quarta-feira, 10 de agosto de 2016

MENSAGEM POR OCASIÃO DO MÊS VOCACIONAL (AGOSTO)

CHAMADOS À LIBERDADE

“Se permaneceis na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32).

Introdução

        Anualmente, escrevo uma mensagem aos amigos e comunidades, por ocasião do mês de agosto que, na Igreja Católica, é denominado mês das vocações. À luz da palavra de Deus e dos últimos acontecimentos eclesiais e sociais, neste ano, queremos falar sobre a nossa vocação à liberdade de filhos e filhas de Deus, tendo como referência bíblica o versículo 32 do capítulo 8 do evangelho de Jesus segundo São João. Nosso objetivo é oferecer uma interpretação destas palavras de Jesus, considerando nossa realidade eclesial e social.

1 – Se permaneceis na minha palavra

        O que significa hoje permanecer na palavra de Jesus? A palavra de Jesus é vida e liberdade para todos. Ele não dirigiu a sua palavra a um número isolado de pessoas. A palavra de Jesus é pública e tem uma finalidade pública. Os efeitos da sua palavra são conhecidos por todos. Fiel à missão dada pelo Pai, Jesus pronunciou a palavra de Deus. Ele mesmo é a palavra, o Verbo de Deus. Palavra é ação. Jesus é a ação de Deus para que toda a humanidade reencontre o caminho que conduz à vida.

        A palavra de Jesus, vida e liberdade para todos, é dirigida em primeiro lugar aos pobres. São os pobres que mais precisam desta palavra. E o motivo é simples: São os pobres do povo que precisam de libertação. A escuta e a compreensão da palavra de Jesus constituem fonte de vida e liberdade para os pobres. Somente os pobres compreendem plenamente o sentido da palavra libertadora de Jesus. Os ricos e poderosos são incapazes de compreendê-la porque seus corações estão dominados pelas riquezas. A preocupação em mantê-las e multiplicá-las deixa-os cegos. Este é o motivo que os leva a rejeitar a palavra de Jesus.

        A palavra de Jesus incomoda, desinstala, desmascara, clarifica, desmistifica e consola os corações dos aflitos. É uma palavra geradora de esperança. Ela desperta no coração aflito a coragem necessária para enfrentar os obstáculos da vida. A palavra de Jesus é a força dos pobres, de todos os agoniados espalhados no mundo inteiro. Todos aqueles que escutam esta palavra são capazes de transformar a dor em alegria, o desespero em esperança. Não estamos falando de transformação mágica, mas da ação do Espírito que faz a palavra gerar seus efeitos libertadores no coração de cada crente e na história da humanidade. E a ação do Espírito acontece na ação de cada crente, na sua vontade de se libertar.

        Todo cristão é chamado a permanecer nesta palavra. Permanecer significa estar unido a Jesus. Como nos ensina o apóstolo Paulo: É necessário possuir os mesmos sentimentos de Jesus Cristo. A palavra de Jesus revela não somente os seus sentimentos, como também aponta para o seu projeto. O projeto de Jesus é, na verdade, o projeto do Pai para toda a humanidade. Estamos falando de um projeto de salvação, de restauração de todo homem e do homem todo e de toda a criação. No Cristo, o Pai renovou todas as coisas para que subsistissem à ação do mal do mundo. Em Cristo, o Pai elevou o homem à dignidade de filho de Deus. E o Espírito foi enviado para manter esta dignidade e fazê-lo recordar-se sempre dela.

        A palavra de Jesus está presente na vida daqueles que lutam por libertação. Nas pessoas que padecem por seus sofrimentos, nelas está operando a palavra de Jesus. Na vida dos que são perseguidos por causa da justiça, neles está a palavra. No cotidiano doloroso dos que são mutilados em seus corpos, neles está a palavra. Nas fileiras dos que fogem das guerras, a palavra os acompanha. Nas famílias ameaçadas pelas drogas, que ceifam milhares de jovens anualmente, nelas está a palavra. Nestes e em tantos outros lugares sagrados, o crente pode encontrar Jesus e sua palavra.

