domingo, 28 de agosto de 2016

Algumas reflexões sobre o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff

Veja no link a seguir, algumas considerações que fiz a respeito da possibilidade de cassação do mandato presidencial de Dilma Rousseff.

Em memória de Dom Helder Câmara

Pensei, inicialmente, em escrever um longo texto sobre a vida e a obra de Dom Helder Câmara, que no dia 27 de agosto de 1999, partiu deste mundo para a Casa do Pai. É assim que faço anualmente. Para mim, Dom Helder sempre foi uma inspiração, exemplo de profeta. A sua memória permanece viva na Igreja dos pobres.

Este ano, quero apenas transcrever um de seus poemas sobre a missão. Este poema é uma verdadeira prece ao Deus que é ação amorosa no meio de seu povo. Missão é partir, sair de si, abrir-se aos outros, parar de dar voltas ao redor de nós mesmos... Há bastante tempo medito e procuro viver esta profecia.

Que o testemunho deste grande bispo e profeta da Igreja nos mantenha firmes na missão de permanecer no espírito de partida na direção do outro, para descobri-lo e amá-lo, na liberdade de filhos de Deus.
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Missão é partir


Missão é partir, caminhar, deixar tudo,
sair de si, quebrar a crosta do egoísmo
que nos fecha no nosso Eu.

É parar de dar volta ao redor de nós mesmos
como se fôssemos o centro do mundo e da vida.
É não se deixar bloquear nos problemas
do pequeno mundo a que pertencemos:
a humanidade é maior.

Missão é sempre partir, mas não devorar quilômetros
É, sobretudo, abrir-se aos outros como irmãos,
descobri-los e encontrá-los.

E, se para encontrá-los e amá-los
é preciso atravessar os mares e voar lá nos céus,
então Missão é partir até os confins do mundo.

Dom Helder Câmara 

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Por que o povo brasileiro não está reagindo ao golpe em marcha?

         
          A resposta para esta questão é bem simples: a maioria do povo brasileiro não tem consciência do que está acontecendo no Brasil. Neste artigo, queremos analisar brevemente algumas das causas desta falta de consciência. Precisamos desmascarar algumas mentiras que insistem em permanecer como se verdades fossem. Numa sociedade marcada pela ignorância, uma mentira bem contada pode ser considerada verdade, e isto é muito perigoso. A respeito do que está acontecendo, para ajudar o leitor a fazer uma leitura crítica da realidade, vamos tentar desconstruir cinco grandes mentiras que a grande mídia tem veiculado com bastante insistência.

1 – A corrupção passou a existir no Brasil a partir dos governos do PT.

        Acredita nesta mentira quem não tem o mínimo de conhecimento da história do Brasil. Quando os europeus chegaram no Brasil, encontraram os indígenas. E o que fizeram? Tomaram suas terras e ceifaram suas vidas. O Brasil foi invadido por pessoas ditas “civilizadas”. Os índios eram considerados bichos do mato. Quando perceberam que eles não serviam para o trabalho nas capitanias hereditárias, o que fizeram? Foram buscar os negros na África. Durante séculos os escravizaram. Depois veio a República. A proclamação desta se constituiu num verdadeiro golpe. Décadas depois, veio a ditadura militar. Outro golpe. Duas décadas de opressão, de violação escancarada aos direitos humanos. Muita gente assassinada na clandestinidade. Tudo em nome da democracia e da segurança nacional.

Depois da redemocratização, veio a era FHC: neoliberalismo exacerbado, totalmente alinhado aos EUA. O País totalmente entregue à tirania de uma economia que não enxergava os pobres. O FMI dando as diretrizes e o governo privatizando praticamente tudo. Nada de investigações, muito menos condenações de criminosos de colarinho branco. O Judiciário assistia calado. Com muita luta, um nordestino chegou à Presidência da República, sendo chamado de burro, vítima das piadas preconceituosas dos mais ricos e ignorantes, detentores do quarto poder (a grande mídia). Quem afirma que desde 1500 até a chegada de Luís Inácio Lula da Silva à Presidência, não houve corrupção no Brasil, sofre do mal da cegueira, ou da desinformação. Cego porque não quer ver; desinformação porque não se interessa em conhecer a história do País.

2 – A operação Lava Jato acabará com a corrupção no Brasil.

        A corrupção no Brasil é sistêmica, e a Lava Jato não mudará o sistema. Por que a grande mídia elogia tanto a Lava Jato, especialmente o juiz Sérgio Moro? Por que políticos corruptos, notoriamente conhecidos por suas falcatruas, elogiam o juiz Sérgio Moro? Por que a elite branca o transformam em um ídolo, estampando-o nas capas dos jornais e na edição biográfica de livros? A atuação da Lava Jato não fere os interesses dos poderosos da direita. Os poderosos ligados ao PSDB, partido do derrotado Aécio Neves, não estão preocupados com a Lava Jato, pois sabem que ela não vai desmascará-los e condená-los. Geralmente, políticos corruptos não tem medo da justiça brasileira porque sabem como ela tendenciosamente funciona.

No Brasil, os corruptos da direita tem seus amigos no Judiciário: juízes na primeira, segunda e terceira instância. Isto não é nenhuma novidade. Esta vinculação entre empresários, políticos e juízes prova não somente a parcialidade dos julgadores, mas explica a corrupção no Judiciário. Neste sentido, a lei não serve para punir os amigos, mas os inimigos. A seletividade nas investigações é um exemplo claro deste tipo de corrupção.

A seletividade não faz justiça, mas perpetua a injustiça. Condena-se possíveis criminosos inimigos e deixa impune os possíveis criminosos amigos. Esta seletividade no Judiciário brasileiro é antiga. Os poderosos sempre foram amigos da justiça, cometendo injustiças. Sempre foi assim, e isso não vai mudar tão cedo. Optar pelos pobres em detrimento dos interesses dos poderosos nunca foi a marca do judiciário brasileiro. Nos conflitos entre os pobres, o judiciário é rígido, mas quando envolve um pobre e um homem poderoso, o pobre sofre, e tem que sofrer calado.

A Lava Jato tem servido para tentar convencer o povo de que a justiça é imparcial e funciona, e isto não é verdade. Para descobrir a mentira, basta olhar os nomes de condenados e a realidade sistêmica da corrupção. Quem até hoje foi julgado e condenado pelos desvios de merenda em São Paulo? E o escândalo das Furnas? E o caso Banestado? E o trensalão tucano em São Paulo? A justiça não se interessa em investigar a fundo estes e tantos outros escândalos de corrupção.

No momento, ela está ocupada com o ex-Presidente Lula. Enquanto os políticos inimigos da Dilma articulam a sua queda, a justiça articula a prisão do ex-Presidente. Cogita-se até a extinção do PT no cenário político porque entendem que é o partido que acabou com o Brasil. A eliminação do PT está sob a responsabilidade do atual presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, amigo pessoal do senador tucano Aécio Neves. Portanto, tudo não passa de uma jogada política rigorosamente articulada. Combater a corrupção é a propaganda enganosa que a grande mídia deve incutir na cabeça das pessoas e, infelizmente, milhões de brasileiros acreditam nesta mentira.

3 – Com a cassação do mandato (impeachment) da Presidenta Dilma tudo voltará ao “normal”.

        Os parlamentares que votaram e que votarão a favor do impeachment da Presidenta Dilma falam que Michel Temer está salvando o Brasil, e que vai precisar continuar no exercício da Presidência para concluir a sua obra redentora. Quem está acompanhando atentamente o cenário político desde a sua chegada à Presidência, já deve ter percebido que o País está caminhando para trás.

Desde a nomeação dos novos ministros até as recentes medidas, Michel Temer tem sinalizado a sua forma de governar. Alinhado ao PSDB, suas medidas tem sido assustadoramente antidemocráticas. Até agora tem demonstrado com clareza que governa para os poderosos (os grandes empresários, principalmente). Possui o mesmo estilo do PSDB, e os membros deste partido e seus aliados estão empenhados na cassação da Presidenta Dilma.

Tanto política quanto economicamente, o Brasil tem piorado cada vez mais, desde a sua chegada à Presidência. Para convencer o povo do contrário, o discurso que sustenta e que a grande mídia tem propagado com veemência é o seguinte: o governo Temer é um governo de salvação nacional, pois vai tirar o Brasil das crises que Dilma e o PT provocaram.

