sábado, 25 de março de 2017

Jesus e o dom da visão

“Acreditas no Filho do Homem?” (Jo 9, 35)

        Conta o evangelista João, que Jesus viu um homem cego de nascença. Esta afirmação pode parecer simplória, levando-nos a pensar que não há nada de tão importante. Pelo contrário, na verdade, Jesus nos vê. Deixar crescer em nós uma consciência espiritual a respeito da visão de Jesus sobre cada um de nós é uma graça, um dom de Deus. Jesus nos vê e deseja que saibamos disso. Deseja também que aprendamos a ver o próximo, nosso irmão na fé.

        O evangelista continua dizendo que o homem cego era mendigo, e que vivia pedindo esmolas ao redor do Templo. A sua condição era humilhante. Era um marginalizado. Não tinha vida digna. Faltava-lhe a visão dos olhos da carne. Diante da situação, Jesus não ficou somente observando, mas agiu: concedeu-lhe a capacidade de enxergar. Vendo pela primeira vez, o homem foi integrado à sociedade, saindo da marginalização.

        Toda pessoa que se liberta de uma limitação ganha nova vida. Para ter acesso à visão, o homem cego, mesmo sem conhecer Jesus, sem saber de onde vinha nem para onde ia, deixou-se curar. Havia nele uma disposição interna, um querer, uma profunda vontade de enxergar. Geralmente, há em nós uma forte resistência à visão. Há pessoas que preferem não enxergar. E aqui não estamos nos referindo à cegueira dos olhos da carne, mas à cegueira dos olhos do espírito. Trata-se da recusa de enxergar a vida como ela é, sem rótulos e sem fugas: enxergar as coisas como elas verdadeiramente são.

        A experiência do homem cego é de confiança na pessoa de Jesus. Não havia nenhuma dúvida em seu coração. Estava ansioso para enxergar, e acreditava que ele poderia fazê-lo ver. Diante de Jesus, o homem estava totalmente confiante, entregue, crente. Na relação de plena confiança, a visão aparece de forma definitiva. As trevas desaparecem porque a luz da visão se manifesta com toda a sua força. A libertação da cegueira dos olhos do espírito exige fé, e esta é sinônimo de plena confiança Naquele que é o único capaz de conceder o dom da visão.

        Narra, ainda, o evangelista que os religiosos do Templo não gostaram da notícia: ficaram incomodados com o fato de o homem cego ter sido libertado da cegueira. Para os religiosos da época, o cego era um homem que nasceu todo em pecado, alguém digno de desprezo e rejeição. Quando questionado, afirmou com convicção: Jesus é um profeta! A profecia de Jesus era muito pesada para os religiosos da época. Estes diziam que ele não vinha de Deus porque não obedecia às prescrições religiosas, não vivia em função delas.

        Isto nos faz pensar sobre a nossa situação religiosa atual, especialmente a realidade do cristianismo. O que tem sido mais importante para os cristãos: a mensagem de Jesus, ou a observância das prescrições religiosas? Se o cristão quiser saber sobre seu destino espiritual, sobre se está ou não no caminho de Jesus, precisa responder a esta pergunta fundamental. Ter fé em Jesus não é obedecer às prescrições religiosas, mas colocar-se no seu caminho e perseverar.

        Quem se encontra com Jesus e é libertado da cegueira se coloca, naturalmente, em seu caminho. Trata-se de um caminho de liberdade porque presente a luz. Em Jesus, a visão é dom porque é compromisso. Muitas pessoas não querem enxergar porque não querem assumir compromisso com aquilo que poderiam ver. Optam pela cegueira porque esta conduz à omissão, e nesta tudo é mais confortável, não há incômodo. Somente a consciência, bem lá no fundo de si mesmo, vez e outra, como que em um despertar repentino, acusa a pessoa omissa de seu pecado. Mas ela não se importa porque uma das marcas da pessoa omissa é não ouvir o apelo de sua própria consciência.

        Jesus nos coloca o desafio e o chamado à visão. Ninguém é obrigado a enxergar. A visão enquanto dom não passa pela obrigação, mas dar-se na liberdade e para a liberdade. É para sermos livres que somos chamados à visão. Ela não ocorre num passe de mágica, mas é processual, de acordo com as circunstâncias e o ritmo de cada pessoa. Ninguém está isolado das próprias circunstâncias. Quem sentir o chamado, aceitando, pode ter acesso à visão, encontrando-se com Jesus.

É arriscado enxergar, mas é caminho de vida e de salvação aberto a todos. Para a construção de um modo novo é imprescindível enxergar a realidade. Quem não enxerga, facilmente é enganado e manipulado. Precisamos ousar enxergar para descobrirmos a mentira e a verdade presentes na realidade. Os poderosos deste mundo precisam cada vez mais de um povo cada vez mais cego e, consequentemente, ignorante. Assim, eles podem continuar explorando, e este povo, uma vez constituído por uma maioria de gente cega, é e sempre será incapaz de reagir à exploração. É isto que está acontecendo atualmente no Brasil. Aos poucos, estamos caminhando rumo ao passado. Estão impondo aos brasileiros, gradativamente, o estilo de vida do Brasil da era colonial.

