam os nossos dias, a fé em Jesus é a lâmpada que ilumina todo aquele que ousa amá-lo e segui-lo. O desespero não faz parte da vida daquele que crê, nem jamais consegue destruí-lo. Assim como os mártires dos primeiros séculos da Igreja, os cristãos de hoje devem permanecer firmes e confiantes, de cabeça erguida, com os pés no chão, de braços apertos e disponíveis, cheios de alegria e de esperança. E assim ocorre porque o Espírito de Deus, força amorosa que trabalha diuturnamente no mundo, permanece fiel, fazendo germinar e crescer as sementes do Reino de Deus, até chegar o grande dia da festa da colheita, quando se estabelecerá, definitivamente, a justiça e a paz sobre a face da terra. Esse é o nosso destino. Deus não abandonou o mundo, mas permanece conosco, hoje e sempre.

Tiago de França da Silva

Desde Guaraciama, Norte de Minas Gerais, 08 de janeiro de 2016.