domingo, 22 de outubro de 2017

ALGUMAS PROVOCAÇÕES SOBRE A MISSÃO CRISTÃ HOJE

“Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa-Nova a toda criatura!” (Mc 16, 15)

Antes e depois do Concílio Vaticano II

        Na literatura teológica da Igreja Católica encontramos uma vasta bibliografia sobre o tema da missão, especialmente nos tempos pós-Vaticano II, em que o tema da missão foi retomado com força. Antes do Vaticano II, a missão era entendida como realidade de clérigos e religiosos. Os leigos não eram considerados missionários, mas apenas destinatários da missão da Igreja. O povo assistia às missões, recebendo os sacramentos. No mais, a vida paroquial era rotineira, marcada pela piedade popular, pela celebração da Eucaristia e dispensa dos sacramentos. A Igreja não se reconhecia como Povo de Deus em marcha no mundo, mas entendia-se como relação rigorosa entre clérigos e leigos, marcados pela obediência e observância das leis eclesiásticas. A vida eclesial era uma repetição incansável de ritos, preces e louvores. A religião era uma realidade parada no tempo.

        Após o Vaticano II, encerrado no dia 8 de dezembro de 1965, a Igreja despertou para a realidade da missão. Os documentos conciliares apontam para a missão da Igreja no meio do mundo, ou seja, já não mais se concebe a Igreja como realidade acima do mundo nem separada dele. Ao invés de o mundo ir à Igreja, esta é chamada a ir ao mundo, para anunciar a Boa-Nova do Reino de Deus. Reconheceu-se, portanto, esta necessidade: Ir, sair de si, partir na direção do mundo. O povo de Deus está no meio do mundo, e a missão do cristão deve acontecer neste mundo, marcado pelas tristezas e alegrias, angústias e sofrimentos, gritos e infortúnios de toda sorte. O desafio de partir é permanente e provocador, é evangélico e transformador. Não há Igreja de Jesus sem este partir para a missão. Não há missionário sem deslocamento, sem saída do mundo da segurança pessoal.

        Depois de João Paulo I, que teve um pontificado muito breve, veio o grande João Paulo II. Durante quase três décadas governou a Igreja, dando ênfase à identidade institucional desta. Criou uma geração de católicos, clérigos e leigos entusiasmados com a liturgia oficial, com paramentos litúrgicos, com a devoção a Maria e aos santos, com o cumprimento rigoroso das leis canônicas e veneração filial à figura do Pontífice. Assim, acentuou-se a imagem da Igreja em toda a terra. Eventos de massa passaram a ser organizados para demonstrar a força persuasiva e simbólica do Papa: Jornada Mundial da Juventude e peregrinações marianas. Multiplicou-se a canonização dos santos, especialmente os santos fieis à sagrada tradição, marcados pelas devoções particulares, reforçando, assim, um modelo de santidade desvinculado da dimensão política da fé.

        Para consolidar este modelo hierárquico de Igreja, pautado na oração e na obediência, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, com toda a sua pompa, foi eleito Pontífice. Na mesma linha do seu sucessor, mas com um carisma pouco afeito a gestos sentimentalistas, Bento XVI continuou dirigindo a barca de Pedro em meio a uma enxurrada de denúncias contra muitos membros do clero, metidos em escândalos sexuais e financeiros. Homem de profundo conhecimento em teologia, Bento XVI chamou a atenção para a necessária ortodoxia da fé, ou seja, foi rigoroso com o trato da exposição da fé cristã, muito preocupado com a manutenção da sagrada tradição da Igreja. Suas obras teológicas até hoje permanecem como fonte de pesquisa e estudos nos cursos de teologia católica. Com seu predecessor, criou uma geração de saudosistas, apegados à boa tradição, disciplinados na elaboração sistemática do conteúdo teológico da fé. Seu pontificado foi praticamente igual ao seu predecessor.

        O grande gesto do Papa Bento XVI foi a sua renúncia ao pontificado, em fevereiro de 2013. Este gesto feliz concedeu à Igreja a oportunidade de, pela primeira vez na história, um latino-americano, oriundo da Argentina, chegasse ao Bispado de Roma. Dada a situação crítica da Igreja, parada no tempo, o colégio de cardeais escolheu Francisco, para reformar a Igreja. É verdade que Francisco tem consciência de que não pode fazer tudo o que deseja, afinal de contas, não governa sozinho a Igreja. Mas é verdade também que tem feito muito bem à Igreja, muito mais que seus dois predecessores juntos. Desapareceu do seio da Igreja a cultura do medo e da repressão. Não se ouviu mais falar de proibição quanto à discussão de temas necessários à vida eclesial. O grande gesto de Francisco, além da sua simplicidade no jeito de ser e de agir, é a sua ousadia em apontar para o essencial: o Evangelho de Jesus. E aí o tema da missão é retomado com força, após décadas de silêncio e apego às tradições dos antigos.