Desse modo, o crente não encontra a palavra libertadora de Jesus somente no texto bíblico e nos templos religiosos. Nas Igrejas encontramos a sua proclamação. A palavra de Jesus está operando a libertação fora dos templos religiosos. Para permanecer nela é preciso permanecer nos inúmeros lugares nos quais ela se manifesta. A realidade de nossas Igrejas nos mostra o gravíssimo problema, que não é novo: Inúmeros cristãos pensam que só encontram a palavra de Jesus nas liturgias dos templos religiosos. Infelizmente, os pastores, salvo exceções, não os ajudam a enxergar a palavra que está gerando seus efeitos na carne dos sofredores.

        O Brasil está mergulhado nas crises política e econômica, causadas pelos poderosos. Não foram os pobres do povo que geraram estas crises. Os poderosos (políticos coligados com empresários), com a ajuda da mídia neoliberal, procuram convencer o povo do contrário. Na história das crises políticas e econômicas, os pobres sempre foram e continuam sendo as vítimas. Quem assalta os cofres públicos? Quem vive de sonegação fiscal? Quem vive da especulação financeira? São os poderosos, os que manipulam a ordem política e econômica. As crises revelam os atropelos dos poderosos.

Elas acontecem quando eles falham nos seus projetos de desvios. Esta é a verdade que a mídia não fala. O discurso dos poderosos é tão bem elaborado, que os pobres do povo passam a se sentir responsáveis pelas crises. E o atual ocupante da cadeira presidencial no Brasil confirma o que estamos afirmando, ao dizer publicamente: “Não fale em crise, trabalhe!” Os poderosos provocam as crises e os pobres são acusados de serem os responsáveis por elas e, como tais, devem procurar erradicá-las.

Esta é a explicação para uma compreensão das medidas tomadas pelos governantes em tempos de crise. Todas as medidas visam o empobrecimento daqueles que já são pobres, pois os poderosos lutam para a manutenção de seus privilégios em detrimento da vida dos pobres. Eis o pensamento dos poderosos, que legitima a sua forma de agir: Os pobres nasceram para nos sustentar, e devem fazer isso sem revoltas. Neste sentido, as forças policiais, que manifestam a força bruta do Estado, servem para conter a ira dos pobres que se revoltam. O Estado não está preocupado com a insegurança que afeta os mais pobres, mas com a violência que afeta as propriedades dos poderosos.

Esta é a concepção que está por trás das medidas impopulares que tomam. Para escondê-las, mentem descaradamente. A palavra de Jesus é a verdade, a sua lei é a liberdade. A vida e os projetos dos poderosos constituem uma mentira bem contada; mentira que somente os beneficia. Por isso que Jesus afirmou, categoricamente, no seu evangelho: Os poderosos deste mundo não participam do Reino de Deus. Neste Reino não há lugar para opressores.

2 – Se permaneceis na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos

        Ser discípulo não é ocupar um cargo ou uma condição de poder na Igreja e na sociedade. Ser discípulo é ser seguidor de Jesus. O discípulo é alguém que vive na escuta permanente de seu mestre. Escutar é uma atitude que deve perdurar no tempo, portanto, não se trata de algo pontual e/ou passageiro. Se quiser permanecer no caminho de Jesus, o crente deve escutá-lo com atenção e constância. Atenção porque não se escuta na dispersão. Em cada pessoa e no mundo há outras vozes que falam com certa insistência; vozes sedutoras, que possuem um único objetivo: Desviar o discípulo do caminho de Jesus. Todas estas vozes se resumem no poder sedutor do poder, do prestígio e da riqueza.

        Jesus não oferece absolutamente nada a seus seguidores, mas somente os assegura a participação no Reino de Deus. O caminho de Jesus é totalmente desprovido de qualquer tipo de segurança. O poder, o prestígio e a riqueza oferecem uma falsa segurança. Na verdade, não passam de caminho de morte. Todas as pessoas, sem exceção, que se entregam a tais coisas, somente encontram o caminho da morte. Os poderosos que assaltam os cofres públicos no Brasil encontram a morte. Mesmo aqueles que morrem usufruindo do luxo que tais coisas oferecem, encontram-se com a morte.

