“Ide
pelo mundo inteiro e anunciai a Boa-Nova a toda criatura!” (Mc
16, 15)
Antes
e depois do Concílio Vaticano II
Na literatura teológica da Igreja
Católica encontramos uma vasta bibliografia sobre o tema da missão,
especialmente nos tempos pós-Vaticano II, em que o tema da missão foi retomado
com força. Antes do Vaticano II, a missão era entendida como realidade de
clérigos e religiosos. Os leigos não eram considerados missionários, mas apenas
destinatários da missão da Igreja. O povo assistia às missões, recebendo os
sacramentos. No mais, a vida paroquial era rotineira, marcada pela piedade
popular, pela celebração da Eucaristia e dispensa dos sacramentos. A Igreja não
se reconhecia como Povo de Deus em marcha no mundo, mas entendia-se como
relação rigorosa entre clérigos e leigos, marcados pela obediência e
observância das leis eclesiásticas. A vida eclesial era uma repetição
incansável de ritos, preces e louvores. A religião era uma realidade parada no
tempo.
Após o Vaticano II, encerrado no dia 8
de dezembro de 1965, a Igreja despertou para a realidade da missão. Os
documentos conciliares apontam para a missão da Igreja no meio do mundo, ou
seja, já não mais se concebe a Igreja como realidade acima do mundo nem
separada dele. Ao invés de o mundo ir à Igreja, esta é chamada a ir ao mundo,
para anunciar a Boa-Nova do Reino de Deus. Reconheceu-se, portanto, esta
necessidade: Ir, sair de si, partir na direção do mundo. O povo de Deus está no
meio do mundo, e a missão do cristão deve acontecer neste mundo, marcado pelas
tristezas e alegrias, angústias e sofrimentos, gritos e infortúnios de toda
sorte. O desafio de partir é permanente e provocador, é evangélico e
transformador. Não há Igreja de Jesus sem este partir para a missão. Não há
missionário sem deslocamento, sem saída do mundo da segurança pessoal.
Depois de João Paulo I, que teve um
pontificado muito breve, veio o grande João Paulo II. Durante quase três
décadas governou a Igreja, dando ênfase à identidade institucional desta. Criou
uma geração de católicos, clérigos e leigos entusiasmados com a liturgia
oficial, com paramentos litúrgicos, com a devoção a Maria e aos santos, com o cumprimento
rigoroso das leis canônicas e veneração filial à figura do Pontífice. Assim,
acentuou-se a imagem da Igreja em toda a terra. Eventos de massa passaram a ser
organizados para demonstrar a força persuasiva e simbólica do Papa: Jornada
Mundial da Juventude e peregrinações marianas. Multiplicou-se a canonização dos
santos, especialmente os santos fieis à sagrada tradição, marcados pelas
devoções particulares, reforçando, assim, um modelo de santidade desvinculado
da dimensão política da fé.
Para consolidar este modelo hierárquico
de Igreja, pautado na oração e na obediência, o prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, com toda a sua pompa, foi eleito
Pontífice. Na mesma linha do seu sucessor, mas com um carisma pouco afeito a
gestos sentimentalistas, Bento XVI continuou dirigindo a barca de Pedro em meio
a uma enxurrada de denúncias contra muitos membros do clero, metidos em
escândalos sexuais e financeiros. Homem de profundo conhecimento em teologia,
Bento XVI chamou a atenção para a necessária ortodoxia da fé, ou seja, foi
rigoroso com o trato da exposição da fé cristã, muito preocupado com a
manutenção da sagrada tradição da Igreja. Suas obras teológicas até hoje
permanecem como fonte de pesquisa e estudos nos cursos de teologia católica. Com
seu predecessor, criou uma geração de saudosistas, apegados à boa tradição,
disciplinados na elaboração sistemática do conteúdo teológico da fé. Seu
pontificado foi praticamente igual ao seu predecessor.
O grande gesto do Papa Bento XVI foi a
sua renúncia ao pontificado, em fevereiro de 2013. Este gesto feliz concedeu à
Igreja a oportunidade de, pela primeira vez na história, um latino-americano,
oriundo da Argentina, chegasse ao Bispado de Roma. Dada a situação crítica da
Igreja, parada no tempo, o colégio de cardeais escolheu Francisco, para
reformar a Igreja. É verdade que Francisco tem consciência de que não pode
fazer tudo o que deseja, afinal de contas, não governa sozinho a Igreja. Mas é
verdade também que tem feito muito bem à Igreja, muito mais que seus dois
predecessores juntos. Desapareceu do seio da Igreja a cultura do medo e da
repressão. Não se ouviu mais falar de proibição quanto à discussão de temas
necessários à vida eclesial. O grande gesto de Francisco, além da sua
simplicidade no jeito de ser e de agir, é a sua ousadia em apontar para o
essencial: o Evangelho de Jesus. E aí o tema da missão é retomado com força,
após décadas de silêncio e apego às tradições dos antigos.
