quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Quaresma: Um apelo à conversão

“Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração, e não as vestes; e voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, inclinado a perdoar o castigo” (Joel 2, 12).

A modo de Introdução

            Chegamos ao santo e fecundo tempo da Quaresma: Quarenta dias de caminhada rumo à celebração da Páscoa de Jesus de Nazaré. Tempo de escuta da palavra de Deus, tempo para acolher o chamado à conversão, tempo de oração, jejum e solidariedade. É verdade que durante todo o ano somos chamados a tudo isto, mas, na Quaresma, este chamado nos aparece com mais força. Nossa reflexão para iniciarmos este tempo favorável quer chamar a atenção para este apelo à conversão.

O que significa conversão? Por que precisamos nos converter? Por que temos dificuldade para mudarmos de vida? Estamos dispostos a trilhar o itinerário quaresmal, ou vamos mais uma vez adiar a nossa conversão? À luz da profecia de Joel, no versículo acima mencionado, assim como da palavra de Jesus em Mateus 6, 1 – 6.16 – 18, vamos escutar o que o Espírito está nos revelando nessa hora difícil de nossa história.

Voltar-se para Deus, rasgando o coração

            Assim como todos os profetas, Joel se utiliza de uma linguagem apropriada para convidar o povo à mudança de vida: “...voltai para mim com todo o vosso coração...” Precisamos entregar o nosso coração a Deus, nosso bom Pai. Somente Ele é capaz de libertar o nosso coração de nossos apegos, de tudo aquilo que tende a nos escravizar. Há muitas pessoas que estão com o coração aprisionado, amarrado aos bens materiais e às ilusões da vida. Como pode Deus habitar neste coração? A presença de Deus quebra as prisões, libertando das ilusões; mas este Deus pede para entrar. Ele não invade o coração de ninguém. Ele pede para ser acolhido. Sua vontade é amar a pessoa, habitando em seu coração.

            Eis uma prece que todo cristão deveria fazer: Ó Deus, meu amado Senhor, rasgo o meu coração diante de Ti. Sinto-me atribulado, cercado pelos lobos ferozes desta vida. Já não dou conta de viver sem Ti. Tu és a razão do meu viver. Por isso, peço-Te, em nome de Jesus, vem fazer morada em meu coração. Quero sentir a Tua presença. Tu és a minha segurança, a força que me faz viver. Vem, com Jesus e Teu Espírito, fazer morada em meu pobre coração. E, estando definitivamente nele, liberta-me do poder das trevas com a Tua luz. Que habitado por Ti, eu possa ser, verdadeiramente, a Tua testemunha neste mundo, cheio de mulheres e homens sedentos de Ti. Guarda-me, ó Trindade, com a Tua presença em mim. Amém!”

Ele é benigno e compassivo, inclinado sempre a perdoar

            Quem poderá conhecer e sentir a misericórdia de Deus? Quem são os que realmente conhecem e sentem o seu perdão? Com certeza, são os que abrem o coração para que Ele possa fazer a sua morada. Deus não é uma ideia, não é mera abstração. É o Amor que quer permanecer em nós. Este é o seu desejo, a sua vontade: Permanecer em seus filhos e filhas, habitando seus corações. Este é um mistério grandioso. Acolhendo o Pai, o Filho e o Espírito, a pessoa conhecerá o mistério divino, que se revela em seu amor. Não se conhece a Deus nas escolas de teologia, mas acolhendo-O no coração. Trata-se de uma experiência profundamente amorosa e transformadora. Deus transforma quem O acolhe. Ele transforma a partir de dentro. Sem acolhê-lo, não é impossível conhecer o poder transformador da sua misericórdia e do seu amor.

            Deus não é o Senhor dos Exércitos, o grande vingador do seu povo, aquele que vigia para saber quem está pecando, em vista do castigo. Esta é uma imagem falsa de Deus. Também não podemos crer que Ele acolhe a uns e despreza a outros, recordando-se de alguns e abandonando a outros. Não. Isto é mentira. Na verdade, toda a humanidade forma a grande família de Deus. Ele acolhe a todos, amando-os, sem limites. Ele não faz acepção de pessoas, mas volta-se, especialmente, para os que sofrem e para os que invocam, sinceramente, o seu nome. Ele não olha as nossas faltas. Certamente, as reprova, mas não as utiliza como motivo para nos castigar. O Deus e Pai de Jesus não é o Deus do castigo, mas é um Pai amoroso, que não sabe fazer outra coisa a não ser amar, infinitamente. Seu amor alcança a todos, na liberdade e para a liberdade. Por isso, não precisamos ter medo de Deus. Nele não há maldade porque a sua essência é o amor. Deus é amor e só responde com amor. Para conhecer tudo isso, só há um caminho: O caminho da acolhida. Sem acolhê-lo no coração é impossível experimentar o seu amor.

Deixar-se amar por Deus para amar, generosamente, os outros

            Quem professa a fé em Jesus não pode viver como se Deus não existisse. Isto é uma contradição inaceitável. Nossas liturgias precisam celebrar nosso testemunho diante dos homens e mulheres. Sem este testemunho de vida e de liberdade, de amor e de misericórdia, nossas liturgias não chegam aos ouvidos de Deus. Os profetas são unânimes em dizer que Deus não escuta as preces e o louvor de um povo que se recusa a fazer a Sua vontade. É verdade que somos um povo marcado pela fraqueza e pelo pecado, mas é em meio à fraqueza e ao pecado que somos chamados a fazer a vontade de Deus. E aí que a Sua misericórdia e força se manifestam. Nossa fraqueza não nos afasta de Deus, pois Ele sabe de que somos feitos. Com seu Espírito, Ele vem em socorro de nossas fraquezas. Até no pecado, Deus nos alcança! É no pecado que reconhecemos a grandeza da misericórdia divina, que nos levanta do chão e nos devolve a dignidade de filhos e filhas de Deus.