Já vivem condenados antes da morte do corpo. Entram para a história como ladrões e assaltantes. Constituem causa de vergonha e confusão para suas famílias. Não passam de sepulcros cheios de podridão. Depois de uma vida podre, são devorados pela morte e transformados em cinzas. Sua existência não passa disso. Na história da política nacional há vários maus exemplos que confirmam o que estamos falando. Para ilustrar, eis o nome de um deles: Antônio Carlos Magalhães, que foi um verdadeiro coronel da política baiana. Praticou a má política com tamanha maestria que até hoje é venerado por milhares de baianos que não tem consciência da boa e necessária política.

        A palavra de Jesus liberta da ambição do poder, do prestígio e da riqueza. O poder sedutor destas coisas é muito forte. O sistema capitalista, com suas ideologias, busca convencer as pessoas da necessidade de serem ambiciosas. A ideologia dominante encerra-se na seguinte sentença: Toda pessoa precisa ser rica, prestigiada e poderosa. Os pobres não gozam de tal riqueza, prestígio e poder; logo, são excluídos. O capitalismo não oferece lugar para todos. A regra é a exclusão e não a inclusão. Tem valor quem tem muito dinheiro para consumir, competir e lucrar. Estes são os verbos que revelam o sistema.

Os pobres são destituídos de poder aquisitivo suficiente para o consumo, a competição e o lucro; mas para não excluí-los totalmente, o mercado capitalista fabrica inúmeras mercadorias para despertar o desejo de consumir. O capitalismo descobriu que os pobres são uma fonte inestimável de riqueza. É preciso tirar o pouco dinheiro que os pobres possuem, e a forma mais eficaz para fazer isso é levando-os ao consumo de coisas supérfluas e descartáveis. Busca-se manter os pobres na pobreza (pobreza no sentido de falta de uma vida digna). O capitalismo é um sistema financeiro que visa manter a riqueza nas mãos dos poderosos. São estes que gerenciam o sistema.

O discípulo sabe, por revelação divina, que deve seguir Jesus neste mundo, sem fugas e sem medo, numa entrega total à vontade de Deus. No seguimento a Jesus, o discípulo descobre que Deus é a sua segurança. Sabe que Deus é o seu Pastor, a sua proteção. Afirmar que Deus é a segurança do discípulo significa que este está permanentemente exposto aos riscos inerentes à missão. Portanto, a incompreensão, as ameaças, as perseguições e a morte não constituem surpresa nem motivo para ter medo. Como ser humano que é, sente na carne a angústia de tais circunstâncias, mas a fidelidade a Jesus o leva, em muitos casos, à divina experiência do martírio. O martírio é a experiência por excelência do amor de Deus.

O discípulo, unido ao mestre Jesus, permanece fiel até às últimas consequências. Esta fidelidade é puro dom de Deus. Confiando na palavra de Jesus, jamais é desiludido. Aprende com a fidelidade de Jesus ao Pai a ser fiel na sua missão. A verdade e a liberdade da palavra de Jesus são a fonte na qual o discípulo encontra a verdade de si mesmo e a própria liberdade. Neste sentido, o discípulo é alguém livre: Já não é mais escravo de ninguém, inclusive é livre em relação ao próprio Deus, pois Deus não quer escravos, mas filhos. Livre da opressão das próprias tendências instintivas; livre da opressão dos poderosos deste mundo; livre das imposições das prescrições religiosas e civis; enfim, livre dos apegos geradores de inúmeras formas de sofrimento.

A liberdade oriunda da palavra libertadora de Jesus não é a liberdade dos pensadores (filósofos), que, muitas vezes, conduzem a um certo intimismo. Não é a liberdade dos anacoretas, que, no deserto procuram a perfeição pessoal. A liberdade experimentada e transmitida por Jesus é a liberdade do missionário que se coloca a serviço do próximo. O discípulo é livre na missão e para a missão. Esta missão é desenvolvida no seio do povo de Deus.

