Pediram-me uma palavra sobre a nova ideologia que anda se alastrando nas
redes sociais e que tem causado grande confusão na mente de muitas pessoas. Na qualidade
de docente, após ter estudado o que chamam de “escola sem partido”, atendendo
ao pedido de amigos e alunos, resolvi fazer algumas anotações e resumi-las no
presente artigo. O objetivo é explicar que a chamada escola sem partido é, na
verdade, uma ideologia conservadora, que está a serviço do retrocesso da
educação no Brasil.
Inicialmente, algumas perguntas são
imprescindíveis para a compreensão daquilo que iremos discorrer: 1) Por que
somente agora estão falando em escola sem partido? 2) Quem são os idealizadores
desta ideologia? 3) O que, na verdade, estão querendo alcançar? 4) Qual o papel
da escola no progresso humano e científico de um país? 5) Qual a relação entre
educação e doutrinação? Iremos dividir a nossa reflexão em três breves partes,
tentando responder às questões levantadas.
1.
Por que somente agora estão falando em escola
sem partido?
Vivemos em um País marcado pelo
conservadorismo. Sempre foi assim. A educação que recebemos, desde o
estabelecimento das primeiras escolas, é conservadora. Educação conservadora é
aquela que estabelece, ideologicamente, um padrão de valores a serem
observados, rigorosamente. É considerado padrão o sistema elaborado, previsto
como adequado e necessário, que deve ser observado porque constitui um modelo.
Mesmo sendo um povo marcado pela
miscigenação, temos uma educação padronizada, alicerçada nos valores
tradicionais da Família, da propriedade e da moral construída por uma elite que
sempre governou o País. Nosso padrão educacional não foi construído a partir do
diálogo com o povo, mas uma elite intelectual pensou um modelo educacional e o
estabeleceu como necessário para a educação de nossa crianças, adolescentes e
jovens. Sem considerar esta premissa, não se entende os conflitos que andam
ocorrendo no âmbito da educação.
Desde sempre, a discussão em torno da
situação política e social do País nunca foi a marca da educação brasileira. Os
professores sempre foram orientados a aplicar, rigorosamente, os conteúdos
escolhidos para compor a grade curricular. Os alunos sempre foram orientados a
decorar tais conteúdos em função de avaliações escritas, sendo estas
constituídas por questões que aferiam o conhecimento. Neste sentido, o aluno
era considerado inteligente quando tinha boa memória para responder às questões
da mesma forma que aprendeu em sala de aula e nos livros e enciclopédias.
O aluno repetia nas avaliações aquilo que
escutava de seu professor. Não tinha o direito de expressar o que sabia com
palavras diferentes das do professor, mas era um mero reprodutor daquilo que
estava no livro e nas falas do professor. Desse modo, era considerado
intelectual aquele que tinha o conteúdo gravado na memória e sabia dizê-lo
quando solicitado. Articular ideias e criar pensamento eram consideradas
atitudes subversivas. O aluno não precisava pensar, mas apenas repetir o que
escutava e lia.
Em épocas passadas, este modelo era aceitável
porque não se pensava em outra alternativa. E quando se pensava, não vingava
porque a maioria estava acomodada no modelo estabelecido. Este modelo era
cômodo tanto para o governo quanto para o professor porque impossibilitava o
surgimento do debate de ideias. Debater ideias é algo que dar trabalho porque
obriga os sujeitos envolvidos na discussão à abertura, ao diálogo, à compreensão,
à escuta do outro e à revisão de pontos de vista. Estas coisas não cabem num
modelo tradicional de educação porque este obedece a uma hierarquia de poder.
Esta hierarquia impõe uma regra clara: O
professor é o mestre (magister),
aquele que conhece e sabe; o aluno (alumnus),
aquele que não sabe e que precisa saber, ser “nutrido” de conhecimento. Era
assim que se dava a relação mestre e discípulo: O mestre é maior porque detém o
conhecimento; o discípulo é inferior e precisa da luz do mestre e, por isso
mesmo, deve a ele se submeter numa relação de obediência. Não existia a ideia
do aprendizado recíproco. Até hoje há professores pouco reciclados que
continuam com esta postura. “Nesta sala de aula quem manda e quem sabe das
coisas aqui sou eu!”, afirmam. Com isso, não estamos afirmando que somos contra
à autoridade, pois esta é imprescindível no processo de ensino-aprendizagem. Portanto,
opomo-nos ao autoritarismo praticado desde sempre.