Feliz aquele que enxerga a vida, pois não há vida digna sem a visão da realidade.

Tiago de França

quarta-feira, 8 de março de 2017

Uma palavra às mulheres

       
      Hoje, 8 de março, é o Dia Internacional da Mulher. Em um país marcado pelo machismo e pelo conservadorismo, as mulheres não tem muito o que comemorar. Causa repugnância a forma como as mulheres são tratadas no Brasil: são desrespeitadas em sua dignidade. Este desrespeito é constituído por inúmeras formas de violência contra a mulher.

A situação é tão grave e vergonhosa, que foi necessária a criação de uma lei para proteger a mulher da violência de inúmeros indivíduos que pensam ser homens. Apesar disso, a Lei Maria da Penha não consegue erradicar a violência contra a mulher, e os fatores são inúmeros.

        Para milhões de indivíduos que pensam ser homens, a mulher é propriedade particular, uma coisa, um objeto de uso, que pode ser utilizado e descartado. Para eles, a mulher serve para ser um depósito de espermatozoides, para lavar e passar roupas, lavar louça e fazer comida, cuidar de crianças e arrumar a casa, enfim, ser a empregada do lar. A mulher é a bela, recatada e do lar. Por isso, trata-se de um ser inferior, que pode ser desrespeitado sem que isso seja considerado um problema.

        Na sociedade, as que conseguem os postos de trabalho até então ocupados pelos homens, não recebem os mesmos salários. As estatísticas mostram que a mulher trabalha mais e ganha menos. O homem trabalha menos que a mulher. E não há nenhum projeto efetivo nem vontade política para mudar isso. A situação se normalizou. Se a mulher é inferior ao homem, então deve ter salários menores: esta é a ideologia dominante.

        Estes mesmos indivíduos defendem, ainda, o absurdo de que a mulher deve sofrer calada. Assédio, agressões, piadas indecentes, olhares, estupros, chantagem emocional, enfim, ela deve sofrer tudo isso calada. Eles defendem o silêncio forçado, a mordaça. No parlamento brasileiro, formado por 90% de homens, a mulher não tem vez nem voz.

Uma boa parcela de parlamentares, constituída por hipócritas e adúlteros, trabalha tão somente para barrar a conquista dos direitos das mulheres. Infelizmente, milhões de mulheres elegeram seus próprios inimigos na política. Quanto mais o político se mostra violento e indecente em relação às mulheres, maior é a sua popularidade. É assim porque parte do povo se identifica com a violência contra a mulher. Trata-se de uma parcela grande de gente ignorante e criminosa.

Na religião cristã, a situação não é muito diferente. Apesar de Jesus ter ensinado a fraternidade e, consequentemente, a igualdade entre mulheres e homens, inúmeros líderes religiosos pregam a subserviência; ensinam que a mulher deve obedecer ao homem, sendo-lhe submissa. Para isso, procuram versículos bíblicos para legitimar seu desejo de dominação.

Sem a mulher, o Cristianismo desaparece, mas esta verdade não é considerada. Na Igreja Católica, a mulher não participa da hierarquia nem preside a Eucaristia. Também em muitas outras Igrejas e religiões, a mulher é excluída de alguns ofícios, que somente podem ser desempenhados por homens, exclusivamente.

Este exclusivismo contraria o evangelho, mas os conservadores não estão preocupados com o evangelho, mas querem continuar exercendo o poder, sem a interferência e participação da mulher. O poder de decisão é do homem. A mulher está para o serviço, especialmente os serviços de ornamentação e limpeza.

        Por estes e tantos outros motivos, não resta à mulher outra alternativa senão ir à luta, permanecendo firme na conquista de seus direitos. Precisa ocupar o seu espaço com dignidade. A mulher necessita, também, aprender cada vez mais a usar a palavra e aproveitar as oportunidades que surgem, sem aderir ao autoritarismo de muitos indivíduos.

Sem perder a ternura, posicionar-se com coragem e firmeza. O mundo carece cada vez mais de mulheres audaciosas, conscientes de seu papel na sociedade, amorosas, livres e libertadoras. O que seria do mundo sem a ternura das mulheres?...
Avante, mulheres!

Tiago de França

domingo, 5 de março de 2017

Despedida. Pensamentos (XXXVI)

Despedir-se de quem a gente gosta é um cálice amargo que a vida nos obriga a experimentar. E por mais que experimentemos, a gente nunca se acostuma.


Tiago de França

quarta-feira, 1 de março de 2017

MENSAGEM QUARESMAL 2017

“Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração, e não as vestes; e voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (Joel 2, 12).