Jesus não indica o isolamento como lugar do homem livre. Este deve viver no seio do povo de Deus em marcha, lutando para a libertação deste povo. Não é a liberdade dos homens de hoje, que pensam ser livres porque fazem o que bem querem de suas vidas. A liberdade do homem atual não conhece a responsabilidade para com o outro. Trata-se de uma liberdade que desconhece a alteridade. A consequência natural desse tipo de liberdade é a libertinagem. Quem pratica a libertinagem, pensando ser uma pessoa livre, sempre acha que pode fazer o que quiser da própria vida e da vida do outro. Na verdade, não passa de um escravo de si mesmo e dos outros.

        Não há discípulo no isolamento, na solidão. Até os que vivem na vida monástica, vivem em comunidade. Ainda podemos encontrar alguns monges, vivendo na solidão do deserto. Esta é uma vocação bem específica; mas a regra é a vida comunitária. Jesus saiu do seio da Trinidade, a divina comunidade de amor para assumir a sua missão no mundo, e a assumiu em comunidade, formando um grupo de mulheres e homens, seus discípulos missionários. Os primeiros discípulos compreenderam bem esta dimensão comunitária do seguimento e seguiram os passos de seu mestre, fundando e animando comunidades de seguidores de Jesus.

        A Igreja, continuadora do novo povo de Deus renovado no sangue de Jesus, pretende ser esta assembleia (ekklesia, do grego) de fiéis seguidores de Jesus. Dentro dela, o poder é um elemento presente, que tem causado, ao longo dos séculos, muitas divisões e conflitos. Os homens sedentos de poder, passaram a buscá-lo também dentro das comunidades religiosas. Surgiu uma hierarquia para dividir o poder em graus: diácono, presbítero, bispo. Posteriormente, surgiram os títulos: cônego, monsenhor, chanceler, cardeal, secretário, presidência de organismos eclesiásticos como, por exemplo, a Secretaria de Estado do Vaticano etc. Nas congregações religiosas há inúmeros graus e títulos de poder. E o voto de obediência na Vida Religiosa surgiu, inicialmente, com o objetivo de os religiosos respeitarem e obedecerem aos seus superiores em vista da coesão da comunidade.

        No genuíno seguimento de Jesus, o discípulo somente obedece a Deus, e Deus lhe concede os dons do discernimento e da visão. A visão da ação de Deus no mundo e o necessário discernimento para viver livre da ilusão e da confusão são dons do Espírito de Deus. Este Espírito fala ao coração do discípulo. Esta fala se manifesta nos acontecimentos que constituem as lutas por libertação. 

Em toda parte, há mulheres e homens em processo de libertação, e neste processo o discípulo enxerga o Espírito atuando. Nas lutas por libertação, o Espírito se coloca ao lado daqueles que são fracos e oprimidos. Estes sabem que somente podem contar com o auxílio divino, que jamais os abandona no caminho que conduz à vida e à liberdade. O Espírito é a força dos oprimidos e é o guia do discípulo na missão.

3 – Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará

        Quem permanece na palavra de Jesus conhece a verdade e encontra a liberdade. A verdade do evangelho não é uma ideologia, capaz da mera persuasão. Jesus não deixou um sistema de pensamento, como fazem filósofos. Jesus não se preocupou em escrever uma doutrina. Esta não era a sua missão. Alguns de seus seguidores registraram parte de suas palavras e gestos. Registraram o essencial. Preocuparam-se em transmitir o núcleo da mensagem de Jesus: O significado e alcance do Reino de Deus.

Diferentemente de muitos mestres, Jesus não criou instituições, rituais, normas e hierarquias. A preocupação de Jesus era viver conforme a vontade do Pai, revelando o seu amor pelos últimos deste mundo. Suas palavras e gestos manifestaram a misericórdia de Deus. Manifestar a presença misericordiosa de Deus no mundo, anunciando, assim, o Reino de Deus: Esta foi a sua missão. Este anúncio o levou ao madeiro da cruz e, após a sua morte ressurgiu gloriosamente, manifestando, assim, o destino último do ser humano.

