quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Ir além... Pensamentos (XXXV)

Feliz a pessoa que descobriu que é preciso ir além de si mesma. É da essência humana essa caminhada. É algo extraordinário e indescritível. É divinamente humano.

Tiago de França

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Compreender e conviver

     
        Nas aulas de introdução à filosofia, conversava com meus alunos sobre a importância da compreensão para a convivência humana. Em uma sociedade marcada pela intolerância, a compreensão é elemento fundamental para que as pessoas possam conviver em paz. Somente haverá a chamada cultura do encontro se houver compreensão entre os sujeitos que compõem o corpo social. De forma sucinta, discorreremos sobre alguns aspectos da dinâmica da compreensão nas relações interpessoais. Nosso objetivo é oferecer algumas provocações para que o leitor possa repensar o seu modo de se relacionar com as pessoas.

        Não pode existir compreensão sem uma prévia disposição interna por parte das pessoas. Quem não se dispõe a compreender o outro, não chega a relacionar-se bem com ninguém. Portanto, é necessário querer compreender. Trata-se de uma atitude interior, que conduz a pessoa para o caminho da compreensão. Sem este querer, tudo se torna embaraçoso e entravado. As coisas tendem a fluir quando a pessoa está motivada a compreender o próximo.

        A sociedade atual, marcadamente violenta, tende a desmotivar e bloquear o surgimento da compreensão. Há um movimento ideológico muito forte que induz as pessoas a pensar que não vale a pena apostar na compreensão. Fala-se, implícita e explicitamente, que compreender o outro é atitude de gente boba, fraca e sem personalidade. E é assim porque ser violento, no sentido de impor determinadas ideias e comportamentos, passou a ser considerado algo normal. Hoje, forte é aquele que se impõe sobre o outro, impedindo-o de ser livre.

        Assim, é necessário que haja um outro movimento contrário, certamente superior, não somente em dignidade e força, mas na capacidade de assegurar resultados dignos do ser humano enquanto tal. Estamos falando do movimento de resistência contra esta onda fortíssima das ideologias de dominação. Precisamos compreender este fenômeno vergonhoso do nosso tempo. As ideologias de dominação tiram a capacidade de pensar de milhões de pessoas, e a grande mídia está a seu serviço. Estamos falando de um avassalador movimento de domesticação das pessoas.

        A compreensão surge de uma consciência livre e amadurecida. Conscientes daquilo que se passa no mundo, da teia complexa de relações, ideologias e interesses, as pessoas conseguem enxergar com clareza a si mesmas, bem como se identificam com aquilo que realmente edifica e/ou constrói. Em outras palavras, a compreensão não pode surgir em um horizonte confuso, marcado pelo bombardeio da mentira e da ilusão. Compreensão exige serenidade, análise, mansidão, concentração e paciência.

        Tudo o que acontece em todos os âmbitos da vida humana está sujeito à compreensão. Desta nada pode escapar. Não há acasos nem destino traçado. Na verdade, vivemos no mundo das possibilidades, das novidades e do chamamento constante aos desafios a serem superados. Tudo tem suas causas e seus efeitos. A vida está no encontro e no desencontro, na convergência e na divergência, na aceitação e na resistência. Quem se dispõe a compreender as pessoas e suas circunstâncias precisa se dispor, sobretudo, à abertura para aquilo que está sempre além do mesmo ou da mesmice. Neste sentido, compreender é ter a ousadia de constatar e pensar naquilo que está além de nossa mediocridade.

        A pessoa bitolada, encerrada em seu horizonte curto de visão, não consegue jamais compreender o outro. O homem atual conseguiu descobrir e manipular muitas coisas. A ciência evoluiu significativamente. Muitas coisas boas e úteis se tornaram acessíveis para o bem de muitos. Mas, simultaneamente, assistimos ao reino da ignorância dominando milhões de pessoas em todo o mundo. Onde reinam as trevas da ignorância não há o salutar exercício da compreensão. Uma pessoa ignorante é uma pessoa fechada à compreensão, portanto, sofre de um mal gravíssimo: o mal da mediocridade.

        Por fim, é preciso considerar outro aspecto que se destaca quando falamos da virtude da compreensão: o desafio de colocar-se no lugar do outro. Deve existir um sincero interesse de saber o que se passa com o outro, para conhecer as motivações que o levam a ser do jeito que é. Geralmente, o outro sempre tem seus motivos que justificam, ou explicam o seu modo de proceder. Quando julgamos determinada pessoa, cometemos o pecado de reduzi-la ao fato ocorrido, esquecendo-nos de enxergar o contexto, e de saber das razões ou motivações da sua ação. É assim porque nossa preguiça mental nos impede de fazermos análises profundas das coisas. Assim procedendo, cometemos dois erros: ou caímos no reducionismo, ou na generalização apressada. Aí também aparece o julgamento precipitado.