Quem envia?

        Quem envia é Jesus. O chamado não é para a missão em nome da Igreja, mas em nome de Jesus. O missionário é alguém chamado a continuar a missão de Jesus. Ele é autor da missão. O mundo é o campo da missão. Ninguém é chamado para fugir do mundo, refugiando-se no isolamento. O missionário é pessoa do contato, da comunicação, do encontro. É aquele que promove a cultura do encontro. É encontrando-se com os outros que a missão acontece. Em uma sociedade marcada pelo desencontro, o discípulo missionário de Jesus promove a urgente e necessária cultura do encontro.

        O Pai e o Filho enviam na força do Espírito Santo. O cristão que atende o apelo à missão age em nome da Trindade Santa. Esta mesma Trindade confere autoridade ao missionário para que este fale em nome dela. Por isso, todo missionário precisa ter consciência sobre quem o envia à missão. Assim, não terá medo de nada, caminhará sempre com segurança e serenidade. O Deus uno e trino é a sua segurança, pois o mesmo que envia é o que dá a devida segurança. Não há, neste mundo, pessoa, circunstância, ou poder, que impeça o enviado da Trindade de cumprir a sua missão. Quem envia confere a força necessária para o necessário enfrentamento das situações difíceis.

Para onde envia?

        A leitura da Bíblia revela o lugar de Deus neste mundo. Ele jamais esteve do lado dos poderosos e opressores, e não se identifica com as forças que oprimem os pobres. A revelação bíblica, do Gênesis ao Apocalipse, é fiel ao mostrar, com clareza, o lugar do encontro com Deus. No antigo testamento da Bíblia aparece Deus agindo no meio dos pobres, dos oprimidos, libertando aqueles que estavam aprisionados na casa da escravidão. Escolhendo homens e mulheres, envio-os para libertar o povo da escravidão; e, apesar da infidelidade do povo eleito, Deus permaneceu fiel. A marcha da libertação integral do povo de Deus chegou até Jesus, e este transmitiu aos seus seguidores a missão de permanecerem no mesmo caminho de fidelidade ao Pai, servindo ao povo de Deus.

        Lá onde encontramos os marginalizados da sociedade: desempregados, prostitutas, viciados em drogas; moradores de rua; enfermos nos hospitais e fora deles; mulheres abandonadas; os presidiários; os que passam fome; os nus; os desorientados e sem perspectiva; os desenganados pela medicina; os perseguidos por causa da justiça, as vítimas das inúmeras formas de violência; as crianças, adolescentes e jovens abandonados; os que são violados em seus direitos e garantias fundamentais; as famílias das vítimas das “balas perdidas”; as viúvas desamparadas; os idosos abandonados; as vítimas da censura; enfim, todos aqueles que são esquecidos no anonimato, feridos em sua dignidade. Onde estão eles, aí está Deus. É aí o lugar da missão e do missionário.

        Somente impulsionado pelo Espírito Santo, o missionário é capaz de ir ao encontro destas pessoas. Sem o auxílio do Espírito, não é possível ser missionário no meio dos sofredores. Sem este auxílio divino que desinstala o missionário, conduzindo-o ao encontro dos sofredores, facilmente se cai no comodismo. Numa sociedade marcada pelo egoísmo, para quem se deixa dominar por este, o sofrimento do outro não significa nada. O missionário não pode ser egoísta. O egoísmo acaba com a missão. Missão e egoísmo são realidades incompatíveis. Livre do egoísmo e sem isolar-se em sua zona de conforte e segurança pessoal, o missionário se expõe, se desloca, parte para a missão. Missão é partir para ir ao encontro; é um partir definitivo, sem olhar para trás. Trata-se de assumir um estilo de vida que impõe riscos e incômodos, pois é caminho estreito, pedregoso e, às vezes, muito perigoso.