O anúncio da palavra de Jesus foi confiado à comunidade de seus seguidores no mundo inteiro. O que denominamos Igreja é a reunião de todos os seguidores de Jesus em todas as Igrejas. Também fora destas encontramos seguidores de Jesus, que manifestam o seu amor no meio do mundo (cristãos anônimos). O abandono deste anúncio constitui o abandono da fé em Jesus, pois não há fé sem anúncio.

Todas as Igrejas cristãs precisam retomar o conteúdo do mandato missionário de Jesus: O anúncio da Boa Notícia. A história do cristianismo nos mostra os desvios, sendo o abandono do evangelho o maior deles. O poder, o prestígio e a riqueza não podem ocupar o centro da vida eclesial. Quando isso ocorre, o evangelho deixa de ser o essencial da missão eclesial.

A verdade que liberta o discípulo é o evangelho, Boa Notícia de Deus para toda a humanidade. A verdade é o conjunto das palavras e gestos de Jesus. E Jesus é a soma de suas palavras e seus gestos. Portanto, o evangelho é o próprio Jesus, a verdade revelada para a salvação de toda a humanidade. Jesus, verdade do Pai, é o único capaz de renovar a face da terra, fazendo com que todos possam reencontrar a vida em plenitude.

O discípulo faz a experiência de encontro com esta verdade libertadora e, pelo anúncio, a transmite aos outros. Não se trata de transmitir um conjunto de verdades dogmáticas, mas de transmitir a alegria de ter encontrado Jesus. A alegria do discípulo não é a alegria do mundo, oriunda dos prazeres passageiros, mas a alegria de quem se encontrou com Jesus, a verdadeira alegria.

Atualmente, na Igreja Católica se assiste a um embate entre o Papa Francisco e uma ala conservadora da instituição. Vamos pensar este embate para compreendermos o lugar do evangelho na vida eclesial. Depois do Papa João XXIII, de santidade reconhecida pela Igreja, o Papa Francisco é o Papa que mais tem se preocupado com a questão da centralidade do evangelho na vida eclesial. Seus gestos e palavras falam desta preocupação. Defender a centralidade do evangelho é falar da centralidade dos pobres na vida da Igreja, pois os pobres se encontram no centro do evangelho de Jesus. E o Papa sabe muito bem disso. Ele parece consciente das consequências de se colocar o evangelho de Jesus no centro da vida da Igreja.

Muito antes do Papa Francisco, já se falava da centralidade do evangelho e dos pobres. O evangelho e os pobres sempre estiveram nos discursos oficiais dos papas e nos documentos oficiais da Igreja. Então, não estaria resolvido o problema da evangelização da Igreja? De modo algum. O problema não se encontra nos discursos e nos documentos, que são rigorosamente elaborados. Mas não podemos confundir discursos e documentos com evangelização. Eles podem ajudar, mas não constituem o anúncio do evangelho.

Jesus não pediu aos discípulos para elaborarem uma complexa e rigorosa doutrina para oferecê-la ao mundo, mas os enviou para anunciar o evangelho da liberdade. A prática eclesial nos mostra que os discursos e documentos passam. Quando coerentes com a prática de seus autores, podem até convencer os interlocutores; mas, no geral, o povo não dar ouvidos a discursos e não ler documentos eclesiásticos. Discursos e documentos estão para os cristãos mais piedosos e para os estudantes do curso de teologia católica. Para viver o evangelho, o povo não precisa de documentos. Estes estão em função da normatividade institucional. O anúncio do evangelho é outra coisa, totalmente diferente.

Recentemente, desde que chegou à “cátedra de Pedro”, o Papa Francisco tem enfrentado opositores ferrenhos. É verdade que ele não fez nenhuma mudança substancial na doutrina eclesiástica, assim como não efetivou nenhuma mudança radical nas estruturas de poder da Igreja. Tanto a doutrina quanto as estruturas permanecem intocáveis. A pirâmide da hierarquia há séculos permanece a mesma. É imutável como os dogmas.

