quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A polêmica em torno da relação entre homossexuais e Igreja Católica


    É no mínimo desonesta a acusação que andam fazendo contra o Papa Francisco sobre a questão que intitula estas breves considerações. Vez e outra, o Papa tem apelado para a necessidade da acolhida das pessoas que têm orientação sexual diversa da heterossexualidade. Isso muda a doutrina e a disciplina da Igreja sobre a homossexualidade? Claro que não! Então, por que os tradicionalistas insistem em acusar o Papa de mudar a moral católica neste quesito? A resposta é simples: Porque gostam de polemizar, confundindo a cabeça das pessoas, com o objetivo de levá-las a ver o Papa como inimigo da moral cristã.

Aqui não quero discorrer a respeito da necessidade de a Igreja rever alguns pontos de sua teologia moral. Tal abordagem merece uma apreciação científica, em espaços acadêmicos e culturais dados à pesquisa teológica. Hoje, na Audiência Geral no Vaticano, o Papa pediu mais uma vez que se evitem posturas condenatórias. Não se deve "se esconder no comportamento de condenação". Aqui o Papa toca no ponto central da hipocrisia de muita gente: Esconder-se no comportamento de condenação, ou seja, quando se condena as pessoas, muitos escondem comportamentos abomináveis. No mínimo, condenam no outro o muito que tem em si mesmos.
Qual a lei do cristão? O amor a Deus e ao próximo. Por que não se aceita essa lei? Por que falta a verdadeira fé, o verdadeiro amor e a esperança que salva. Os expedientes condenatórios são expressões evidentes da falta de amor. O cristão pode estar em dia com a lei religiosa, pode ser um católico 100%, mas se não tiver amor, está perdido com sua pretensa fé religiosa. Na Igreja, a falta de amor se evidencia na hipocrisia religiosa, presente nas falas e relações pautadas no juízo e condenação das pessoas. A ninguém Jesus deu o poder para julgar e condenar. Aí está um pecado grave a ser confessado sem demora.
Na Igreja há um grupo de gente maliciosa e inimiga da paz que vive de plantão, vigiando o Papa em suas falas. São iguais a muitos fariseus que viviam espionando Jesus, para pegá-lo em alguma falta e, assim, poderem acusá-lo. Geralmente, essa gente não tem moral nenhuma para acusar quem quer que seja, pois leva uma vida indigna do cristão. Os hipócritas são pecadores, que se dedicam a enxergar pecados na conduta alheia, mas são incapazes de olhar para si mesmos. São deturpadores da verdade, amigos da mentira. Como diz Jesus no Evangelho segundo João: são filhos do diabo, porque este é o pai da mentira e da confusão.
A moral cristã católica a respeito da homossexualidade permanece intocável. Todo católico que gosta de estudar a conhece. Mas esta moral não ensina nem autoriza julgamentos e condenações. As pessoas precisam ser acolhidas como realmente são: com suas virtudes, defeitos e tendências. A Igreja não nasceu para mudar as pessoas. Ninguém muda ninguém. Não se muda a natureza das pessoas. Elas são o que são. Um heterossexual assim se manifesta e pronto. O homossexual da mesma forma. Não há aí doença, nem perturbação, nem maldição, nem destino traçado. Há pessoas, que devem ser respeitadas em sua dignidade e formas de ser.
Deus é o Pai que ama a todos, porque não faz acepção de pessoas. Conhece seus filhos e filhas, e sabe do que são feitos. Deus é amor e ama a todos, santos e pecadores, cristãos e não cristãos, independente da condição ou orientação sexual das pessoas. Quando Deus nos olha, não se interessa, em primeiro lugar, se somos héteros, gays, lésbicas etc. Ele olha a nossa capacidade de amar. O mais importante não é a orientação sexual da pessoa, mas se ela é capaz de amar a Deus e ao próximo. Ninguém será salvo porque é hétero, homo, bi etc., mas porque amou a Deus e ao próximo como a si mesmo.
Quem segue Jesus ama e desperta o amor nas pessoas; ama-as como são, com todos os seus dilemas e possibilidades. A religião tem a função de despertar o amor, a fé e a esperança. Não pode ser lugar de julgamento e condenação. Religião não é tribunal, mas lugar de encontro, amizade, fraternidade. É lugar de se aprender a ser irmão do outro. Este não pode ser visto como inimigo, alguém que deva ser eliminado. Ser cristão não obriga a concordar com a orientação sexual das pessoas, mas exige o respeito, a defesa e a promoção da dignidade da pessoa humana. Quem ainda não assimilou esta dimensão da fé cristã está em dívida com a própria fé em Jesus.
A fé em Jesus rima com a cultura da tolerância e da amizade entre as pessoas. Vivemos numa sociedade marcada pela violência contra as pessoas homossexuais: xingamentos, espancamentos, calúnias, mortes etc. Está gravemente doente a pessoa que agride outra por causa de sua orientação sexual. Em muitos casos, a ignorância é a doença principal dos agressores, que se acham no direito de agredir e eliminar os outros. Todo agressor é um criminoso. A Igreja deve permanecer ao lado das vítimas, porque esta foi e permanece sendo a opção de Jesus, que revelou o Deus dos injustiçados.