Por trás dessa mentira há um projeto de poder que vai colocar o Brasil nos mesmos patamares ocupados na era FHC: controle do FMI, mapa da fome, desemprego exacerbado, inflação, inexistência da distribuição de renda, ausência de investigação e condenação de criminosos de colarinho branco vinculados à direita, repressão das manifestações do pensamento e da opinião pública etc. Estas e outras situações explicitam o que eles chamam de “normalidade democrática”.

Com a flagrante ausência de crime de responsabilidade, o impeachment representa uma grave ruptura em nossa jovem e frágil democracia. A velha direita, arrogante, preconceituosa e sedenta de poder, está retomando o controle daquilo que ela considera a “grande senzala”. Para os poderosos, o Brasil não passa de uma grande casa de escravidão, formada por um povo acostumado a chibatadas.

Nos bastidores da má política, a conversa é uníssona: Lula e Dilma deixaram o povo mal-acostumado. Agora é a hora de retomar as rédeas da nação. Colocar o povo no seu devido lugar. O povo não pode esquecer que nasceu para a subserviência. Os pobres do povo não podem pensar que são livres. É hora de retomar os mecanismos severos de controle. Pobre reclamando direitos é anarquia. Passou da hora de retomarmos a ordem e promover o progresso (que exclui os pobres, claro!). É assim que eles pensam.

4 – Não há golpe porque o impeachment está previsto na Constituição da República e seu rito está sendo cumprido rigorosamente.

        A primeira parte do art. 1º do Código Penal afirma: “Não há crime sem lei anterior que o defina”. A previsão legal em si assegura a devida punição, respeitando o devido processo legal. O impeachment está previsto na Constituição da República (cf. art. 85), e a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento. Portanto, há impeachment quando há crime de responsabilidade, e não porque simplesmente está previsto na legislação constitucional e infraconstitucional. Então, por que os que são contrários ao impeachment da Presidenta Dilma afirmam que há um golpe? A resposta é simples.

        O golpe contra o governo Dilma possui algumas fases. A primeira se refere às primeiras reações do candidato derrotado Aécio Neves, do PSDB, recusando-se a aceitar o resultado das urnas. O povo reelegeu a Presidenta e o tucano não aceitou. E o que fez? Questionou a validade das eleições, pedindo a recontagem dos votos. O TSE não aceitou o questionamento e não atendeu ao pedido do tucano. Inconformado, tentou impedir que a Presidenta fosse diplomada, solicitando ao mesmo TSE que cassasse o registro da reeleita. Mais uma vez, o TSE não deu ouvidos. A sorte da Presidenta é que na época (dezembro de 2014), o ministro Gilmar Mendes não era o presidente daquele Tribunal.

        Ainda nesta primeira fase, o deputado Eduardo Cunha, do PMDB, partido que abandonou a base aliada do governo, resolveu colaborar com o PSDB, aceitando, na Câmara, o pedido de impeachment contra a Presidenta Dilma. O pedido foi aceito no mesmo dia em que deputados do PT anunciaram que votariam contra ele no Conselho de Ética da Câmara, onde estava sendo investigado. A retaliação do deputado Eduardo Cunha era o que o PSDB estava precisando para continuar articulando o golpe.

        A segunda fase se inicia com um dos momentos mais vergonhosos da história política do Brasil: a sessão, na Câmara, que autorizou a instauração do processo de impeachment, no dia 17 de abril de 2016. Manipulados pelo deputado Eduardo Cunha e influenciados pelo PSDB e DEM, a maioria dos deputados votou pela instauração do processo. Cada voto a favor era um espetáculo de hipocrisia, ignorância, preconceito, autoritarismo, conservadorismo e insensatez. Os deputados fizeram questão de mostrar quem realmente são diante de toda a nação, sem pudor algum.

Eles se sentiram tão à vontade, que um deles, deputado Jair Bolsonaro, fez apologia ao crime de tortura e até hoje não foi punido. Em meio ao tumulto e à falta de vergonha na cara, eles decidiram pela abertura de processo de impeachment contra a Presidenta da República, sem seriedade alguma. Cada voto a favor era uma homenagem a Deus, à família, às tradições, aos mortos, à pátria, a amigos, a vizinhos, às denominações religiosas neopentecostais etc. Nenhum deles fundamentou seu voto, alegando crime de responsabilidade. E o motivo era simples de entender: a Presidenta da República não cometeu crime de responsabilidade. Qual a alegação do PSDB e demais opositores?

O PSDB contratou os juristas Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Miguel Reale Júnior para elaborarem o pedido de impeachment. Na peça processual, os juristas argumentaram que a Presidenta Dilma cometeu crime de responsabilidade por ter recorrido a dois bancos públicos, Banco do Brasil e Caixa Econômica, solicitando dinheiro para financiar programas sociais e o Plano Safra. Posteriormente, o Tesouro Nacional repôs o empréstimo. Onde está o crime de responsabilidade nisso? O crime não existe de fato, mas somente está presente no falacioso discurso político dos acusadores.

4 – O Brasil está politicamente fragmentado, e o governo Temer promoverá a união nacional após o impeachment.

        Desde sempre, o Brasil é marcado por desigualdades sociais escandalosas, e isto ocasiona uma vergonhosa distância entre ricos e pobres. Apesar dos pesares, desde a chegada do PT ao poder, essas desigualdades diminuíram graças à distribuição de renda promovida pelos programas sociais como o Bolsa Família, e outras medidas de governo em matéria de política pública.

É verdade que as elites conservadoras nunca viram isso com bons olhos, pois os pobres começaram a aparecer em lugares que eram somente frequentados pelos ricos. Os pobres passaram a consumir mercadorias e serviços que eram reservados aos ricos: viagens de avião; TV por assinatura; eletrodomésticos sofisticados; carro próprio; ingresso em universidades públicas e particulares, abertura de negócios próprios etc. Antes de 2003, eram poucos os pobres que usufruíam destes e outros benefícios.

        Quanto mais desigual o País, mais desunido é seu povo. Numa sociedade desigual, os mais pobres vivem em constante conflito com os mais ricos porque estes tendem a explorá-los, sem pudor e sem piedade. A história do Brasil é marcada por esta exploração avassaladora, e o conjunto das leis e seus operadores (Poder Judiciário) sempre estiveram do lado dos opressores.

De 2003 para cá, o povo está assistindo às prisões de opressores, tanto no mundo da política quanto no mundo empresarial. Isto é algo novo no Brasil, pois desde criança o brasileiro aprende que, geralmente, quem é rico não precisa ter medo da justiça porque a lógica interna que a governa é a de silenciar o clamor dos oprimidos e deixar impune os poderosos. Com os pobres, a justiça é implacável; com os ricos, é flexível e cega.

        O governo interino que, provavelmente, tornar-se-á oficial, é caracterizado pelo retrocesso, pois tende a agravar as desigualdades sociais. Portanto, é mentira a fala do Presidente interino ao prometer união nacional. Essa união não existe nem vai existir. Numa cultura de exploradores e explorados não há união possível. O mero funcionamento das instituições não é sinônimo de união nacional.

Na verdade, quando ele fala de união nacional está querendo dizer o seguinte: o povo precisa parar com essa mania de protestos e manifestações. Portanto, unir o País significa acalmar todo mundo, mandar o povo trabalhar e manter o assalto aos cofres públicos longe do conhecimento deste mesmo povo. Somente assim, haverá “paz” e tudo voltará à “normalidade”.

Era assim antes de 2003. Não se ouvia falar de escândalos de corrupção porque o Ministério Público não era livre para denunciar e o Judiciário também era orientado a permanecer na inércia, ocupando-se somente com os conflitos surgidos entre os pobres. Desse modo, passava-se a falsa ideia de que não existia corrupção no Brasil. Qualquer pessoa inteligente e de bom senso admite essa realidade.

5 – O governo Temer é a favor da continuidade das investigações dos grandes criminosos que mantém o País no ranking dos países mais corruptos do mundo.