O primeiro ponto que o Papa tem insistido se refere à pobreza da Igreja. Na instituição Igreja, todos os que exercem o poder em função de seus interesses e privilégios, não se sentem bem ao escutar a palavra pobreza (pobreza no sentido de vida despojada). Para os conservadores ricos de poder e de riqueza (clérigos, principalmente), Jesus teve uma ligação assistencialista com os pobres. Eles entendem que Jesus manda ajudar os pobres, e nada mais. Tornar-se pobre e se colocar a serviço dos pobres não passa de ideologia comunista. Os conservadores não enxergam aí o evangelho.

É muito raro encontrar na Igreja um conservador que aceite viver como Jesus viveu: na simplicidade e na pobreza. Quase a totalidade dos conservadores leva uma vida de gente rica, cercada de todas as seguranças possíveis: carros (alguns de luxo); habitações excessivamente confortáveis; planos de saúde caros; adereços caros (relógios, pulseiras, roupas, sapatos de marca), cursos (há mestres, doutores e poliglotas que o são somente por vaidade) e viagens para o exterior; muito dinheiro em contas bancárias (em nome próprio ou em nome de suas instituições); propriedades imensas e valiosas (em nome próprio ou em nome de suas instituições) etc.

Entre os que se denominam progressistas também podemos encontrar pessoas ricas, muito ricas. Pessoalmente, conheço padres e bispos que gozam de todos estes privilégios, assim como muitos leigos, tanto entre os que se denominam conservadores quanto entre os que se intitulam progressistas. Toda essa gente se diz seguidora de Jesus, mas na verdade somente veneram Jesus. Com Jesus possuem uma relação de devoção particular e, assim, rejeitam a sua mensagem libertadora.

Por isso que, certa vez, Jesus disse que nem todo aquele que invoca seu nome entrará no Reino de Deus. Os que vivem apegados ao poder, prestígio e riqueza não reconhecem Jesus como salvador nem conseguem compreender a sua mensagem. Nos templos religiosos, podem até escutar a proclamação do evangelho, mas o fazem por mera tradição. Quem pratica religião por tradição não se converte, não se torna cristão.

Outro ponto tocado pelo papa é o da inclusão dos excluídos, daqueles que constituem as “minorias abraâmicas” (expressão do santo bispo Helder Câmara). Certa vez, sendo entrevistado por jornalistas em uma de suas viagens de retorno ao Vaticano, o Papa Francisco afirmou que não podemos julgar e condenar as pessoas homoafetivas (uma das minorias presente em todo o mundo). Recomendou que a Igreja deve compreendê-las e acolhê-las, pois somente Deus as pode julgar.

Esta fala e recomendação do Papa repercutiu bastante, pois vão na contramão da doutrina expressa no Catecismo da Igreja, que condena, veementemente, os atos homoafetivos. A condenação destes atos também constitui a condenação de quem os pratica. Quem discorda, precisa pensar a respeito do seguinte: Por que um heterossexual pode praticar atos heteroafetivos sem pecar e um homossexual não pode praticar atos homoafetivos? A homossexualidade se encerra nos atos homoafetivos? Por que estes atos são pecaminosos? As respostas oriundas dos especialistas em moral sexual católica, com exceção dos mais reciclados, não convencem ninguém, nem justificam a postura tradicional da Igreja. A posição que vigora somente reforça atos de violência contra os homossexuais, que se multiplicam assustadoramente.

Cremos que a instituição precisa repensar melhor sua forma de pensar o tema à luz da genuína doutrina da encarnação de Jesus. Trata-se de uma questão complexa sobre a qual podemos discorrer em outra oportunidade. O Papa não tocou na doutrina, não a modificou. Simplesmente fez como Jesus diante da pecadora ameaçada de apedrejamento em praça pública: Não condenou, mas recomendou a compreensão e o acolhimento.

A tendência ao conservadorismo é tão presente na vida da Igreja, que a fala do Papa foi considerada escandalosa. No Brasil, assim como na maior parte do mundo, os homossexuais são julgados e condenados pelas pessoas, tanto dentro quanto fora das denominações religiosas. Inúmeros são agredidos nos espaços públicos e privados. Dentro e fora das Igrejas cristãs é incontável o número de crentes que consideram a homossexualidade um desvio moral gravíssimo.