        Quem almeja conforto e segurança não pode ser missionário. O caminho a ser trilhado não é confortável nem oferece segurança. Os que procuram “salvar a própria vida”, diz Jesus, vai perdê-la; mas aqueles que “perdem a vida” por causa de Jesus e da sua mensagem, estes encontrarão a vida. Este “perder a vida” por causa de Jesus e do seu evangelho significa doar a própria vida na missão; é deixar-se consumir pela missão. Assim como a vela se consome para oferecer luz, o mesmo ocorre com o autêntico missionário: Gasta a sua vida na missão, sem reservas nem limites. Apesar do cansaço, da incompreensão, da perseguição e da rejeição, o missionário permanece firme, de pé e de cabeça erguida, denunciando as injustiças e anunciando o Reino de Deus, no serviço perseverante e amoroso ao próximo.

Enviados para quê?

        O missionário é enviado para anunciar o evangelho da vida e da liberdade. O Reino de Deus é vida e liberdade para todos. Esta é a mensagem central do cristianismo, a mensagem de Jesus. Hoje, mais do que em outras épocas, tornou-se cada vez mais urgente anunciar o evangelho de Jesus. Assim, o missionário não é chamado a pregar a doutrina da sua Igreja, por mais perfeita e útil que pareça ser a doutrina. E é assim porque todo missionário sabe que não é a doutrina da Igreja que converte e salva as pessoas, mas somente a palavra de Jesus tem força geradora de vida eterna. Anunciar a palavra de Jesus é a missão do missionário. Nenhum conjunto de leis nem de doutrinas pode substituir a palavra de Jesus. Esta palavra está no centro, e Jesus a pronunciou para a salvação de todos.

        Desse modo, desvia-se da missão confiada por Deus todo missionário que anuncia ao povo as próprias ideias e ideologias religiosas. A ninguém Jesus deu poder e autoridade para fazer isso. O anúncio é anúncio do evangelho de Jesus, e não de ideologias criadas pela inteligência humana. Estas ideologias visam a satisfação dos interesses humanos, de grupos e instituições. O anúncio do evangelho visa o Reino de Deus. O verdadeiro missionário não vive em função dos interesses da religião, mas consome a sua vida no anúncio da mensagem de Jesus. Não valeria a pena ser missionário para pregar ideologias humanas. Estas são imperfeitas e promovem o corporativismo. O evangelho de Jesus não é ideologia nem promove corporativismo.

        Neste sentido, falsos missionários são aqueles que se dedicam a pregar ideologias exclusivistas, que somente servem para julgar, condenar e excluir as pessoas. Infelizmente, encontramos muitos falsos missionários em todas as Igrejas cristãs que, ao invés de acolher e cuidar do povo, especialmente dos que mais sofrem, se dedicam a criar doutrinas e regras religiosas que causam divisão, legitimando a hipocrisia religiosa. Há muitos discursos moralistas, geradores de muita intolerância religiosa no seio das Igrejas. Jesus não ensinou a seus discípulos a criar regras morais para controlar a vida das pessoas nem para classificá-las em categorias. Doutrinas e regras só servem se estiverem em sintonia com a mensagem de Jesus. Ninguém é obrigado a ouvir e aceitar doutrina e regra religiosa contrárias ao evangelho de Jesus. Não se pode impor às pessoas doutrinas e regras contrárias ao evangelho da vida e da liberdade. Missão e imposição são realidades incompatíveis.

Missão: Um apelo ao amor

        Precisamos nos colocar a serviço da criação de um mundo mais justo e fraterno para todos. Quem foi batizado em nome da Trindade precisa assumir a missão de anunciar o Reino de Deus. Esta missão é inadiável. No juízo final cada cristão vai ser cobrado, caso não tenha desempenhado a sua missão neste mundo. Não podemos ser covardes. Não podemos cair no comodismo e nos apegarmos às seguranças deste mundo. Para combater o mal do mundo precisamos amar sem medo e sem limites: Amar a todos, sem distinção. Todos somos filhos do mesmo Pai, que é amoroso para com todos. Com o testemunho de nossa vida precisamos criar uma sociedade justa e fraterna. O medo e o desespero não podem nos controlar. O Espírito do Senhor está conosco. Confiemos nele. Entreguemo-nos a Ele. Assim, a missão acontece, e o Reino de Deus se torna realidade entre nós. Com este propósito nos dispomos a pensar estas reflexões/provocações. Que o auxílio divino permaneça conosco, hoje e sempre.
Fraternalmente,

Tiago de França

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