            Quando o amor de Deus nos preenche, pois Ele está em nós, então nos convertemos em pessoas verdadeiramente humanas. O amor de Deus nos devolve o que há de mais profundamente humano e divino em nós: A capacidade de amar. Quando Deus permanece em nós, com seu amor e sua ternura, imediatamente sentimos a necessidade de nos abrirmos aos outros, amando-os sem fazer distinção e sem impor limites. O amor de Deus em nós nos concede a graça de nos libertarmos da tentação do egoísmo, de nossa infeliz tendência de transformarmos as pessoas em objetos de satisfação de nossos desejos mesquinhos. Livres do egoísmo, somos capazes do amor. A partir daí vai surgindo a nova humanidade, chamada por Jesus, de Reino de Deus. O amor ao próximo é a prova de que em nós há o amor a Deus, pois quando recusamos o amor ao próximo e afirmamos que amamos a Deus, não há verdade em nós. Jesus foi claro na mensagem que nos deixou como Boa Notícia: O amor a Deus passa, necessariamente, pelo amor ao próximo.

Por uma Igreja humilde e misericordiosa

            A Igreja prega ao mundo o amor de Deus: Esta, de fato, é a sua missão. Neste tempo de Quaresma, como Igreja que somos, uma indagação nos poderá ajudar em nossa meditação e caminho de conversão: Em nossas comunidades, vivemos, de fato, a humildade e a misericórdia de Deus? Infelizmente, não podemos esconder a verdade de que há muita rivalidade entre os cristãos. Ainda há muita falta de humildade e misericórdia nas comunidades cristãs. No interior destas, muitas pessoas ainda fazem uso do julgamento e condenação do próximo. Muitas outras continuam sendo humilhadas e expostas, por causa de seus pecados. Tanto dentro quanto fora de nossas Igrejas, assistimos, vergonhosamente, à intolerância religiosa, ao preconceito e ao racismo. Há muita arrogância e prepotência na maneira de tratar os outros. Muitos “crentes” continuam com a velha e vergonhosa mania de se sentir melhor e mais santo que os outros, ousando apontar-lhes o dedo, julgando-os e condenando-os. Todas estas coisas envergonham o Cristianismo, constituindo um contratestemunho que precisa ser vencido com a prática da humildade e da misericórdia. Quem não é humilde não consegue ser misericordioso, pois humildade e misericórdia caminham juntas: A primeira é como que o alicerce da segunda.

A modo de conclusão

            O mundo está gravemente enfermo pela ausência do amor e da misericórdia. Os intolerantes e violentos não podem dizer que amam a Deus. Os cristãos precisam, urgentemente, aceitar o amor a Deus em seus corações para, assim, se transformarem em autênticos seres humanos: Mulheres e homens transformados pelo amor. Sem esta conversão ao amor é impossível termos justiça e paz. Sem amor, todos os esforços são incapazes de frutificar. Somente o amor nos concede a visão do outro, fazendo-nos capazes de amá-lo, vendo-o como irmão, como um ser humano, que deve ser tratado com respeito e dignidade. Não reconhecer a dignidade do outro é um pecado gravíssimo aos olhos de Deus.

Também nas leis humanas, esta negação da dignidade é um crime contra a humanidade. Somos da mesma raça e da mesma espécie e, segundo a fé cristã, formamos uma só família. Por isso, não podemos viver nos estranhando e nos tratando, mutuamente, como inimigos. Peca gravemente todo cristão que ver no outro um inimigo a ser vencido e eliminado. O outro é irmão porque Deus é Pai de todos, indistintamente: Esta é uma verdade fundamental da fé cristã, confirmada pelo testemunho das Sagradas Escrituras. Quem chama a Deus de Pai, deve considerar o outro como irmão, seja este quem for.

            É tempo de Quaresma. Este é o apelo que o Espírito nos dirige: Sejamos irmãos no amor. Basta de violência e covardia! Basta de mentira e ilusão! Abramos o nosso coração, a fim de que Deus possa nos revelar o seu amor. Permanecendo em nós, Ele nos revelará também quem realmente somos, o nosso verdadeiro eu. Desse modo, conhecendo-nos verdadeiramente, aceitar-nos-emos como somos, sem medo, sem fuga, sem vergonha de ser feliz. Isto é extraordinariamente maravilhoso! É pura graça, puro dom, verdadeira alegria. Deus quer ser Tudo em nós. Não percamos esta valiosa oportunidade; do contrário, nossa vida cairá no vazio e na mediocridade. 

            A todos, meu abraço e minha prece. Que o Espírito do Senhor nos conduza neste itinerário quaresmal e durante toda a nossa vida. Que não nos falte o dom de sua Iluminação. Assim seja.


Tiago de França

2 comentários:

otilia disse...

Extraordinária reflexão, como esta mensagem vai me ajudar a viver nesse período da quaresma uma parada obrigatória pra rever meu cotidiano de vida cristã.

Tiago de França disse...

Que bom que se identificou com a mensagem, Otilia.
Grande abraço!