O que conceberam a ideologia da escola sem
partido possuem a mentalidade expressa no que afirmamos nos parágrafos
anteriores. Imediatamente após a ditadura militar, com a redemocratização do
Brasil, a educação brasileira repensou a sua caminhada. Em 1996, a Lei 9.394,
criou as diretrizes e bases da educação nacional, e com ela nasceu também uma
nova concepção de educação, baseada em princípios como os da liberdade,
igualdade, pluralismo de ideias, apreço à tolerância, gestão democrática,
vinculação entre educação e práticas sociais etc. (cf. art. 3º da mencionada
lei).
Considerando estes e outros princípios basilares
da educação pós-redemocratização do Brasil, o que se propõe na escola sem
partido é antidemocrático, antiético e, por estes e outros motivos, representa
um retrocesso na educação brasileira. Todas as ideologias de cunho conservador
são inimigas da pluralidade, da dinamicidade e da necessária evolução dos
processos educacionais. Educação e conservadorismo são realidades incompatíveis
porque na essência da educação está a liberdade de produção e expressão do
pensamento em plena sintonia com a realidade complexa e desafiadora da vida
social.
O atual cenário político é, predominantemente,
marcado por um número assustador de legisladores que não estudam. São políticos
que não leem nem possuem formação suficiente para a análise dos fenômenos sociais.
Há o que denominamos de retardamento
intelectual, que consiste no fato de o legislador ser incapaz de
compreender os processos que constituem a teia complexa das relações sociais. Impossibilitado
de analisar a realidade para a criação de leis que sejam úteis ao autêntico
progresso do País, refugiam-se nas antigas e ultrapassadas concepções de ser
humano e de educação do ser humano.
Ao invés de olharem para o futuro, tendo em
vista a necessidade de recuperar os estragos feitos ao longo dos séculos,
voltam-se para o passado, objetivando repetir os mesmos estragos com maior
intensidade. Não há segredo nesta atitude: Procura-se, desesperadamente, barrar
a evolução do pensamento e das suas manifestações, para manter o povo na ignorância,
principalmente na ignorância política.
A concepção política de educação dos
conservadores é o que existe de mais atrasado que se pode conceber. Fazendo uma
analogia com o mito da caverna do filósofo grego Platão, o objetivo da escola
sem partido é manter o povo na caverna, distante da luz do verdadeiro conhecimento.
E o verdadeiro conhecimento é aquele que liberta a pessoa da ignorância.
O Senado Federam e a Câmara dos Deputados são
casas legislativas formadas por pessoas que não estão preocupadas com a
educação. Um exemplo claro disso, que está em sintonia com a ideologia da
escola sem partido, é o Projeto de Lei 1.411/2015, do deputado Rogério Marinho
(PSDB – RN), que pretende criar o crime de assédio ideológico. Não precisamos
fazer, aqui, uma análise jurídica deste projeto tão insignificante, basta
conhecer o seu idealizador. Trata-se de um deputado conservador, do PSDB,
partido conhecido pela forma desumanizadora como trata a educação, e oriundo de
um estado com praticamente nenhuma expressividade política, em matéria de
conteúdo crítico a ser considerado.
Este projeto visa proibir que os professores discutam
o tema política em sala de aula. Situação idêntica já existe no Estado de
Alagoas, com o projeto que se transformou em lei estadual, que proíbe o
professor de discutir política em sala de aula. Estes políticos, na verdade,
não querem ser desmascarados em seu proceder. Projetos de lei dessa ordem são sintomáticos.
Ninguém precisa ser cientista político ou versado em filosofia política para
enxergar o oportunismo de tais projetos. Estes projetos não escondem a sua
ideologia de dominação e opressão. Somente os ingênuos e os desprovidos de
senso crítico não conseguem enxergar a estupidez destas iniciativas
legislativas.
2.
Quem
são os idealizadores desta ideologia? Qual a relação entre educação e
doutrinação?
No tópico anterior já sinalizamos algumas características
daqueles que criaram a ideologia da escola sem partido. Esta ideologia não deveria
encontrar interessados, considerando que vivemos em pleno século XXI. Hoje, as
mentes mais abertas não aceitam mais nenhuma forma de retrocesso. E é assim
porque todo retrocesso representa um desserviço à evolução humana, que não pode
ser barrada porque um grupo de pessoas ignorantes sentem saudade de um passado
que, na maioria dos casos, não viveram.