Para reconhecer esta mentira basta olhar a composição ministerial do governo Temer. Nos primeiros dias de governo interino, três ministros caíram por causa de graves acusações de corrupção: Romero Jucá (Planejamento); Henrique Alves (Turismo) e Fabiano Silveira (Transparência, Fiscalização e Controle). Além destes, há outros implicados em denúncias e suspeitas. O próprio Temer foi citado vinte e quatro vezes na delação de Sérgio Machado.

Contra a Presidenta Dilma não há uma acusação de desvio de verba pública. Nenhum delator a citou em suas delações. Ninguém a acusa de ter desviado dinheiro público para esconder em contas pessoais no Brasil ou no exterior. Caso o golpe venha a se consumar, pela primeira vez na história do Brasil, uma Presidenta ilibada dará o lugar a um homem acusado e suspeito de corrupção. Isto constitui uma grave e irreparável ruptura da ordem constitucional, e as consequências já são conhecidas e tornar-se-ão cada vez piores. 

O governo Temer não tem autoridade moral nenhuma para falar de combate à corrupção porque está profundamente aliançado e composto por pessoas corrompidas. Considerando o perfil tendencioso do Judiciário brasileiro, tudo indica que ninguém conseguirá impedir os desmandos que este governo pretende praticar. Considerando também que o povo brasileiro não é um povo esclarecido e politizado, então a expectativa por dias melhores a curto prazo já está sendo frustrada e continuará sendo nos primeiros dias após a consumação do golpe.

Qualquer pessoa atenta ao que vai acontecer nos próximos meses enxergará o que estamos constatando. O famoso juiz Sérgio Moro e todos os juízes brasileiros vão ver quem realmente é a favor do combate à corrupção no Brasil. Muitos juízes e investigadores, considerados heróis nacionais, perderão a sua fama na grande mídia, pois não vão mais se ocupar com os criminosos de colarinho branco. Em breve, as manchetes dos grandes jornais não mais mencionarão nomes de juízes, apresentando-os como os salvadores da pátria. Era assim antes de 2003, e esta época vai voltar a marcar o cotidiano do Judiciário brasileiro.

Por fim, resta-nos saber: Quais foram os dois maiores erros dos governos Lula e Dilma?

        Quando o PT pensou na possibilidade de concorrer à Presidência da República, a sua convicção era a de que iria governar com a participação popular, tendo em vista um País mais justo e fraterno para todos. O mensalão foi o maior escândalo que aconteceu durante o governo do ex-Presidente Lula. Mas como o povo percebeu que a qualidade de vida dos mais pobres tinha melhorado significativamente, e isto se mantém até hoje, então manteve o PT no poder: elegeu e reelegeu Lula, elegeu e reelegeu Dilma.

Isto foi inédito na história do Brasil, pois até então, um nordestino nascido na pobreza e sem diploma universitário, e uma mulher que enfrentou a ditadura nunca tinham chegado à Presidência da República. Isto ficará para a história, e se a consciência política do povo não despertar para o que está acontecendo, fatos históricos como estes não se repetirão. A elite branca, ignorante e opressora poderá retomar o poder e não permitirá mais que um homem do povo ouse sequer pensar em ser Presidente da República.

Os acertos de ambos os governos estão aí para qualquer pessoa ler e admitir sua existência: a inegável melhoria de vida dos mais pobres e os avanços no desenvolvimento do País. Qualquer pessoa bem informada e de bom senso admite os significativos avanços que ocorreram nos últimos treze anos no Brasil, em todos os setores da sociedade. Como em treze anos é impossível consertar o estrago cometido há séculos, então resta muito o que fazer. Não se coloca um país do tamanho do Brasil nos eixos em tão pouco tempo, considerando as resistências históricas e as dificuldades que aparecem pelo caminho.

Muitos erros foram cometidos, como em todos os governos em todos os tempos e lugares, mas o maior erro de ambos os governos foi o conjunto das alianças políticas para manter o que chamam de governabilidade. Infelizmente, o PT cometeu, no quesito alianças, os mesmos erros dos governos anteriores. Lula e Dilma confiaram na aliança feita com o PMDB, como se fosse impossível governar sem o apoio deste partido.

A história do PMDB é marcada pela sede de poder e por desvios escandalosos. Por isso, apoiam qualquer candidato à Presidência e se instalam no Poder Executivo, devorando-o. É o partido do Executivo Federal. Além da aliança com os políticos pouco confiáveis do PMDB, outras alianças comprometeram gravemente os governos Lula e Dilma. E estas alianças com gente corrompida conduziram Dilma ao impeachment.

É praticamente impossível uma pessoa se sentir segura e livre de grandes problemas estando cercada por gente mal-intencionada. Mesmo que a Presidenta não tenha cometido, pessoalmente, desvio de recursos públicos, mas muitas pessoas de seu governo cometeram tais desvios e isto abalou a sua permanência, uma vez que estes corruptos se voltaram violentamente contra ela, unindo-se para derrubá-la, pois sabem que ela, desde sempre, foi favorável à apuração dos fatos e não trabalhou para impedir as necessárias investigações. A Presidenta confiou em quem não deveria confiar, e o primeiro traidor e chefe de todos os demais foi seu próprio vice, Michel Temer.

Um segundo grande erro cometido pelos governos Lula e Dilma foi o quase total abandono dos movimentos sociais. O PT nasceu no meio popular com os movimentos sociais, especialmente com o movimento sindical. É verdade que, se compararmos com os governos anteriores, especialmente o governo FHC, os movimentos sociais tiveram mais possibilidades de dialogar com o governo durante os governos do PT do que com os governos anteriores. Em muitos momentos, Dilma e Lula acolheram no Palácio do governo representantes de inúmeros movimentos sociais para escutar os seus anseios.

Apesar de ter recebido inúmeras propostas para serem efetivadas, ambos os governos se recusaram a implementá-las. Os movimentos sociais não foram devidamente considerados. Somente de uns meses para cá, diante da instauração do processo de impeachment, a Presidenta retomou o diálogo com os movimentos sociais, pois sempre soube que estes movimentos nunca a abandonaram. Ela conhece bem a força destes movimentos e sabe que eles não estão do lado da direta branca, ignorante e opressora. E é assim porque são constituídos por pessoas do povo, pessoas empenhadas nas lutas pelas transformações sociais em vista do bem comum, com espírito crítico e organização reconhecida.

Finalizamos estas considerações, que julgamos necessárias para o discernimento que a situação atual exige, constatando, ainda, uma urgente necessidade: caso o golpe se consuma, o PT deve rever a sua caminhada. Sem esta revisão, que deve partir do diálogo permanente com os mais pobres do povo, vai ser muito difícil governar novamente o País. Rever o jeito de fazer política, libertando das manias vergonhosas da velha política. Repensar seu projeto político à luz da realidade dos pobres, incluindo-os na discussão. Renunciar, definitivamente, às alianças espúrias e fazer uma aliança com os legítimos representantes do povo que se organizam nos movimentos, sindicatos, associais, partidos, igrejas etc.

Com coerência e ousadia, o PT deve fazer oposição firme e corajosa aos desmandos que o governo Temer irá praticar, caso o golpe se consuma. O povo padece pela falta de representações políticas transparentes e honestas, dignas de respeito e consideração. O Congresso Nacional, de onde saem as leis que regulam a vida social, está tomado por centenas de políticos mentirosos, desonestos, ladrões, covardes e conservadores. Portanto, o povo está pessimamente representado. Infelizmente, este mesmo povo ainda não aprendeu a escolher seus representantes. Continua sendo enganado nas épocas das eleições e, assim, entrega o poder nas mãos de gente criminosa.

Esta falta de visão da realidade, mesmo estando inserido nela, faz com que o povo permaneça praticamente calado, sem saber o que fazer diante das injustiças. Somente quando crescermos em nossa consciência política é que poderemos vislumbrar um outro Brasil, verdadeiramente mais justo e fraterno, digno de todos os brasileiros. Enquanto isto, somos chamados a manter viva a esperança ativa, na certeza de que, se cada um fizer a sua parte, com consciência e liberdade, dias melhores virão. Esta deve ser a nossa atitude e nossa esperança.

Tiago de França 

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O golpe está se consumando... Pensamentos (XVII)

Pelas notícias veiculadas, Michel Temer está praticamente sem dormir, empenhado na articulação para a derrubada da Presidenta da República afastada.