        O outro clama por nossa compreensão. Em relação a ele, também nós imploramos a mesma coisa. Esse desejo recíproco por compreensão é inerente ao ser humano. Uma vez satisfeito, este desejo é elemento fundamental na construção da paz. Esta, por sua vez, é filha da cultura do encontro. Compreender não é sinônimo de concordar com aquilo que vai contra os nossos princípios e valores. Compreender é aceitar a realidade como ela é, como ela se apresenta, aceitando-a na sua integralidade. Pessoas compreensivas são verdadeiramente humanas porque permanecem de mãos estendidas e de braços abertos. Não lhes falta a sensibilidade necessária para que se mantenham assim. A própria compreensão faz brotar a sensibilidade.

        Para erradicarmos a intolerância que promove a cultura da eliminação do outro, precisamos, urgentemente, apostar em nossa capacidade de compreender a realidade e as pessoas nela inseridas. Sem compreensão não há ação consciente e benéfica. Não há também resistência contra tudo aquilo que nos desumaniza. Para combater a mentira que tende a dominar o mundo, precisamos ter a serenidade e a sensibilidade necessárias para análises críticas e comprometidas com a justiça e o bem comum.

O mundo carece de pessoas que ousam compreender para, assim, crer na construção de um mundo mais justo e fraterno. Compreendendo, crendo e agindo na esperança podemos ir longe, libertando-nos, definitivamente, do perigoso espírito da mediocridade, que tem aprisionado tanta gente no mundo, impedindo-as de serem felizes. Pessoas medíocres não compreendem as outras e, dessa forma, tendem a não permitir que estas também sejam felizes. Sejamos, pois, compreensivos em vista do bem viver.

Tiago de França

sábado, 11 de fevereiro de 2017

A justiça do Reino de Deus

“Eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5, 20).

        A justiça é um tema muito caro à Sagrada Escritura. Deus é Justo e Bom: eis a revelação que esta Escritura nos faz conhecer. Somente Deus goza plenamente desses adjetivos. E é assim porque o próprio Deus é a plenitude da justiça e da bondade. Pela fé, o crente participa da bondade e da justiça divinas. Esta participação torna-o membro do Reino de Deus. Pela graça, Deus envolve seus filhos e filhas numa comunhão plena, fazendo-os conhecer o sentido e o alcance do seu amor, da sua bondade e justiça. Esta é a dinâmica da participação do crente no belíssimo mistério que se revelou na história da salvação.

        Qual o conteúdo da justiça do Reino de Deus? Na vida cotidiana, qual a repercussão prática da crença nesta justiça? A realidade do mundo atual carece de mulheres e homens dispostos à prática da justiça do Reino de Deus. Em primeiro lugar, é preciso considerar que não estamos falando da justiça dos homens: imperfeita e, muitas vezes, tendenciosa. A justiça divina tem a marca da perfeição e da misericórdia. Deus não é um Juiz impiedoso, mas um Pai amoroso e justo, paciente e misericordioso. Sua lei é o amor, e sua justiça consiste na prática deste amor.

        O que a justiça do Reino de Deus fala ao cristão atual? O cristão atual está rodeado pela tentação do desvio e da descrença. O desespero tem tomado conta do mundo. Há uma enxurrada diária de más notícias, que vai tirando a esperança do coração de inúmeras pessoas. O sistema capitalista está cada vez mais seduzindo e coisificando as pessoas. Poucas conseguem escapar de suas garras.

A maioria da humanidade está dominada pelo vírus da sede de poder, prestígio e riqueza. Geralmente, procuram tudo, menos a justiça do Reino. Apegam-se a tudo, e abandonam o amor. Há muita morte por sufocamento: as pessoas morrem sufocadas em um estilo desumano de vida, alicerçado no consumo e no apego a sentimentos ruins, situações conflituosas e bens materiais supérfluos. No plano das relações interpessoais, ser justo significa reconhecer o lugar do outro, vendo-o e tratando-o como amigo e companheiro de caminhada, não como um inimigo a ser eliminado. A justiça divina nos ensina a superarmos a cultura da eliminação do outro.