Muitos dos jovens que foram às ruas se
manifestar e que pediram intervenção militar não foram espancados pelos
militares da ditadura. Conhecem pouco ou absolutamente nada do verdadeiro
sentido de uma ditadura militar. Particularmente, não discuto com aluno que não
estuda. Pessoas ignorantes não merecem ser escutadas porque são fechadas em
ideias equivocadas, e o fechamento impede o diálogo. Como diálogo não é monólogo,
os interlocutores de um diálogo precisam ter as noções mínimas daquilo que está
sendo discutido; do contrário, não temos diálogo. Portanto, é por causa dessa ignorância
massiva que a ideologia da escola sem partido encontrou adeptos.
Os idealizadores da escola sem partido encontram
espaço na mente daqueles que não pensam nem estudam. Pensar e estudar são ações
que evitam muita idiotice. Uma pessoa bem informada, detentora de senso
crítico, ao escutar a expressão escola sem partido, logo desconfia do equívoco.
Qual é o partido de uma escola?...
A leitura do discurso ideológico dos
idealizadores revela que são desprovidos das noções básicas do que vem a ser
uma escola e um partido. Seu slogan
é: “Educação sem doutrinação!” Repetem as palavras sem saber o que estão
falando. Desconhecem o significado da palavra doutrinação e a confundem com a
realidade. Vamos à realidade dos contextos escolares nos quais encontramos um
trabalho desenvolvido baseado no despertar da consciência crítica. Quais as
características desta realidade?
As escolas e cursos universitários realmente
preocupados com a capacitação profissional e a formação da consciência crítica
das pessoas, lidam com a educação como a desafiadora arte de construir uma
sociedade cada vez mais digna dos seres humanos. A discussão, a produção de
ideias, a publicação destas ideias, a fomentação da tolerância, a promoção da
diversidade cultural são as marcas de uma educação que reconhece que vivemos em
um estado democrático de direito. Os idealizadores da escola sem partido
denominam estas coisas de comunismo e doutrinação.
Denunciar os abusos da má política, despertar
nos estudantes a necessidade de pensar e analisar criticamente a realidade,
estimulá-los a abandonar toda espécie de neutralidade (que não existe na realidade!),
incentivá-los a uma participação ativa na sociedade etc.: estas e outras
atitudes congêneres constituem doutrinação, para os idealizadores da escola sem
partido. É evidente que não sabem o que significa doutrinação.
Doutrinação é a marca do conservadorismo
educacional, fundamentado na imposição de uma ideologia única e absoluta. Politicamente,
os idealizadores da escola sem partido são pessoas perfeitamente alinhadas ao
discurso da extrema-direita, impregnadas por uma concepção retrógrada de
educação, concepção que não leva em conta a realidade do País.
Assim, a doutrinação mencionada no slogan dos partidários da escola sem
partido é praticada por eles mesmos, que de forma pouco persuasiva e
desesperada tentam convencer as pessoas da eficácia de uma realidade falaciosa
denominada por eles de escola sem partido. Na verdade, quando falam em educação
sem doutrinação estão querendo dizer educação sem pensamento crítico,
rigorosamente pautado no conservadorismo que é, por si mesmo, autoritário e
maléfico à evolução humana.
3.
O que, na verdade, estão querendo alcançar? Qual
o papel da escola no progresso humano e científico de um país?
Há três palavras que respondem à indagação:
Passado, prisão e estagnação. O passado só serve para nossa reflexão, a fim de
que evitemos repetir o que de ruim fizemos nele. Voltar ao estilo de vida
passado é algo impraticável. Isto não é possível. O máximo que se pode fazer é
imitar o passado, mas repeti-lo plenamente no presente e projetá-lo no futuro é
algo que somente pode ser concebido por pessoas desprovidas de bom senso. Vivemos
noutra época. Não nos é mais possível educar uma criança hoje do jeito que
educávamos nossas crianças no passado. Os tempos são outros. A mudança de época
e de paradigmas não pedem licença a ninguém. Ela ocorre. E todo aquele que não
a aceita tem que arcar com as consequências de sua não aceitação.
Não adianta demonizar o celular e a Internet,
por exemplo, para justificar que os jovens não devem utilizá-los. Tal proibição
se mostra absurda nos dias de hoje. O mesmo podemos dizer da educação: Não
adianta impedir a discussão de temas como a política nas aulas de filosofia,
sociologia e história. Estas áreas do saber trabalham com a ideia de política. Elas
não subsistem sem esta ideia. Aliás, nenhum ser humano escapa da política. Diariamente,
fazemos política. Permitir que os alunos discutam livremente algo que é da
constituição social do homem é de extrema importância para a consolidação democrática
do País.