Quem envia?
Quem envia é Jesus. O
chamado não é para a missão em nome da Igreja, mas em nome de Jesus. O
missionário é alguém chamado a continuar a missão de Jesus. Ele é autor da
missão. O mundo é o campo da missão. Ninguém é chamado para fugir do mundo,
refugiando-se no isolamento. O missionário é pessoa do contato, da comunicação,
do encontro. É aquele que promove a cultura do encontro. É encontrando-se com
os outros que a missão acontece. Em uma sociedade marcada pelo desencontro, o
discípulo missionário de Jesus promove a urgente e necessária cultura do
encontro.
O Pai e o Filho enviam na força do
Espírito Santo. O cristão que atende o apelo à missão age em nome da Trindade
Santa. Esta mesma Trindade confere autoridade ao missionário para que este fale
em nome dela. Por isso, todo missionário precisa ter consciência sobre quem o
envia à missão. Assim, não terá medo de nada, caminhará sempre com segurança e
serenidade. O Deus uno e trino é a sua segurança, pois o mesmo que envia é o
que dá a devida segurança. Não há, neste mundo, pessoa, circunstância, ou
poder, que impeça o enviado da Trindade de cumprir a sua missão. Quem envia
confere a força necessária para o necessário enfrentamento das situações
difíceis.
Para onde envia?
A leitura da Bíblia revela
o lugar de Deus neste mundo. Ele jamais esteve do lado dos poderosos e
opressores, e não se identifica com as forças que oprimem os pobres. A
revelação bíblica, do Gênesis ao Apocalipse, é fiel ao mostrar, com clareza, o
lugar do encontro com Deus. No antigo testamento da Bíblia aparece Deus agindo
no meio dos pobres, dos oprimidos, libertando aqueles que estavam aprisionados
na casa da escravidão. Escolhendo homens e mulheres, envio-os para libertar o
povo da escravidão; e, apesar da infidelidade do povo eleito, Deus permaneceu
fiel. A marcha da libertação integral do povo de Deus chegou até Jesus, e este
transmitiu aos seus seguidores a missão de permanecerem no mesmo caminho de
fidelidade ao Pai, servindo ao povo de Deus.
Lá onde encontramos os marginalizados da
sociedade: desempregados, prostitutas, viciados em drogas; moradores de rua; enfermos
nos hospitais e fora deles; mulheres abandonadas; os presidiários; os que
passam fome; os nus; os desorientados e sem perspectiva; os desenganados pela
medicina; os perseguidos por causa da justiça, as vítimas das inúmeras formas
de violência; as crianças, adolescentes e jovens abandonados; os que são
violados em seus direitos e garantias fundamentais; as famílias das vítimas das
“balas perdidas”; as viúvas desamparadas; os idosos abandonados; as vítimas da
censura; enfim, todos aqueles que são esquecidos no anonimato, feridos em sua
dignidade. Onde estão eles, aí está Deus. É aí o lugar da missão e do
missionário.
Somente impulsionado pelo Espírito
Santo, o missionário é capaz de ir ao encontro destas pessoas. Sem o auxílio do
Espírito, não é possível ser missionário no meio dos sofredores. Sem este
auxílio divino que desinstala o missionário, conduzindo-o ao encontro dos
sofredores, facilmente se cai no comodismo. Numa sociedade marcada pelo
egoísmo, para quem se deixa dominar por este, o sofrimento do outro não
significa nada. O missionário não pode ser egoísta. O egoísmo acaba com a
missão. Missão e egoísmo são realidades incompatíveis. Livre do egoísmo e sem
isolar-se em sua zona de conforte e segurança pessoal, o missionário se expõe,
se desloca, parte para a missão. Missão é partir para ir ao encontro; é um
partir definitivo, sem olhar para trás. Trata-se de assumir um estilo de vida
que impõe riscos e incômodos, pois é caminho estreito, pedregoso e, às vezes, muito
perigoso.