Está articulando, desesperadamente, os votos dos indecisos no Senado, para que votem a favor do impeachment. Para isso, está prometendo tudo o que é possível e até o impossível para, assim, permanecer no poder.

Ele sabe que não há crime de responsabilidade, sabe que a farsa jurídica passou na Câmara dos Deputados e está prestes a passar pelo Senado da República.
Ele sabe também que se conseguir o número de votos suficientes, haverá impeachment e o golpe com roupagem de legalidade acontecerá.

E depois que tudo estiver consumado, uma vez revestido na Presidência da República, revelará à nação sua verdadeira índole política e seu projeto de desgoverno. Aí será tarde demais para os brasileiros.

Partindo do que já estamos assistindo, haverá muito choro e ranger de dentes. Isto não é pessimismo nem apocaliptismo, é nossa REALIDADE.

E os que gritaram "Fora Dilma! Fora PT! Tchau, querida!" vão se arrepender amargamente. E neste mesmo espaço, não me cansarei de lembrar a todos desta infeliz atitude.

Como cremos, fielmente, na sentença bíblica que afirma que o mal por si só se destrói, quero permanecer vivo para assistir à sua destruição, com a consciência tranquila, de que não colaborei para a sua instauração e legitimidade.


Tiago de França

sábado, 20 de agosto de 2016

Viver ou passar pela vida? Pensamentos (XVI)

Fico, muitas vezes, observando as pessoas, não para julgá-las, mas para entendê-las. Simplesmente me coloco diante delas. Como filósofo, cultivo o olhar contemplativo. Observo-as no ônibus coletivo, nas ruas e praças, na universidade e na escola, no comércio etc. Escuto suas falas e atenho-me aos semblantes.

A contemplação da realidade me revela muitas coisas. Hoje, quero falar de uma delas: o cansaço existencial. Em inúmeras pessoas enxergo um cansaço de viver. As pessoas não tem coragem de morrer, então suportam viver. O olhar delas me fala de um cansaço de existir. A todo momento, elas falam: “Ah, se eu pudesse morrer!”

Consciente ou inconsciente, fogem da vida porque a vida que levam parece não ter sentido algum. Este cansaço existencial é acompanhado por uma profunda angústia. Rostos abatidos, olhares distantes, corpos tomados por uma indisposição que não é preguiça. Quando percebem que estão sendo observadas e descobertas em suas angústias, fogem; sentem-se intimidadas.

Algumas pedem para descer do trem da vida sem ter chegado o lugar de destino; outras, colocam o fone de ouvido e desviam o olhar. Elas até queriam falar de si mesmas, mas não conseguem porque lhes faltam palavras. Estão emudecidas. Há um silêncio que esconde um tormento espiritual avassalador. Não é silêncio de paz, de leveza, de estar diante de si mesmo.

Há uma infinidade de almas vagantes no mundo; espécie de corpos animados somente pelo biológico, de um psiquismo confuso, obscuro, enfadonho, triste. Estas almas vivem se perguntando: o que a vida tem de importante? Por que minha vida é assim? Por que estou vivo? Minha vida tem sentido, ou vivo mergulhado numa ilusão sem fim?...

E você, leitor, que chegou até este parágrafo que agora lê com certa curiosidade e, talvez, com semelhante inquietação: o que, na sua vida, há de importante? O que você tem feito de sua vida? Com o que tem gastado o tempo de sua vida? Você sabia que o tempo está passando e não volta mais?...

Algumas pessoas já não tem a mesma chance que você está tendo. A chance de poder dar um sentido à vida, pois já não existem. Desperte! Sua vida não se repete neste mundo. Ela pode não ser tão longa como talvez imagine que seja. Saia de si, olhe para o lado, respire e ponha-se a caminho. Sinta que está vivo. Perceba-se. Acorde. Qual a sua opção: viver, ou passar pela vida?...


Tiago de França

terça-feira, 16 de agosto de 2016

O filósofo e o filosofar

       
       No Brasil, celebra-se hoje, 16 de agosto, o dia do filósofo. Quem é o filósofo e o que ele faz? O filósofo é um homem do pensamento e da ação refletida. É falsa a ideia de que o filósofo vive no mundo das ideias, distante da realidade. Pelo contrário, trata-se de alguém que está inserido na realidade e a enxerga de forma profundamente reflexiva. Em outras palavras, o filósofo é alguém que enxerga a vida como ela é, e isto é profundamente filosófico.

       Ocupado com a perigosa arte de pensar, o filósofo vive, permanentemente, analisando a realidade, procurando compreendê-la na sua simplicidade. Não é verdade que os filósofos falam de coisas de outro mundo. O seu mundo é o mundo de todos. Em relação aos demais homens, qual é o seu diferencial? O filósofo não aceita as coisas dadas, tais como elas aparecem. Ele aceita a realidade, desvelando-a, portanto, tirando-lhe o véu. Procura nas entrelinhas o sentido e o alcance de todas as coisas. Nada lhe é indiferente. Tudo pensa e reelabora.

       A mente do filósofo é esclarecida porque alcançou a maioridade intelectual. É alguém que está muito além do senso comum. Desconfia e questiona toda espécie de unanimidade. Discorre sobre qualquer assunto porque sobre tudo se interessa: política, economia, arte, religião, matemática, música, enfim, a cultura humana de modo geral. O filósofo é alguém que faz a experiência permanece do despertar. Vive acordado e não se entrega à ilusão. Aparentemente, nada há nele nada que aparente anormalidade, mas não se confunde com a normalidade do comum dos mortais. Sem sentir-se superior a ninguém, vive a dimensão extraordinária da vida.

        O filósofo não sabe viver sem que esteja ocupado com algum pensamento. Esta é a sua distração. Nele não há dispersão, mas imersão. Não se identifica com o superficial, mas com aquilo que é essencialmente complexo. Enquanto os demais homens se ocupam com a especificidade de seus afazeres e somente se habituam a saber fazer algo de útil à vida humana, o filósofo está ocupado com a busca da verdade de todas as coisas, inclusive da própria verdade. É alguém que descobriu que pode mergulhar em si mesmo, naquilo que há de mais sombrio, fascinante, intrigante e revelador.

        A observação das pessoas e de seus contextos lhe é tarefa peculiar. Seu instrumento de trabalho é a razão que desconhece limites. É figura sofisticada, que gosta de aventurar-se nas trilhas do saber. Toma consciência de que quanto mais conhece, mais o saber lhe escapa. Não aceita respostas prontas e dogmáticas, mas prefere apegar-se à pergunta. E é assim porque sabe que a pergunta não permite apegos, mas deslocamentos constantes e desafiadores. Não é necessariamente ateu. O ateísmo é uma escolha, não é uma consequência do ser filósofo. Quando crente, reelabora a crença em Deus, despindo-o das armadilhas ilusórias das construções conceituais oriundas das culturas dos povos.

        O filósofo é homem da linguagem e da alteridade. Domina a palavra numa tentativa infinita e instigante de expressar o que pensa e o que sente, na certeza humilde de reconhecer-se limitado em sua tarefa de expressividade. Não há conceito que enquadre o seu pensar e seu agir. Sua mente e personalidade não se submetem ao juízo dos homens.

Não se sente julgado ou qualificado por ninguém. É livre e dado à liberdade. Aí está o tom misterioso de sua identidade. Não tem medo da verdade, mas vive em função de sua busca. Não depende dos títulos universitários e das honrarias para ser reconhecido como tal. Este reconhecimento não constitui a meta de sua vida. No filósofo autêntico não há vaidade porque é pessoa da procura, e quem procura ainda não encontrou plenamente o que busca, e se não encontrou, não tem a posse de nada. No fim da vida, o filósofo conclui sua jornada do jeito que a iniciou: com um forte desejo de saber mais como as coisas realmente são. Este espírito inquietante de busca da verdade é a sua riqueza, e não há prisão neste mundo capaz de aprisioná-lo na sua jornada.

Na minha experiência pessoal, encontrei-me com a filosofia. Fui iniciado nela. Não de qualquer jeito, mas com gosto e identificação. Hoje, ela não me larga mais. Para onde olho e para onde me dirijo, em tudo a encontro. Ela obrigou-me a voltar-me para dentro de mim mesmo, numa aventura desafiadora. Tenho descoberto muitas coisas e enxergado muitas dimensões. Trata-se de um espanto e encantamento que não passam.