As sociedades pré-modernas tinham verdadeiro
pavor da ideia de liberdade. Até hoje, os resquícios deste pavor permanecem no
inconsciente coletivo. Geralmente, tudo o que é novo causa insegurança e
desconfiança. Desde criança, o ser humano é educado para resistir ao novo e
apegar-se ao que é previsto como bom, justo e seguro. Já na infância, nossos
pais nos lapidam. Alguns são bem violentos, outros mais suaves. É nesta fase
que nos incutem os preconceitos. Ensinam-nos a praticar a negação do verbo
misturar-se e, assim, vamos aprendendo, na prática, o que denominamos
segregação.
Fora da liberdade, toda educação é nociva. A educação
autoritária não é educação, mas deturpação e deformação. Quando tiro do
professor a necessidade de despertar no aluno a preciosa postura de buscar o
sentido de todas as coisas, na verdade, estou prestando um desserviço à
educação. O mundo escolar deve ser resguardado de toda e qualquer espécie de
proibição à discussão de qualquer tema, pois o debate é parte constitutiva do
ato de educar e ser educado.
Na infância e na adolescência, as pessoas não
possuem um repertório suficiente para opinar de forma crítica e fundamentada,
pois nestas faixas etárias tendem a repetir o que escutam no senso comum (na
família, na rua, na mídia etc.). É na escola que aprendem a analisar a realidade,
e o professor é aquele que oferece as ferramentas para que isto ocorra. A ideologia
da escola sem partido é uma espécie da prisão na qual os educandos são
bitolados, e este processo deformador os leva a enxergar a vida como se esta
fosse uniforme.
Quando perde a liberdade para pensar
diferente e expressar seu pensamento, o ser humano permanece estagnado, não
evolui, passa a ter uma visão míope da realidade. Os idealizadores da escola sem
partido é um exemplo disso: são míopes, não enxergam praticamente nada do que
está além do próprio nariz. Não possuem uma visão crítica da realidade, mas a
concebem segundo ideias antiquadas, que já não correspondem às exigências da
vida pós-moderna.
A educação é incompatível com a estagnação. Ninguém
vai à escola para permanecer o mesmo, com as mesmas ideias e com o mesmo modo
de enxergar a vida. Na escola aprende-se novos horizontes, aprende-se,
sobretudo, a enxergar a vida como ela é, a sonhar com outro mundo possível. Para
isso, é necessário que a escola esteja conectada com a realidade e seus
processos complexos, a fim de preparar o aluno para lidar com a complexidade da
existência humana. Fora disso, não há educação, mas deformação que gera
estagnação.
Não há progresso autêntico possível fora do
pensamento atrelado à liberdade. Todos os grandes passos que a humanidade deu
até hoje ocorreram graças à liberdade de pensar e de expressar o pensamento. O que
seria da humanidade sem a revolução científica do século XVII? O que seria de
nós sem os grandes inventores da humanidade? Estaríamos sem a indústria, sem a
energia elétrica, sem o avião etc. Até hoje estaríamos pensando que a terra
seria o centro do universo, e muitas doenças que hoje são curáveis já teriam
ceifado a vida humana na Terra.
Não há conhecimento sem a necessária liberdade
para pensar, imaginar, inventar, renovar, duvidar, questionar, aperfeiçoar,
reelaborar, descobrir e redescobrir, transformar. Para não cairmos no absurdo,
o justo e o bom podem ser todas as realidades que não são prejudiciais à vida
humana. Tudo é permitido, desde que seja verdadeiramente bom. Desde que
edifique e faça o homem progredir positivamente, nada deve ser proibido. Esta deveria
ser a concepção ética a nortear a existência do homem em sociedade.
Hoje, não cabe mais o encabrestamento da consciência das pessoas. A educação não pode se
transformar numa ferramenta opressora nas mãos de um poder político que não tem
compromisso com a ética nem com a liberdade humana. Os brasileiros não podem
mais aceitar qualquer retrocesso, pois já perderam muito tempo com a mordaça
imposta pelas forças do atraso e da alienação. Somos um País rico e plural, e
precisamos de um sistema educacional que reconheça estes elementos de nossa
realidade e, além disso, ajude-nos a repensar nossa história, para que possamos
construir um País menos desigual, mais justo e fraterno para todos.
A escola sem partido não reconhece a
pluralidade das culturas do Brasil, que influenciam diretamente o mundo
escolar, e deseja reimplantar o que de pior existe em um sistema educacional
ultrapassado, inimigo do pensamento crítico e aliado às velhas forças
políticas, responsáveis pelas mazelas sociais nas quais continuamos
mergulhados, como que atacados por um câncer incurável. Estas são, brevemente,
as razões que nos levam à denúncia da falácia denominada educação sem
doutrinação e da ideologia conservadora estranhamente chamada de escola sem
partido.
Tiago de França