terça-feira, 10 de julho de 2018

As esquisitices do Judiciário brasileiro


       
       A situação do Judiciário brasileiro tem demonstrado, com muita clareza, que estamos longe de termos uma justiça verdadeiramente imparcial. O que seria uma justiça imparcial? A resposta para esta questão exige coerência com o que acontece hoje no País. Não apelemos para conceitos estritamente jurídicos. Ninguém precisa ser especialista em Direito para entender que uma justiça imparcial é aquela que não adere ao projeto de poder político em detrimento do bem comum. É desse tipo de justiça que precisamos. Neste sentido, o Judiciário precisa se transformar, de fato, em um instrumento de promoção da democracia e do Estado Democrático de Direito. Mas como isto é possível?

        Inicialmente, é preciso considerar uma outra questão fundamental: Os operadores do Direito, especialmente os membros do Judiciário e do Ministério Público, tem interesse em promover o Estado Democrático de Direito? É verdade que não podemos cair na tentação de pensarmos que todos os operadores do Direito são antidemocráticos ou inimigos da democracia. Jamais. Mas é verdade também que há setores importantes destes Poderes que estão a serviço de uma minoria endinheirada que há séculos saqueia as riquezas e mantém sob controle a funcionalidade das instituições judiciárias do País.

        Jessé de Souza, renomado sociólogo brasileiro, autor de inúmeras obras, dentre as quais encontramos A elite do atraso – Da escravidão à Lava Jato, classifica esta elite endinheirada como elite do atraso. De fato, é esta elite que tem mantido o País em um permanente regime de escravidão. Esta mesma elite é dona dos meios de produção que controlam a economia e que também controlam a política.

Para continuar exercendo o controle, a elite do atraso procura manipular as instituições responsáveis pela aplicação da lei, para que estas não se transformem em pedras de tropeço, o que causaria a interrupção do grandioso projeto de escravidão permanente que impera no Brasil. Recomendamos vivamente a leitura atenta das últimas obras do Jessé de Souza, especialmente a supracitada. Vale a pena.

        Quase que diariamente assistimos a espetáculos deprimentes, realizados por operadores importantes de setores do Judiciário. No último domingo, 8 de julho, apareceu, explicitamente e mais uma vez, a parcialidade de juízes no tratamento que tem dado ao ex-presidente Lula, condenado na operação Lava Jato e candidato à presidência da República. Um desembargador recebe a petição de habeas corpus, defere a ordem e manda soltar. O juiz de primeiro grau, responsável pela operação, que tinha sentenciado inicialmente o réu, publica despacho, dizendo que não iria obedecer e mandando a Polícia Federal fazer o mesmo. Aqui temos a chamada quebra de hierarquia. Curiosamente, o juiz desobediente está de férias, pois tinha alegado cansaço e excesso de trabalho!

Poucas horas depois, o mesmo desembargador reforça a ordem de habeas corpus. Não sendo suficiente a confusão, mais dois desembargadores entraram na confusão: o desembargador relator do processo do réu, que cassou a decisão do seu colega, avocando (chamando para si) a competência. Também o presidente do Tribunal se manifestou, opinando pela manutenção da prisão. E para fechar com chave de ouro este capítulo intenso do espetáculo judicial, a presidente do Supremo Tribunal Federal também se manifestou e, ironicamente, discorreu, de forma breve, sobre a importância de duas questões jurídicas essenciais ao Judiciário: disse que a justiça é imparcial e que os ritos e recursos próprios devem ser espeitados. O Judiciário tem pecado justamente porque estes dois fatores andam bem ausentes na tramitação de inúmeros processos, principalmente nos processos que correm contra o ex-presidente Lula.

Esta confusão toda não teria ocorrido se o ex-presidente Lula não fosse candidato à presidência da República, estando em primeiro lugar em todas as pesquisas de intenção de voto. O mais desinformado dos brasileiros sabe disso. A prisão do ex-presidente é um escândalo permanente, conhecido no mundo inteiro. Não é novidade para ninguém que personagens centrais do Judiciário realizam manobras espetaculares para mantê-lo preso. Trata-se de uma condenação e prisão que não se sustentam, juridicamente falando. Condenação sem provas cabais ameaça o Estado Democrático de Direito.

A utilização de instrumentos jurídicos com fins meramente político-partidários é algo assombroso. Mas o que fazer diante de uma ditadura judicial? A quem recorrer? Quando a classe das mulheres e homens togados tende a dominar a vida política e social de uma nação, não há liberdade nem democracia possíveis.

Qual a importância da Constituição e das leis? Como é possível o Estado Democrático de Direito se a interpretação constitucional obedece à ética da conveniência? Quando convém, condena-se; quando não, absolve-se. Contra algumas figuras, reconhecidamente corruptas, que subtraem milhões e milhões dos cofres públicos, não há sequer investigação. E quando há, misteriosamente, tais investigações não chegam a lugar nenhum.