É tarefa de gente corajosa, que tem sede de sentido, de autenticidade e tranquilidade de espírito. Os pensadores da tradição filosófica muito me ajudaram e ajudam, mas há uma tarefa que é somente minha: a de encontrar e experimentar o sentido último da minha vida e da vida como um todo. A filosofia é a única capaz de apontar a direção. Como não sou um filósofo ateu, a teologia ajuda-me a pensar e a sentir o verdadeiro gosto da vida; vida que é dom e felicidade, aqui e a agora. Isto é ser filósofo.

Tiago de França

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

MENSAGEM POR OCASIÃO DO MÊS VOCACIONAL (AGOSTO)

CHAMADOS À LIBERDADE

“Se permaneceis na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32).

Introdução

        Anualmente, escrevo uma mensagem aos amigos e comunidades, por ocasião do mês de agosto que, na Igreja Católica, é denominado mês das vocações. À luz da palavra de Deus e dos últimos acontecimentos eclesiais e sociais, neste ano, queremos falar sobre a nossa vocação à liberdade de filhos e filhas de Deus, tendo como referência bíblica o versículo 32 do capítulo 8 do evangelho de Jesus segundo São João. Nosso objetivo é oferecer uma interpretação destas palavras de Jesus, considerando nossa realidade eclesial e social.

1 – Se permaneceis na minha palavra

        O que significa hoje permanecer na palavra de Jesus? A palavra de Jesus é vida e liberdade para todos. Ele não dirigiu a sua palavra a um número isolado de pessoas. A palavra de Jesus é pública e tem uma finalidade pública. Os efeitos da sua palavra são conhecidos por todos. Fiel à missão dada pelo Pai, Jesus pronunciou a palavra de Deus. Ele mesmo é a palavra, o Verbo de Deus. Palavra é ação. Jesus é a ação de Deus para que toda a humanidade reencontre o caminho que conduz à vida.

        A palavra de Jesus, vida e liberdade para todos, é dirigida em primeiro lugar aos pobres. São os pobres que mais precisam desta palavra. E o motivo é simples: São os pobres do povo que precisam de libertação. A escuta e a compreensão da palavra de Jesus constituem fonte de vida e liberdade para os pobres. Somente os pobres compreendem plenamente o sentido da palavra libertadora de Jesus. Os ricos e poderosos são incapazes de compreendê-la porque seus corações estão dominados pelas riquezas. A preocupação em mantê-las e multiplicá-las deixa-os cegos. Este é o motivo que os leva a rejeitar a palavra de Jesus.

        A palavra de Jesus incomoda, desinstala, desmascara, clarifica, desmistifica e consola os corações dos aflitos. É uma palavra geradora de esperança. Ela desperta no coração aflito a coragem necessária para enfrentar os obstáculos da vida. A palavra de Jesus é a força dos pobres, de todos os agoniados espalhados no mundo inteiro. Todos aqueles que escutam esta palavra são capazes de transformar a dor em alegria, o desespero em esperança. Não estamos falando de transformação mágica, mas da ação do Espírito que faz a palavra gerar seus efeitos libertadores no coração de cada crente e na história da humanidade. E a ação do Espírito acontece na ação de cada crente, na sua vontade de se libertar.

        Todo cristão é chamado a permanecer nesta palavra. Permanecer significa estar unido a Jesus. Como nos ensina o apóstolo Paulo: É necessário possuir os mesmos sentimentos de Jesus Cristo. A palavra de Jesus revela não somente os seus sentimentos, como também aponta para o seu projeto. O projeto de Jesus é, na verdade, o projeto do Pai para toda a humanidade. Estamos falando de um projeto de salvação, de restauração de todo homem e do homem todo e de toda a criação. No Cristo, o Pai renovou todas as coisas para que subsistissem à ação do mal do mundo. Em Cristo, o Pai elevou o homem à dignidade de filho de Deus. E o Espírito foi enviado para manter esta dignidade e fazê-lo recordar-se sempre dela.

        A palavra de Jesus está presente na vida daqueles que lutam por libertação. Nas pessoas que padecem por seus sofrimentos, nelas está operando a palavra de Jesus. Na vida dos que são perseguidos por causa da justiça, neles está a palavra. No cotidiano doloroso dos que são mutilados em seus corpos, neles está a palavra. Nas fileiras dos que fogem das guerras, a palavra os acompanha. Nas famílias ameaçadas pelas drogas, que ceifam milhares de jovens anualmente, nelas está a palavra. Nestes e em tantos outros lugares sagrados, o crente pode encontrar Jesus e sua palavra.

Desse modo, o crente não encontra a palavra libertadora de Jesus somente no texto bíblico e nos templos religiosos. Nas Igrejas encontramos a sua proclamação. A palavra de Jesus está operando a libertação fora dos templos religiosos. Para permanecer nela é preciso permanecer nos inúmeros lugares nos quais ela se manifesta. A realidade de nossas Igrejas nos mostra o gravíssimo problema, que não é novo: Inúmeros cristãos pensam que só encontram a palavra de Jesus nas liturgias dos templos religiosos. Infelizmente, os pastores, salvo exceções, não os ajudam a enxergar a palavra que está gerando seus efeitos na carne dos sofredores.

        O Brasil está mergulhado nas crises política e econômica, causadas pelos poderosos. Não foram os pobres do povo que geraram estas crises. Os poderosos (políticos coligados com empresários), com a ajuda da mídia neoliberal, procuram convencer o povo do contrário. Na história das crises políticas e econômicas, os pobres sempre foram e continuam sendo as vítimas. Quem assalta os cofres públicos? Quem vive de sonegação fiscal? Quem vive da especulação financeira? São os poderosos, os que manipulam a ordem política e econômica. As crises revelam os atropelos dos poderosos.

Elas acontecem quando eles falham nos seus projetos de desvios. Esta é a verdade que a mídia não fala. O discurso dos poderosos é tão bem elaborado, que os pobres do povo passam a se sentir responsáveis pelas crises. E o atual ocupante da cadeira presidencial no Brasil confirma o que estamos afirmando, ao dizer publicamente: “Não fale em crise, trabalhe!” Os poderosos provocam as crises e os pobres são acusados de serem os responsáveis por elas e, como tais, devem procurar erradicá-las.

Esta é a explicação para uma compreensão das medidas tomadas pelos governantes em tempos de crise. Todas as medidas visam o empobrecimento daqueles que já são pobres, pois os poderosos lutam para a manutenção de seus privilégios em detrimento da vida dos pobres. Eis o pensamento dos poderosos, que legitima a sua forma de agir: Os pobres nasceram para nos sustentar, e devem fazer isso sem revoltas. Neste sentido, as forças policiais, que manifestam a força bruta do Estado, servem para conter a ira dos pobres que se revoltam. O Estado não está preocupado com a insegurança que afeta os mais pobres, mas com a violência que afeta as propriedades dos poderosos.

Esta é a concepção que está por trás das medidas impopulares que tomam. Para escondê-las, mentem descaradamente. A palavra de Jesus é a verdade, a sua lei é a liberdade. A vida e os projetos dos poderosos constituem uma mentira bem contada; mentira que somente os beneficia. Por isso que Jesus afirmou, categoricamente, no seu evangelho: Os poderosos deste mundo não participam do Reino de Deus. Neste Reino não há lugar para opressores.

2 – Se permaneceis na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos

        Ser discípulo não é ocupar um cargo ou uma condição de poder na Igreja e na sociedade. Ser discípulo é ser seguidor de Jesus. O discípulo é alguém que vive na escuta permanente de seu mestre. Escutar é uma atitude que deve perdurar no tempo, portanto, não se trata de algo pontual e/ou passageiro. Se quiser permanecer no caminho de Jesus, o crente deve escutá-lo com atenção e constância. Atenção porque não se escuta na dispersão. Em cada pessoa e no mundo há outras vozes que falam com certa insistência; vozes sedutoras, que possuem um único objetivo: Desviar o discípulo do caminho de Jesus. Todas estas vozes se resumem no poder sedutor do poder, do prestígio e da riqueza.