Pe. Tiago de França

quinta-feira, 24 de junho de 2021

João Batista: profeta do Altíssimo

 


“Ele reconduzirá muitos do povo de Israel ao Senhor seu Deus” (Lc 1,16).

            Muito conhecida e querida a figura do profeta João Batista na caminhada dos cristãos. Desde o séc. IV se tem notícia de culto a este profeta corajoso, que preparou a chegada do Messias, Jesus de Nazaré. Pregando um batismo de conversão, apontou para o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Denunciando o pecado e o mal alojados no coração humano, ensinou o caminho da conversão.

            “A mão do Senhor estava com ele”, informa-nos o terceiro evangelista (Lc 1,66). Na Bíblia, a mão do Senhor permanece com as mulheres e homens justos, que receberam de Deus uma missão específica, em um determinado tempo e lugar. Todos tinham consciência de sua missão, e sabiam que contavam com a mão do Senhor, que acompanha e apoia todos os que são chamados a participar do plano de Deus. A mão do Senhor é a segurança daqueles que aceitam a missão confiada por Deus.

            Dentro do projeto de Deus, a atividade profética é essencial. Os profetas bíblicos cumpriram fielmente a missão recebida, apesar de suas fragilidades e das diversas circunstâncias nas quais viviam. Transmitiram com fidelidade e ousadia a mensagem de Deus. Em todo tempo e lugar, o Senhor suscita profetas, com a missão de revelar a Sua vontade para a vida e salvação da humanidade. O profeta não fala de si mesmo, mas anuncia o surgimento de uma humanidade nova, alicerçada na justiça e no direito.

            O anúncio desta humanidade nova inclui, necessariamente, a denúncia sistemática das injustiças que ferem a dignidade da pessoa humana. Por causa da denúncia das injustiças, os profetas são, muitas vezes, incompreendidos, perseguidos e mortos. Os que praticam e são coniventes com o mal odeiam os profetas, porque estes não se calam nem podem se calar. A mensagem divina precisa ser anunciada, mesmo que muitos a rejeitem. A semente precisa ser semeada, mesmo que não germine, por causa da dureza do coração das mulheres e homens dominados pelo ódio e pelas ideologias de morte que operam no mundo.

            O profeta não prega ideologias, porque estas visam o interesse de pessoas e grupos; mas prega a vontade de Deus para determinadas situações ou circunstâncias; anuncia o projeto de Deus, e fala, com a autoridade dada por Deus, qual o caminho que se deve seguir. Auxiliado pelo dom do discernimento dos espíritos, aponta para Deus. Habitado pela graça de Deus, fala daquilo que é de Deus, e não se ocupa com os interesses meramente humanos. Ao profeta são revelados os pensamentos de Deus, que estão acima dos pensamentos humanos. Na escuta atenta da voz de Deus, o profeta prepara “para o Senhor um povo bem-disposto” (Lc 1,17).

            O profeta João Batista foi assassinado porque denunciou o fato de o rei Herodes ter tomado para si a mulher do seu irmão Filipe. Enfurecida, Herodíades, que tinha sido mulher de Filipe, procurava uma oportunidade para matá-lo. Encontrando a oportunidade, por ocasião do aniversário do rei, não pensou duas vezes e pediu a cabeça do profeta, que lhe foi trazida em um prato (cf. Mc 6,14-29). João Batista sabia dos riscos que corria, mas nem por isso recuou, porque a mão do Senhor estava com ele.