        O que a justiça do Reino de Deus fala às pessoas enquanto membros do corpo social? A missão cristã no mundo é essencialmente política. Não falamos da política partidária, que tem a sua importância quando bem praticada. Mas falamos da política como participação crítica e pacífica nos rumos da vida social. Tomar a decisão de não participar da dimensão política da vida em sociedade é uma decisão que descreve a antipolítica. Portanto, uma escolha que representa verdadeiro desserviço ao corpo social.

Todo cidadão é chamado a exercer a sua cidadania, e este exercício passa, necessariamente, pela participação na vida social. Para sermos cristãos justos na sociedade não podemos fugir da política. Na verdade, ninguém consegue tal intento. Ao nascermos numa sociedade pré-estabelecida já nos tornamos sujeitos políticos, agentes políticos, mulheres e homens da ação política. Em sociedade, esta é a missão do cristão. Negar-se a esta missão é um pecado gravíssimo. Trata-se de um pecado muito superior a tantos outros reconhecidos como graves no seio da vida eclesial.

Por fim, cabe-nos perguntar: O que a justiça do Reino de Deus, revelada em Jesus de Nazaré, tem a dizer às Igrejas e/ou denominações religiosas que formam o Cristianismo? Infelizmente, precisamos reconhecer, com toda a humildade, que nossas Igrejas estão ocupadas com a própria sobrevivência. Todos os esforços estão concentrados na obsessiva preocupação pela sobrevivência das instituições religiosas. A todo custo procura-se salvá-las. Enquanto isso, a mensagem de Jesus fica marginalizada. O que fizeram com a mensagem de Jesus? Ocultaram-na, transformando-a noutra coisa. Há pouco anúncio, e muito proselitismo religioso.

Na Igreja Católica, o Papa Francisco tem apontado para o coração da mensagem de Jesus: o Reino de Deus. O Papa tem falado do amor, da justiça e da misericórdia de Deus. É incansável na missão de promover a unidade cristã, respeitando a pluralidade das expressões religiosas. Tem anunciado a Boa Notícia do Amor. Suas palavras e gestos falam da bondade de um Pai que abraça a todos, especialmente os pecadores arrependidos. Mas nesta mesma instituição religiosa, há aqueles que acham que o Papa, com estas atitudes, que são as mesmas de Jesus de Nazaré, está cometendo heresias.

Há quem esteja fazendo uma verdadeira campanha para tentar deslegitimá-lo. Na Europa e em outros lugares, há até cardeais que tem participado desta campanha diabólica. Os filhos de Deus promovem a unidade, e os que seguem o diabo promovem a divisão e a confusão no seio do povo de Deus. Sempre foi assim, desde os tempos antigos. O diabo é o pai da mentira e da divisão, e todos aqueles que semeiam mentira e confusão são seus filhos. Este foi o ensinamento deixado por Jesus segundo o que está escrito no evangelho de João. Na comunidade eclesial, o cristão é chamado a praticar a justiça do Reino, amando a Deus e ao próximo, seja este quem for, pois todos, sem exceção, são filhos e filhas de Deus em Cristo Jesus na força do Espírito Santo.

Tiago de França

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Ser sal e luz

“Vós sois o sal da terra. Vós sois a luz do mundo” (Mt 5, 13. 14).

        Sem o sal, o alimento se torna impróprio. Comida sem sal é sem gosto, ninguém gosta. Mas não se pode colocar muito para não ficar salgada. É preciso saber a medida certa. Assim, eis o convite de Jesus: somos chamados a ser sal, na medida certa. Não podemos ser insossos nem salgados, mas pessoas de bom gosto, no sentido de sermos, na vida do outro, uma presença que dá gosto, que o ajuda a encontrar-se consigo mesmo e com Jesus.

        A pessoa insossa é aquela que não se posiciona nem se compromete. O mundo está cheio de gente assim: que nada faz e tudo critica; em tudo enxerga defeito, mas nada propõe. Juntamente com elas estão as que são salgadas: são aquelas demasiadamente desproporcionais. Em outras palavras, pessoas que não tem paz de espírito e tendem a tirar a paz do espírito do outro. Impaciência, inquietação, pressa, ausência de discernimento e outros males fazem parte de suas vidas.