        Jesus não oferece absolutamente nada a seus seguidores, mas somente os assegura a participação no Reino de Deus. O caminho de Jesus é totalmente desprovido de qualquer tipo de segurança. O poder, o prestígio e a riqueza oferecem uma falsa segurança. Na verdade, não passam de caminho de morte. Todas as pessoas, sem exceção, que se entregam a tais coisas, somente encontram o caminho da morte. Os poderosos que assaltam os cofres públicos no Brasil encontram a morte. Mesmo aqueles que morrem usufruindo do luxo que tais coisas oferecem, encontram-se com a morte.

Já vivem condenados antes da morte do corpo. Entram para a história como ladrões e assaltantes. Constituem causa de vergonha e confusão para suas famílias. Não passam de sepulcros cheios de podridão. Depois de uma vida podre, são devorados pela morte e transformados em cinzas. Sua existência não passa disso. Na história da política nacional há vários maus exemplos que confirmam o que estamos falando. Para ilustrar, eis o nome de um deles: Antônio Carlos Magalhães, que foi um verdadeiro coronel da política baiana. Praticou a má política com tamanha maestria que até hoje é venerado por milhares de baianos que não tem consciência da boa e necessária política.

        A palavra de Jesus liberta da ambição do poder, do prestígio e da riqueza. O poder sedutor destas coisas é muito forte. O sistema capitalista, com suas ideologias, busca convencer as pessoas da necessidade de serem ambiciosas. A ideologia dominante encerra-se na seguinte sentença: Toda pessoa precisa ser rica, prestigiada e poderosa. Os pobres não gozam de tal riqueza, prestígio e poder; logo, são excluídos. O capitalismo não oferece lugar para todos. A regra é a exclusão e não a inclusão. Tem valor quem tem muito dinheiro para consumir, competir e lucrar. Estes são os verbos que revelam o sistema.

Os pobres são destituídos de poder aquisitivo suficiente para o consumo, a competição e o lucro; mas para não excluí-los totalmente, o mercado capitalista fabrica inúmeras mercadorias para despertar o desejo de consumir. O capitalismo descobriu que os pobres são uma fonte inestimável de riqueza. É preciso tirar o pouco dinheiro que os pobres possuem, e a forma mais eficaz para fazer isso é levando-os ao consumo de coisas supérfluas e descartáveis. Busca-se manter os pobres na pobreza (pobreza no sentido de falta de uma vida digna). O capitalismo é um sistema financeiro que visa manter a riqueza nas mãos dos poderosos. São estes que gerenciam o sistema.

O discípulo sabe, por revelação divina, que deve seguir Jesus neste mundo, sem fugas e sem medo, numa entrega total à vontade de Deus. No seguimento a Jesus, o discípulo descobre que Deus é a sua segurança. Sabe que Deus é o seu Pastor, a sua proteção. Afirmar que Deus é a segurança do discípulo significa que este está permanentemente exposto aos riscos inerentes à missão. Portanto, a incompreensão, as ameaças, as perseguições e a morte não constituem surpresa nem motivo para ter medo. Como ser humano que é, sente na carne a angústia de tais circunstâncias, mas a fidelidade a Jesus o leva, em muitos casos, à divina experiência do martírio. O martírio é a experiência por excelência do amor de Deus.

O discípulo, unido ao mestre Jesus, permanece fiel até às últimas consequências. Esta fidelidade é puro dom de Deus. Confiando na palavra de Jesus, jamais é desiludido. Aprende com a fidelidade de Jesus ao Pai a ser fiel na sua missão. A verdade e a liberdade da palavra de Jesus são a fonte na qual o discípulo encontra a verdade de si mesmo e a própria liberdade. Neste sentido, o discípulo é alguém livre: Já não é mais escravo de ninguém, inclusive é livre em relação ao próprio Deus, pois Deus não quer escravos, mas filhos. Livre da opressão das próprias tendências instintivas; livre da opressão dos poderosos deste mundo; livre das imposições das prescrições religiosas e civis; enfim, livre dos apegos geradores de inúmeras formas de sofrimento.

A liberdade oriunda da palavra libertadora de Jesus não é a liberdade dos pensadores (filósofos), que, muitas vezes, conduzem a um certo intimismo. Não é a liberdade dos anacoretas, que, no deserto procuram a perfeição pessoal. A liberdade experimentada e transmitida por Jesus é a liberdade do missionário que se coloca a serviço do próximo. O discípulo é livre na missão e para a missão. Esta missão é desenvolvida no seio do povo de Deus.

Jesus não indica o isolamento como lugar do homem livre. Este deve viver no seio do povo de Deus em marcha, lutando para a libertação deste povo. Não é a liberdade dos homens de hoje, que pensam ser livres porque fazem o que bem querem de suas vidas. A liberdade do homem atual não conhece a responsabilidade para com o outro. Trata-se de uma liberdade que desconhece a alteridade. A consequência natural desse tipo de liberdade é a libertinagem. Quem pratica a libertinagem, pensando ser uma pessoa livre, sempre acha que pode fazer o que quiser da própria vida e da vida do outro. Na verdade, não passa de um escravo de si mesmo e dos outros.

        Não há discípulo no isolamento, na solidão. Até os que vivem na vida monástica, vivem em comunidade. Ainda podemos encontrar alguns monges, vivendo na solidão do deserto. Esta é uma vocação bem específica; mas a regra é a vida comunitária. Jesus saiu do seio da Trinidade, a divina comunidade de amor para assumir a sua missão no mundo, e a assumiu em comunidade, formando um grupo de mulheres e homens, seus discípulos missionários. Os primeiros discípulos compreenderam bem esta dimensão comunitária do seguimento e seguiram os passos de seu mestre, fundando e animando comunidades de seguidores de Jesus.

        A Igreja, continuadora do novo povo de Deus renovado no sangue de Jesus, pretende ser esta assembleia (ekklesia, do grego) de fiéis seguidores de Jesus. Dentro dela, o poder é um elemento presente, que tem causado, ao longo dos séculos, muitas divisões e conflitos. Os homens sedentos de poder, passaram a buscá-lo também dentro das comunidades religiosas. Surgiu uma hierarquia para dividir o poder em graus: diácono, presbítero, bispo. Posteriormente, surgiram os títulos: cônego, monsenhor, chanceler, cardeal, secretário, presidência de organismos eclesiásticos como, por exemplo, a Secretaria de Estado do Vaticano etc. Nas congregações religiosas há inúmeros graus e títulos de poder. E o voto de obediência na Vida Religiosa surgiu, inicialmente, com o objetivo de os religiosos respeitarem e obedecerem aos seus superiores em vista da coesão da comunidade.

        No genuíno seguimento de Jesus, o discípulo somente obedece a Deus, e Deus lhe concede os dons do discernimento e da visão. A visão da ação de Deus no mundo e o necessário discernimento para viver livre da ilusão e da confusão são dons do Espírito de Deus. Este Espírito fala ao coração do discípulo. Esta fala se manifesta nos acontecimentos que constituem as lutas por libertação. 

Em toda parte, há mulheres e homens em processo de libertação, e neste processo o discípulo enxerga o Espírito atuando. Nas lutas por libertação, o Espírito se coloca ao lado daqueles que são fracos e oprimidos. Estes sabem que somente podem contar com o auxílio divino, que jamais os abandona no caminho que conduz à vida e à liberdade. O Espírito é a força dos oprimidos e é o guia do discípulo na missão.

3 – Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará

        Quem permanece na palavra de Jesus conhece a verdade e encontra a liberdade. A verdade do evangelho não é uma ideologia, capaz da mera persuasão. Jesus não deixou um sistema de pensamento, como fazem filósofos. Jesus não se preocupou em escrever uma doutrina. Esta não era a sua missão. Alguns de seus seguidores registraram parte de suas palavras e gestos. Registraram o essencial. Preocuparam-se em transmitir o núcleo da mensagem de Jesus: O significado e alcance do Reino de Deus.

Diferentemente de muitos mestres, Jesus não criou instituições, rituais, normas e hierarquias. A preocupação de Jesus era viver conforme a vontade do Pai, revelando o seu amor pelos últimos deste mundo. Suas palavras e gestos manifestaram a misericórdia de Deus. Manifestar a presença misericordiosa de Deus no mundo, anunciando, assim, o Reino de Deus: Esta foi a sua missão. Este anúncio o levou ao madeiro da cruz e, após a sua morte ressurgiu gloriosamente, manifestando, assim, o destino último do ser humano.