        Nenhuma pessoa muda de vida da noite para o dia. Converter-se é mudar de mentalidade e de vida. A conversão é um processo único e pessoal. Único porque cada pessoa tem a sua história e esta é constituída por inúmeras circunstâncias. Pessoal porque cada pessoa precisa tomar a decisão, se quer ou não mudar de vida. Esta decisão é pessoal. Portanto, a conversão se inicia quando a pessoa decide, livremente, mudar de vida. Toda pessoa precisa fazer um propósito, tomar uma direção, colocar-se a caminho e nele perseverar.

        A espiritualidade cristã ensina que somente pela força do Espírito Santo a pessoa é capaz de tomar esta decisão. Este tipo de decisão já constitui uma resposta ao chamado de Deus. É o início de uma resposta que precisa ser generosa e permanente. Responde-se a Deus se dispondo a ouvir o seu apelo de amor. Quem tomou a decisão de trilhar o caminho da conversão, na verdade, se dispôs a abrir os ouvidos à voz de Deus que chama à renovação da vida. Converter-se é abrir-se à renovação da vida.

        Tomada a decisão, inicia-se a caminhada. O caminho é estreito e pedregoso, cheio de tentações. O desânimo oriundo do cansaço é uma das piores tentações. Para não desanimar, a pessoa precisa ter a virtude da paciência, saber esperar em Deus. Este Deus exige que a pessoa se entregue sem medo à experiência da comunhão com Ele. Nesta experiência, Ele revela o seu grande e infinito amor; e neste amor a pessoa experimenta o conhecimento de si mesma. É no encontro com Deus, no mais profundo de si mesmo, que o ser humano conhece as suas sombras, seus pecados.

        Totalmente entregue ao amor divino, a pessoa faz a experiência do perdão. O amor e o perdão caminham juntos. Quem se encontra com Deus tem seus pecados perdoados e encontra a paz de espírito. Deus é amor e Nele toda pessoa encontra a reconciliação consigo mesma. Uma vez reconciliada consigo mesma e com Deus,  é capaz de entrar em comunhão com seus irmãos, seus semelhantes; do contrário, o encontro com o outro não ocorre porque a ausência de paz não cria este encontro necessário. O caminho da conversão é um caminho de reconciliação, de amor, de encontro e de paz.

        O profeta Joel fala da necessidade de se voltar para o Senhor. O bom filho sempre retorna à casa de seu pai e de sua mãe. Deus é este Pai e esta Mãe que permanece de braços abertos porque é puro amor. A partir do evangelho de Jesus, podemos afirmar, categoricamente: Não há pecado no mundo que seja capaz de impedir, definitivamente, o encontro com Deus, Pai e Mãe de misericórdia. Somente aquela pessoa que se recusa mostra-se incapaz de encontrar a Deus. E é assim porque Deus não força o encontro nem a aproximação. Deus é amor gratuito e livre. Deus ama na liberdade e para a liberdade.

        O cristão é chamado a voltar para o Senhor rasgando o coração e não as vestes. O que o profeta Joel quis dizer ao falar em rasgar o coração? De modo geral, as pessoas optam por ter um coração de pedra. Este coração é duro e insensível. Quem tem coração de pedra é incapaz de sentir compaixão e de se entregar ao amor. Este amor não resiste a um coração de pedra. Rasgar o coração significa abandonar o coração de pedra, e em seu lugar fazer surgir um coração de carne. Rasgar é abrir, acolher, deixar sentir e pulsar, renunciar à frieza e à rispidez, cultivar o amor. Converter-se de coração é mudar de vida de verdade, sem mentiras; ir à essência, não se acomodar na superficialidade.

        Nossas Igrejas cristãs, bem como todas as religiões, precisam de homens e mulheres livres no amor, de pessoas de bom coração. Certo dia, escutei de um padre santo a seguinte frase, quando conversávamos sobre a vocação do presbítero na Igreja: “Deus não nos chama a sermos padres, mas nos chama a sermos bons!” A bondade é a marca da pessoa convertida. Ser bom não é ser sem defeito e sem pecado, mas significa ser semelhante a Deus, pura bondade. Quem foi alcançado pelo amor conhece a bondade e, de fato, é bom. O mundo precisa de pessoas boas, de pessoas de bom coração.

        Se quisermos conhecer e viver em um mundo renovado, precisamos aprender a exercitar a bondade no coração, não na aparência. De modo geral, nos refugiamos na aparência, escondendo nosso verdadeiro eu. E é assim porque tendemos à acomodação, recusando-nos à mudança de vida. Esta tentação nos arrasta porque é mais fácil cultivarmos a aparência do que nos ocuparmos com nossa essência.  

Vivemos numa permanente fuga de nós mesmos, e, assim, nos encerramos na tibieza. Que a Quaresma deste ano, seja mais uma oportunidade para avançarmos para as águas mais profundas; para sermos, de fato, pessoas dignas de ser reconhecidas como seres humanos. Deus nos chama a sermos, de fato, humanos. Quem consegue ser humano encontrou a felicidade e a paz; encontrou Deus, que é Tudo em todos.

Feliz caminhada rumo à Páscoa!

Tiago de França