Quem almeja conforto e segurança não
pode ser missionário. O caminho a ser trilhado não é confortável nem oferece
segurança. Os que procuram “salvar a própria vida”, diz Jesus, vai perdê-la;
mas aqueles que “perdem a vida” por causa de Jesus e da sua mensagem, estes
encontrarão a vida. Este “perder a vida” por causa de Jesus e do seu evangelho
significa doar a própria vida na missão; é deixar-se consumir pela missão.
Assim como a vela se consome para oferecer luz, o mesmo ocorre com o autêntico
missionário: Gasta a sua vida na missão, sem reservas nem limites. Apesar do
cansaço, da incompreensão, da perseguição e da rejeição, o missionário
permanece firme, de pé e de cabeça erguida, denunciando as injustiças e
anunciando o Reino de Deus, no serviço perseverante e amoroso ao próximo.
Enviados para quê?
O missionário é
enviado para anunciar o evangelho da vida e da liberdade. O Reino de Deus é
vida e liberdade para todos. Esta é a mensagem central do cristianismo, a
mensagem de Jesus. Hoje, mais do que em outras épocas, tornou-se cada vez mais
urgente anunciar o evangelho de Jesus. Assim, o missionário não é chamado a
pregar a doutrina da sua Igreja, por mais perfeita e útil que pareça ser a
doutrina. E é assim porque todo missionário sabe que não é a doutrina da Igreja
que converte e salva as pessoas, mas somente a palavra de Jesus tem força
geradora de vida eterna. Anunciar a palavra de Jesus é a missão do missionário.
Nenhum conjunto de leis nem de doutrinas pode substituir a palavra de Jesus.
Esta palavra está no centro, e Jesus a pronunciou para a salvação de todos.
Desse modo, desvia-se da missão confiada
por Deus todo missionário que anuncia ao povo as próprias ideias e ideologias
religiosas. A ninguém Jesus deu poder e autoridade para fazer isso. O anúncio é
anúncio do evangelho de Jesus, e não de ideologias criadas pela inteligência
humana. Estas ideologias visam a satisfação dos interesses humanos, de grupos e
instituições. O anúncio do evangelho visa o Reino de Deus. O verdadeiro
missionário não vive em função dos interesses da religião, mas consome a sua
vida no anúncio da mensagem de Jesus. Não valeria a pena ser missionário para
pregar ideologias humanas. Estas são imperfeitas e promovem o corporativismo. O
evangelho de Jesus não é ideologia nem promove corporativismo.
Neste sentido, falsos missionários são
aqueles que se dedicam a pregar ideologias exclusivistas, que somente servem
para julgar, condenar e excluir as pessoas. Infelizmente, encontramos muitos
falsos missionários em todas as Igrejas cristãs que, ao invés de acolher e
cuidar do povo, especialmente dos que mais sofrem, se dedicam a criar doutrinas
e regras religiosas que causam divisão, legitimando a hipocrisia religiosa. Há
muitos discursos moralistas, geradores de muita intolerância religiosa no seio
das Igrejas. Jesus não ensinou a seus discípulos a criar regras morais para
controlar a vida das pessoas nem para classificá-las em categorias. Doutrinas e
regras só servem se estiverem em sintonia com a mensagem de Jesus. Ninguém é
obrigado a ouvir e aceitar doutrina e regra religiosa contrárias ao evangelho
de Jesus. Não se pode impor às pessoas doutrinas e regras contrárias ao
evangelho da vida e da liberdade. Missão e imposição são realidades
incompatíveis.
Missão: Um apelo ao amor
Precisamos nos colocar
a serviço da criação de um mundo mais justo e fraterno para todos. Quem foi
batizado em nome da Trindade precisa assumir a missão de anunciar o Reino de
Deus. Esta missão é inadiável. No juízo final cada cristão vai ser cobrado,
caso não tenha desempenhado a sua missão neste mundo. Não podemos ser covardes.
Não podemos cair no comodismo e nos apegarmos às seguranças deste mundo. Para
combater o mal do mundo precisamos amar sem medo e sem limites: Amar a todos,
sem distinção. Todos somos filhos do mesmo Pai, que é amoroso para com todos.
Com o testemunho de nossa vida precisamos criar uma sociedade justa e fraterna.
O medo e o desespero não podem nos controlar. O Espírito do Senhor está
conosco. Confiemos nele. Entreguemo-nos a Ele. Assim, a missão acontece, e o
Reino de Deus se torna realidade entre nós. Com este propósito nos dispomos a
pensar estas reflexões/provocações. Que o auxílio divino permaneça conosco,
hoje e sempre.
Fraternalmente,
Tiago
de França
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