Muitos afirmam que se trata de uma tendência doentia, digna de cura física e espiritual. Segundo os homofóbicos mais radicais, os homossexuais devem ser extintos da face da terra, pois são considerados como que uma praga terrível que contamina a espécie humana. Nos meios eclesiásticos mais conservadores, julga-se e condena-se os homossexuais em nome de Deus, mesmo diante de um número significativo de clérigos, religiosos e leigos com tendências homoafetivas radicadas e não radicadas. Os que julgam e condenam ainda não foram libertos pela palavra de Jesus, que proíbe o julgamento e a condenação das pessoas.

Quer aceitemos, quer não, a palavra de Jesus não autoriza nenhuma pessoa a julgar e condenar quem quer que seja. O que Jesus nos adverte é que seremos medidos da mesma maneira com que medirmos as pessoas. Em Cristo, somos irmãos, e não juízes uns dos outros. Esta é a palavra que permanece e é válida para todos os que seguem Jesus. Nossos preconceitos e conveniências não estão acima da palavra de Jesus. Não existe meio termo. O evangelho é bastante claro e objetivo neste ponto.

Há outros pontos a serem considerados no magistério do atual Papa, que no breve espaço destas meditações não podem ser devidamente explicitados. Os que foram mencionados ilustram bem a linha de pensamento e de ação de Francisco, Bispo de Roma. São posturas contrárias a algumas das tradições da Igreja. Os Papas João Paulo II e Bento XVI, os mais conservadores dos tempos pós-Concílio Vaticano II, em matéria de moral sexual, reforçaram a doutrina tradicional, que mais exclui que inclui as pessoas. Um dos aspectos da moral sexual, tanto na sua forma doutrinal quanto na sua forma disciplinar, refere-se ao fato de que somente participam do baquete eucarístico os que estiverem plenamente alinhados à doutrina e à disciplina eclesiástica, os denominados “regulares”. Isto contraria escandalosamente o convite aberto de Jesus à participação no seu Corpo e Sangue.

Percebe-se que o Papa Francisco tem consciência de que a Igreja necessita recuperar a centralidade do evangelho de Jesus. Somente quando isso ocorrer é que teremos uma Igreja mais misericordiosa e, consequentemente, mais inclusiva. Desde o início do seu pontificado, o Papa tem dado abertura às conferências dos bispos no mundo inteiro para que apresentem planos de ação em vista da renovação da Igreja; mas os documentos e assembleias das conferências dos bispos são tímidos e somente repetem os discursos e documentos do Papa. Nas assembleias parecem estar em sintonia com a linha de pensamento e de ação do Papa, mas a prática pastoral das Igrejas Particulares (arquidioceses, dioceses e prelazias) não muda, continua concentrada na sacramentalização.

A prática revela uma Igreja que insiste em continuar voltada para si mesma, em função de seu bem-estar. As instituições e organismos, apesar da carência de revisão, continuam funcionando do mesmo jeito. A imagem e os fragmentos do pensamento teológico do Papa podem ser encontrados em praticamente todos os ambientes eclesiásticos, mas a prática conservadora permanece imutável.

Isoladamente, há mulheres e homens, leigos, religiosos e poucos clérigos, que buscam atuar segundo as novas orientações; mas a maioria continua concentrada na manutenção das velhas estruturas mantenedoras de um jeito de ser e de atuar que não alcança as mulheres e homens, desde o alvorecer da modernidade. Sem nos deixarmos levar pelo pessimismo, mas sendo realistas, precisamos admitir que não assistiremos a mudanças significativas no seio da Igreja a curto prazo. Tais mudanças só acontecerão se a comunhão e a participação, anunciadas no Concílio Vaticano II, forem vivenciadas efetivamente na Igreja, acompanhadas por uma abertura constante aos apelos do Espírito de Deus.