O anúncio da palavra de Jesus foi confiado à comunidade de seus seguidores no mundo inteiro. O que denominamos Igreja é a reunião de todos os seguidores de Jesus em todas as Igrejas. Também fora destas encontramos seguidores de Jesus, que manifestam o seu amor no meio do mundo (cristãos anônimos). O abandono deste anúncio constitui o abandono da fé em Jesus, pois não há fé sem anúncio.

Todas as Igrejas cristãs precisam retomar o conteúdo do mandato missionário de Jesus: O anúncio da Boa Notícia. A história do cristianismo nos mostra os desvios, sendo o abandono do evangelho o maior deles. O poder, o prestígio e a riqueza não podem ocupar o centro da vida eclesial. Quando isso ocorre, o evangelho deixa de ser o essencial da missão eclesial.

A verdade que liberta o discípulo é o evangelho, Boa Notícia de Deus para toda a humanidade. A verdade é o conjunto das palavras e gestos de Jesus. E Jesus é a soma de suas palavras e seus gestos. Portanto, o evangelho é o próprio Jesus, a verdade revelada para a salvação de toda a humanidade. Jesus, verdade do Pai, é o único capaz de renovar a face da terra, fazendo com que todos possam reencontrar a vida em plenitude.

O discípulo faz a experiência de encontro com esta verdade libertadora e, pelo anúncio, a transmite aos outros. Não se trata de transmitir um conjunto de verdades dogmáticas, mas de transmitir a alegria de ter encontrado Jesus. A alegria do discípulo não é a alegria do mundo, oriunda dos prazeres passageiros, mas a alegria de quem se encontrou com Jesus, a verdadeira alegria.

Atualmente, na Igreja Católica se assiste a um embate entre o Papa Francisco e uma ala conservadora da instituição. Vamos pensar este embate para compreendermos o lugar do evangelho na vida eclesial. Depois do Papa João XXIII, de santidade reconhecida pela Igreja, o Papa Francisco é o Papa que mais tem se preocupado com a questão da centralidade do evangelho na vida eclesial. Seus gestos e palavras falam desta preocupação. Defender a centralidade do evangelho é falar da centralidade dos pobres na vida da Igreja, pois os pobres se encontram no centro do evangelho de Jesus. E o Papa sabe muito bem disso. Ele parece consciente das consequências de se colocar o evangelho de Jesus no centro da vida da Igreja.

Muito antes do Papa Francisco, já se falava da centralidade do evangelho e dos pobres. O evangelho e os pobres sempre estiveram nos discursos oficiais dos papas e nos documentos oficiais da Igreja. Então, não estaria resolvido o problema da evangelização da Igreja? De modo algum. O problema não se encontra nos discursos e nos documentos, que são rigorosamente elaborados. Mas não podemos confundir discursos e documentos com evangelização. Eles podem ajudar, mas não constituem o anúncio do evangelho.

Jesus não pediu aos discípulos para elaborarem uma complexa e rigorosa doutrina para oferecê-la ao mundo, mas os enviou para anunciar o evangelho da liberdade. A prática eclesial nos mostra que os discursos e documentos passam. Quando coerentes com a prática de seus autores, podem até convencer os interlocutores; mas, no geral, o povo não dar ouvidos a discursos e não ler documentos eclesiásticos. Discursos e documentos estão para os cristãos mais piedosos e para os estudantes do curso de teologia católica. Para viver o evangelho, o povo não precisa de documentos. Estes estão em função da normatividade institucional. O anúncio do evangelho é outra coisa, totalmente diferente.

Recentemente, desde que chegou à “cátedra de Pedro”, o Papa Francisco tem enfrentado opositores ferrenhos. É verdade que ele não fez nenhuma mudança substancial na doutrina eclesiástica, assim como não efetivou nenhuma mudança radical nas estruturas de poder da Igreja. Tanto a doutrina quanto as estruturas permanecem intocáveis. A pirâmide da hierarquia há séculos permanece a mesma. É imutável como os dogmas.

O primeiro ponto que o Papa tem insistido se refere à pobreza da Igreja. Na instituição Igreja, todos os que exercem o poder em função de seus interesses e privilégios, não se sentem bem ao escutar a palavra pobreza (pobreza no sentido de vida despojada). Para os conservadores ricos de poder e de riqueza (clérigos, principalmente), Jesus teve uma ligação assistencialista com os pobres. Eles entendem que Jesus manda ajudar os pobres, e nada mais. Tornar-se pobre e se colocar a serviço dos pobres não passa de ideologia comunista. Os conservadores não enxergam aí o evangelho.

É muito raro encontrar na Igreja um conservador que aceite viver como Jesus viveu: na simplicidade e na pobreza. Quase a totalidade dos conservadores leva uma vida de gente rica, cercada de todas as seguranças possíveis: carros (alguns de luxo); habitações excessivamente confortáveis; planos de saúde caros; adereços caros (relógios, pulseiras, roupas, sapatos de marca), cursos (há mestres, doutores e poliglotas que o são somente por vaidade) e viagens para o exterior; muito dinheiro em contas bancárias (em nome próprio ou em nome de suas instituições); propriedades imensas e valiosas (em nome próprio ou em nome de suas instituições) etc.

Entre os que se denominam progressistas também podemos encontrar pessoas ricas, muito ricas. Pessoalmente, conheço padres e bispos que gozam de todos estes privilégios, assim como muitos leigos, tanto entre os que se denominam conservadores quanto entre os que se intitulam progressistas. Toda essa gente se diz seguidora de Jesus, mas na verdade somente veneram Jesus. Com Jesus possuem uma relação de devoção particular e, assim, rejeitam a sua mensagem libertadora.

Por isso que, certa vez, Jesus disse que nem todo aquele que invoca seu nome entrará no Reino de Deus. Os que vivem apegados ao poder, prestígio e riqueza não reconhecem Jesus como salvador nem conseguem compreender a sua mensagem. Nos templos religiosos, podem até escutar a proclamação do evangelho, mas o fazem por mera tradição. Quem pratica religião por tradição não se converte, não se torna cristão.

Outro ponto tocado pelo papa é o da inclusão dos excluídos, daqueles que constituem as “minorias abraâmicas” (expressão do santo bispo Helder Câmara). Certa vez, sendo entrevistado por jornalistas em uma de suas viagens de retorno ao Vaticano, o Papa Francisco afirmou que não podemos julgar e condenar as pessoas homoafetivas (uma das minorias presente em todo o mundo). Recomendou que a Igreja deve compreendê-las e acolhê-las, pois somente Deus as pode julgar.

Esta fala e recomendação do Papa repercutiu bastante, pois vão na contramão da doutrina expressa no Catecismo da Igreja, que condena, veementemente, os atos homoafetivos. A condenação destes atos também constitui a condenação de quem os pratica. Quem discorda, precisa pensar a respeito do seguinte: Por que um heterossexual pode praticar atos heteroafetivos sem pecar e um homossexual não pode praticar atos homoafetivos? A homossexualidade se encerra nos atos homoafetivos? Por que estes atos são pecaminosos? As respostas oriundas dos especialistas em moral sexual católica, com exceção dos mais reciclados, não convencem ninguém, nem justificam a postura tradicional da Igreja. A posição que vigora somente reforça atos de violência contra os homossexuais, que se multiplicam assustadoramente.

Cremos que a instituição precisa repensar melhor sua forma de pensar o tema à luz da genuína doutrina da encarnação de Jesus. Trata-se de uma questão complexa sobre a qual podemos discorrer em outra oportunidade. O Papa não tocou na doutrina, não a modificou. Simplesmente fez como Jesus diante da pecadora ameaçada de apedrejamento em praça pública: Não condenou, mas recomendou a compreensão e o acolhimento.

A tendência ao conservadorismo é tão presente na vida da Igreja, que a fala do Papa foi considerada escandalosa. No Brasil, assim como na maior parte do mundo, os homossexuais são julgados e condenados pelas pessoas, tanto dentro quanto fora das denominações religiosas. Inúmeros são agredidos nos espaços públicos e privados. Dentro e fora das Igrejas cristãs é incontável o número de crentes que consideram a homossexualidade um desvio moral gravíssimo.