Dependendo do réu, quando há condenação, converte-se a prisão comum em prisão domiciliar. A impressão que se tem é que os ricos somente podem cumprir prisão domiciliar, quando são condenados, o que é raro. Tal raridade se comprova quando visitamos um presídio superlotado: a grande maioria dos encarcerados é pobre, negra, analfabeta ou semianalfabeta, e jovem. As prisões sempre foram destinadas aos “lascados” da sociedade. Esta é a realidade que historicamente se comprova.

O rigor das normas vigentes não é aplicado a todos. As pessoas não são iguais perante a lei. A resposta judicial às demandas é ineficiente e parcial. O cotidiano forense mostra claramente isso. Não há teoria que consiga esconder esta realidade. Por mais que a mídia hegemônica tente camuflar a realidade, numa tentativa desesperada de passar a falsa imagem do fim da corrupção, esta tentativa já constitui corrupção.

A mídia mente até certo ponto. A mentira é tão mal contada que o povo desconfia em pouco tempo. Há sempre uma parcela do povo que anda acordada, e quando tem oportunidade, mostra que nem toda a população é enganada. O engano nunca é eterno. Chega um momento em que as pessoas cansam de levar chibatadas. Foi assim no Brasil colonial. Os escravos foram se organizando e se insurgindo, fugindo para os quilombos, lugares de liberdade.

        Somos um povo marcado pela escravidão. Foram séculos de chibatadas. Até hoje há uma multidão de gente habituada ao chicote. Há um silêncio ensurdecedor por parte de milhões de escravos no Brasil. A escravidão moderna se refaz, se reinventa e quer crescer. O sistema econômico é poderoso. É tão poderoso que impede as pessoas de enxergarem a realidade.

Quem controla o sistema sabe muito bem que a visão da realidade é atividade perigosa, arriscadamente subversiva. Os poderosos querem contar sempre com um povo fraco e obediente, desprovido de organização, livre da consciência crítica. Esta, para eles, é muito perigosa, pois faz o oprimido colocar para fora da sua mente a imagem opressora do seu senhor. Um povo que é senhor de si mesmo é a grande utopia que faz os homens livres lutarem sem cessar. Lutam porque acreditam noutro mundo possível.

O que fazer diante de tamanha aberração? Não cabe o desespero. Este parece não resolver absolutamente nada. Um povo desesperado não tem futuro porque não tem rumo. Uma pessoa desesperada, de modo geral, é cega. Os poderosos amam situações desesperadores. Não é à toa que eles ganham muito dinheiro em tempos de crise. Só existe crise para os pobres. Estes arcam com as consequências das crises, são acusados de provocá-las, bem como também são obrigados a trabalharem muito para que sejam superadas. São sempre considerados culpados.

Os mais ricos do País nunca tem culpa de nada. A mídia os apresenta como os responsáveis pelo desenvolvimento, como aqueles que somente pensam e fazem o melhor para o País. Na verdade, ocorre o contrário. Quem saqueou a Petrobrás e saqueia os cofres públicos no Brasil? Os pobres? Sabemos muito bem quem são. Os donos das empreiteiras e demais grandes empresários são uns pobres coitados? Nossa classe política é formada por pobres coitados? Reflitamos.

Por mais arriscado que seja, o Brasil precisa, urgentemente, de mulheres e homens capazes de conscientizar e organizar o povo. Precisamos de autênticos líderes políticos: pessoas corajosas que visem o bem comum. Estamos fartos de políticos que são eleitos e se aproveitam dos seus mandatos para saquear as riquezas do povo. Hoje, infelizmente, os inimigos do povo estão na classe política que deveria representá-lo e gerir, com justiça, seu patrimônio.

Neste sentido, é extremamente importante que reflitamos sobre a realidade e procuremos oferecer a nossa contribuição para a construção da verdadeira democracia. Não é verdade que temos uma democracia segura e forte. A realidade mostra que a democracia brasileira é jovem, insegura e fraca. Inúmeros brasileiros são desrespeitados e espancados, diuturnamente.

Os direitos fundamentais, os mais básicos e, portanto, essenciais não são promovidos nem respeitados. Tudo não acontece sequer pela metade. A situação é tensa, mas nem tudo está perdido. Ainda é possível devolver o Brasil aos brasileiros. Trata-se de uma caminhada lenta e sofrida, marcada pelas dores e esperanças de quem acorda cedo para ver o sol nascer, tomar o café quente que desperta e sentir o calor humano das relações que constroem uma sociedade que poderá ser justa e fraterna. Precisamos crer nisso. É possível.

Tiago de França

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