É ilusão pensar que somente os gestos e palavras do Papa são capazes de mudar a forma de pensar e de agir de uma instituição que insiste em olhar para o seu passado, recusando-se, assim, a caminhar olhando para o futuro. A Igreja se esquece facilmente que o Reino de Deus é uma realidade escatológica, portanto, que se encontra parcialmente no presente, rumo à plenitude que está no futuro. Sem renunciar às seguranças que este mundo oferece e, desse modo, sem se entregar à misericórdia de Deus, não há conversão eclesial possível. A realidade mostra que a instituição Igreja continua marchando na história confiando em seu próprio poder; poder capaz de assegurar-lhe uma falsa segurança e uma falsa tranquilidade.

Conclusão

        Cresce no mundo a intolerância, geradora de inúmeros conflitos e mortes. Cada vez mais concentrado na busca pela satisfação de seus próprios interesses, o homem precisa se libertar. Multiplicam-se os atos de terrorismo; as guerras; a violência nas pequenas e grandes cidades; o proselitismo religioso; as ideologias que visam a erradicação daqueles que não tem vez nem voz; as novas formas de conservadorismo na política, nas culturas e na economia; o ressurgimento das doutrinas e práticas fascistas e nazistas; enfim, inúmeras forças de morte que ceifam a vida do homem e da natureza em todo o mundo.

        Estas realidades alarmantes nos falam de uma grave doença: A falta de humanidade. Nenhum cristão está correto ao pensar que Deus salvará a humanidade do caos em um passe de mágica. Isto não vai ocorrer. Os responsáveis pela salvação do planeta Terra são aqueles que nele habitam. Deus não se presta a consertar os gravíssimos erros cometidos pelo homem. Criamos e insistimos em um modelo predatório de pensar e de agir, e já estamos arcando com as consequências de nossa perversidade e de nossas ambições desmedidas. Mas este homem tem nome e rosto.

Não é uma entidade espiritual que está destruindo o mundo. A destruição das pessoas e da natureza está sendo operada por um sistema econômico que é gerenciado pelas grandes corporações financeiras, que crescem e se enriquecem cada vez mais, às custas dos povos e de suas riquezas naturais e culturais.

A besta do Apocalipse hoje são as grandes transnacionais que sugam o sangue de todos os povos, e todos aqueles que lucram com a sua atuação possuem o seu selo. Trata-se de um monstro grandioso capaz de alcançar o mundo inteiro. Parece imortal, mas possui em si o germe de sua própria destruição. Esse monstro possui um câncer que o corrói por dentro, que provoca implosões em várias partes da terra. Este câncer manifestou recentemente a sua nova metástase: O Estado Islâmico. Os Estados Unidos da América, cabeça da besta, geraram o Estado Islâmico em suas prisões, e o Estado Islâmico procura, incansavelmente, devorar a cabeça da besta. A sua ambição é ocupar o lugar desta cabeça, passando, assim, a dominar o mundo inteiro. Se isso vier a acontecer, engrossarão os rios de sangue que já brotam em muitas partes do mundo.

Em nossas experiências particulares e comunitárias de vida e de fé, precisamos recuperar a humildade, a mansidão, o cuidado recíproco e a necessidade do encontro e do reencontro. Apesar do cenário tenebroso e desesperador, Deus, por meio de seu Espírito, permanece presente no mundo. Todas as mulheres e homens precisam, a partir de onde seus pés pisam, manifestar o amor deste Deus. Os sinais de vida e ressurreição presentes na vida de cada pessoa são uma prova de que o Deus e Pai de Jesus não está sentado em um trono, lá nas alturas dos céus, assistindo aos homens se devorarem reciprocamente.

O Espírito de Deus é vida e liberdade, e toda pessoa que se abre à sua ação experimenta desde já a liberdade dos filhos de Deus, sente a vida se manifestando, e caminha na direção de seu fim último: O Reino de Deus, realidade presente e atuante, que está acima do poder do mal, e que no tempo devido se manifestará plenamente e eternamente. Esta é a nossa fé e nossa esperança. É o que Deus nos revela por meio do seu Espírito. Acima da inteligência humana e de seus poderes, está o Espírito, trabalhando na história da humanidade, cumprindo fielmente a missão que lhe foi confiada. Contra a força deste Espírito não há força humana que possa mais. Este é o cerne da revelação cristã na história. Esta é a nossa vocação.

Tiago de França

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