        Alargando o horizonte de compreensão da citação evangélica, Jesus nos pede para irmos para além de nós mesmos. Ele nos chama e envia. Quem nele crê se compromete com o Reino de Deus. Assumir este compromisso e manter-se fiel até as últimas consequências: isto é ser sal e luz do mundo. O Reino de Deus acontece no cotidiano de nossas vidas: na oração pessoal e comunitária, no encontro e reencontro com as pessoas, no abraço fraterno, na partilha do pão, no compartilhar das tristezas e alegrias, angústias e esperanças.

        Ser sal da terra e luz do mundo é abraçar o estilo de vida de Jesus: um estilo de vida livre e libertador. Amar como Jesus amou revela o seu jeito de ser e de viver. É o amor que expressa fielmente a pessoa e a mensagem de Jesus. Não precisamos recorrer à letra da lei, ao espírito da lei nem à sistemática dos dogmas. Estas coisas podem falar de Jesus, mas é o amor o centro de sua vida e do seu projeto. Na qualidade de seguidores de Jesus, quando nos entregamos ao amor, amando o próximo como Jesus amou, estamos sendo, de fato, sal da terra e luz do mundo.

        Como Jesus amou as pessoas? O que podemos aprender com a sua experiência amorosa? Vamos ousar algumas afirmações à luz do seu Evangelho. Jesus amou na e para a liberdade. É assim porque somente o amor liberta. Não são as normas que criamos em nossas religiões que nos aproximam de Deus. O que nos faz, simultaneamente, humanos e divinos é o amor. Amor de atos, não de palavras e/ou discursos. As pessoas se cansaram dos discursos e documentos eclesiásticos, mas esperam que sejamos amorosos. Quando amamos, cumprimos a lei e estamos em plena comunhão com Deus. Assim viveu Jesus. Fora do amor não há comunhão com Deus e com o próximo.

        Nos meios eclesiásticos, na Igreja Católica, bem como nas demais denominações religiosas cristãs, há uma excessiva preocupação pela observância dos preceitos religiosos. Há regra para praticamente tudo. Para um conjunto de clérigos e leigos, o mais importante é a observância da lei, e não a observância do evangelho. Jesus exigiu dos seus discípulos que não se tornassem escravos da lei. O apóstolo Paulo ensina que a letra mata e o espírito é que dá a vida. Todo o Novo Testamento da Escritura Sagrada é expressão da nova e eterna aliança, alicerçada no amor e na misericórdia. Mas isto não tem importância para os escravos da lei. Para estes, a lei está acima do Evangelho.

        Todas as leis religiosas precisam estar em sintonia com o Evangelho de Jesus, pois nenhuma daquelas está acima deste. Por mais bem elaborada que seja, nenhuma lei salva. Toda lei é criação humana, imperfeita e passível de mudança. Somente Jesus tem palavras de vida eterna e, portanto, o seu Evangelho permanece para sempre como a palavra da salvação. Todo cristão precisa saber que somente a palavra de Jesus é palavra de salvação. Nenhuma palavra humana pode afastar a palavra de Jesus. Todas as leis, tradições, costumes e regras precisam estar em sintonia com a palavra libertadora de Jesus.

        Nenhum cristão deve obedecer à lei que segrega e, portanto, cria divisão. Toda lei que cria hierarquia entre os cristãos, obrigando-lhes a uma relação de obediência a homens em detrimento da obediência a Deus, não pode ser considerada. Jesus nos ensinou que todos somos filhos de Deus, membros de uma só família, irmãos e amigos. Ninguém recebeu dele o poder de escravizar, de mandar. Estes verbos não fazem parte do genuíno vocabulário cristão. Nas Igrejas e no mundo, todos somos sal, todos somos luz, em Cristo Jesus e na força do Espírito. Ser sal e luz não é um privilégio conferido a um conjunto seleto de pessoas, mas é um chamado universal.

        O mundo atual está mergulhado nas trevas da ignorância e da violência. Diuturnamente, assistimos ao que existe de pior no gênero humano. A situação atual do mundo é a expressão plena daquilo que há de mais miserável na espécie humana. Distante do amor e entregue à busca e satisfação dos próprios interesses, milhões de pessoas incendeiam o mundo, deixando-o em chamas.

Cresce cada vez mais o número das vítimas de um sistema econômico que sobrevive do suor e do sangue dos fracos e oprimidos. Portanto, é urgente que cada seguidor e seguidora de Jesus tome consciência de sua missão no mundo, amando a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, dando, assim, testemunho da Ressurreição de Jesus para a vida do mundo e de toda a humanidade; do contrário, a nossa religiosidade se transforma numa pedra tropeço e motivo de escândalo e confusão, portanto, um desserviço.


Tiago de França