Muitos afirmam que se trata de uma tendência doentia, digna de cura física e espiritual. Segundo os homofóbicos mais radicais, os homossexuais devem ser extintos da face da terra, pois são considerados como que uma praga terrível que contamina a espécie humana. Nos meios eclesiásticos mais conservadores, julga-se e condena-se os homossexuais em nome de Deus, mesmo diante de um número significativo de clérigos, religiosos e leigos com tendências homoafetivas radicadas e não radicadas. Os que julgam e condenam ainda não foram libertos pela palavra de Jesus, que proíbe o julgamento e a condenação das pessoas.

Quer aceitemos, quer não, a palavra de Jesus não autoriza nenhuma pessoa a julgar e condenar quem quer que seja. O que Jesus nos adverte é que seremos medidos da mesma maneira com que medirmos as pessoas. Em Cristo, somos irmãos, e não juízes uns dos outros. Esta é a palavra que permanece e é válida para todos os que seguem Jesus. Nossos preconceitos e conveniências não estão acima da palavra de Jesus. Não existe meio termo. O evangelho é bastante claro e objetivo neste ponto.

Há outros pontos a serem considerados no magistério do atual Papa, que no breve espaço destas meditações não podem ser devidamente explicitados. Os que foram mencionados ilustram bem a linha de pensamento e de ação de Francisco, Bispo de Roma. São posturas contrárias a algumas das tradições da Igreja. Os Papas João Paulo II e Bento XVI, os mais conservadores dos tempos pós-Concílio Vaticano II, em matéria de moral sexual, reforçaram a doutrina tradicional, que mais exclui que inclui as pessoas. Um dos aspectos da moral sexual, tanto na sua forma doutrinal quanto na sua forma disciplinar, refere-se ao fato de que somente participam do baquete eucarístico os que estiverem plenamente alinhados à doutrina e à disciplina eclesiástica, os denominados “regulares”. Isto contraria escandalosamente o convite aberto de Jesus à participação no seu Corpo e Sangue.

Percebe-se que o Papa Francisco tem consciência de que a Igreja necessita recuperar a centralidade do evangelho de Jesus. Somente quando isso ocorrer é que teremos uma Igreja mais misericordiosa e, consequentemente, mais inclusiva. Desde o início do seu pontificado, o Papa tem dado abertura às conferências dos bispos no mundo inteiro para que apresentem planos de ação em vista da renovação da Igreja; mas os documentos e assembleias das conferências dos bispos são tímidos e somente repetem os discursos e documentos do Papa. Nas assembleias parecem estar em sintonia com a linha de pensamento e de ação do Papa, mas a prática pastoral das Igrejas Particulares (arquidioceses, dioceses e prelazias) não muda, continua concentrada na sacramentalização.

A prática revela uma Igreja que insiste em continuar voltada para si mesma, em função de seu bem-estar. As instituições e organismos, apesar da carência de revisão, continuam funcionando do mesmo jeito. A imagem e os fragmentos do pensamento teológico do Papa podem ser encontrados em praticamente todos os ambientes eclesiásticos, mas a prática conservadora permanece imutável.

Isoladamente, há mulheres e homens, leigos, religiosos e poucos clérigos, que buscam atuar segundo as novas orientações; mas a maioria continua concentrada na manutenção das velhas estruturas mantenedoras de um jeito de ser e de atuar que não alcança as mulheres e homens, desde o alvorecer da modernidade. Sem nos deixarmos levar pelo pessimismo, mas sendo realistas, precisamos admitir que não assistiremos a mudanças significativas no seio da Igreja a curto prazo. Tais mudanças só acontecerão se a comunhão e a participação, anunciadas no Concílio Vaticano II, forem vivenciadas efetivamente na Igreja, acompanhadas por uma abertura constante aos apelos do Espírito de Deus.

É ilusão pensar que somente os gestos e palavras do Papa são capazes de mudar a forma de pensar e de agir de uma instituição que insiste em olhar para o seu passado, recusando-se, assim, a caminhar olhando para o futuro. A Igreja se esquece facilmente que o Reino de Deus é uma realidade escatológica, portanto, que se encontra parcialmente no presente, rumo à plenitude que está no futuro. Sem renunciar às seguranças que este mundo oferece e, desse modo, sem se entregar à misericórdia de Deus, não há conversão eclesial possível. A realidade mostra que a instituição Igreja continua marchando na história confiando em seu próprio poder; poder capaz de assegurar-lhe uma falsa segurança e uma falsa tranquilidade.

Conclusão

        Cresce no mundo a intolerância, geradora de inúmeros conflitos e mortes. Cada vez mais concentrado na busca pela satisfação de seus próprios interesses, o homem precisa se libertar. Multiplicam-se os atos de terrorismo; as guerras; a violência nas pequenas e grandes cidades; o proselitismo religioso; as ideologias que visam a erradicação daqueles que não tem vez nem voz; as novas formas de conservadorismo na política, nas culturas e na economia; o ressurgimento das doutrinas e práticas fascistas e nazistas; enfim, inúmeras forças de morte que ceifam a vida do homem e da natureza em todo o mundo.

        Estas realidades alarmantes nos falam de uma grave doença: A falta de humanidade. Nenhum cristão está correto ao pensar que Deus salvará a humanidade do caos em um passe de mágica. Isto não vai ocorrer. Os responsáveis pela salvação do planeta Terra são aqueles que nele habitam. Deus não se presta a consertar os gravíssimos erros cometidos pelo homem. Criamos e insistimos em um modelo predatório de pensar e de agir, e já estamos arcando com as consequências de nossa perversidade e de nossas ambições desmedidas. Mas este homem tem nome e rosto.

Não é uma entidade espiritual que está destruindo o mundo. A destruição das pessoas e da natureza está sendo operada por um sistema econômico que é gerenciado pelas grandes corporações financeiras, que crescem e se enriquecem cada vez mais, às custas dos povos e de suas riquezas naturais e culturais.

A besta do Apocalipse hoje são as grandes transnacionais que sugam o sangue de todos os povos, e todos aqueles que lucram com a sua atuação possuem o seu selo. Trata-se de um monstro grandioso capaz de alcançar o mundo inteiro. Parece imortal, mas possui em si o germe de sua própria destruição. Esse monstro possui um câncer que o corrói por dentro, que provoca implosões em várias partes da terra. Este câncer manifestou recentemente a sua nova metástase: O Estado Islâmico. Os Estados Unidos da América, cabeça da besta, geraram o Estado Islâmico em suas prisões, e o Estado Islâmico procura, incansavelmente, devorar a cabeça da besta. A sua ambição é ocupar o lugar desta cabeça, passando, assim, a dominar o mundo inteiro. Se isso vier a acontecer, engrossarão os rios de sangue que já brotam em muitas partes do mundo.

Em nossas experiências particulares e comunitárias de vida e de fé, precisamos recuperar a humildade, a mansidão, o cuidado recíproco e a necessidade do encontro e do reencontro. Apesar do cenário tenebroso e desesperador, Deus, por meio de seu Espírito, permanece presente no mundo. Todas as mulheres e homens precisam, a partir de onde seus pés pisam, manifestar o amor deste Deus. Os sinais de vida e ressurreição presentes na vida de cada pessoa são uma prova de que o Deus e Pai de Jesus não está sentado em um trono, lá nas alturas dos céus, assistindo aos homens se devorarem reciprocamente.

O Espírito de Deus é vida e liberdade, e toda pessoa que se abre à sua ação experimenta desde já a liberdade dos filhos de Deus, sente a vida se manifestando, e caminha na direção de seu fim último: O Reino de Deus, realidade presente e atuante, que está acima do poder do mal, e que no tempo devido se manifestará plenamente e eternamente. Esta é a nossa fé e nossa esperança. É o que Deus nos revela por meio do seu Espírito. Acima da inteligência humana e de seus poderes, está o Espírito, trabalhando na história da humanidade, cumprindo fielmente a missão que lhe foi confiada. Contra a força deste Espírito não há força humana que possa mais. Este é o cerne da revelação cristã na história. Esta é a nossa vocação.

Tiago de França