            Certo de sua missão, o profeta não recua nem se entrega ao medo. Não se deixa amedrontar nem fica preocupado se está ou não agradando às pessoas. Sua missão não é agradar às pessoas, mas anunciar o Reino de Deus. As resistências ao Reino de Deus sempre existiram e continuarão a existir, porque não são todas as pessoas que estão dispostas a aceitar as exigências deste Reino. Há sempre aqueles que trilham caminhos tortuosos, e desejam ser confirmados em suas desventuras. Não cabe ao profeta tolerar nem se calar diante das injustiças. Pelo contrário, a sua missão é a de enfrentá-las, com ternura e vigor, com serenidade e firmeza, com coragem e alegria.

            A profecia será sempre um incômodo para muitos, mas não pode deixar de existir, tanto dentro quanto fora da Igreja. Ninguém jamais conseguirá acabar com a profecia na Igreja e no mundo, porque é obra do Espírito de Deus, que sopra onde, quando e em quem quer. O profeta é pessoa guiada e iluminada pelo Espírito de Deus, e contra este Espírito não há força humana que possa alguma coisa.

Os planos de Deus se realizam, apesar das resistências humanas; e o profeta está a serviço dos planos de Deus. A salvação da humanidade em Cristo Jesus, o Messias, está no centro dos planos de Deus. O profeta João Batista preparou os caminhos para a manifestação da salvação oferecida em Jesus, o Cordeiro.

Hoje, os profetas continuam anunciando esta salvação. Para isso, precisam enfrentar os poderosos deste mundo, os Herodes dos dias atuais, que perseguem e matam milhares de pessoas. Todo profeta conhece a força de Deus, e sabem que os poderosos deste mundo não conhecem nem podem contar com esta força divina. Por isso, seus poderes são frágeis, e no fim de tudo, desaparecem como a fumaça, não sobrando nada além das tristes recordações de seus feitos diabólicos neste mundo. Os profetas, pelo contrário, assim como João Batista, serão sempre lembrados como homens de Deus, filhos da luz e da verdade que liberta. 

Tiago de França

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Irmanados no Corpo e Sangue de Jesus

 


“O sangue de Cristo purificará a nossa consciência das obras mortas, para servirmos ao Deus vivo, pois, em virtude do Espírito eterno, Cristo se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha. Por isso, ele é mediador de uma nova aliança” (Hb 9,14).

            A celebração do Corpo e Sangue de Jesus é memória de sua paixão, morte e ressurreição; é celebração do mistério pascal do Senhor. No centro desse mistério está a entrega de Jesus, o oferecimento de si mesmo a Deus “como vítima sem mancha”. Ele é o Cordeiro imolado, obediente até a morte, e morte de cruz. Ressuscitado, permanece no mundo, cumprindo a sua promessa (cf. Mt 28,20). Reunida em seu nome, a Igreja, comunidade de comunidades e assembleia dos chamados à santidade, observa, perpetuamente, o preceito sublime de celebrar a Eucaristia, sacramento de sua presença real e salvífica (cf. 1 Cor 11,24).

            Eucaristia é comunhão ao redor da mesa; comunhão com Jesus e com os irmãos. Na última ceia (cf. Mc 14,12-16.22-26), Jesus se reúne, partilha o pão e o vinho, canta um hino de louvor ao Criador. “Tomai, isto é o meu corpo”; “Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos”: estas são as palavras de Jesus. O Corpo e o Sangue de Jesus é mais que o pão e o vinho consagrados; é toda a sua vida doada, com total liberdade e gratuidade, para a salvação de toda a humanidade. Por isso, ao participar da mesa eucarística, o discípulo de Cristo assume o compromisso de viver de acordo com a vida doada de Jesus.

            Antes e até Jesus, celebrava-se a antiga aliança que Deus fez com seu povo (cf. Ex 24,3-8). Eram imolados novilhos “como sacrifícios pacíficos ao Senhor”. Fazendo a memória da páscoa judaica, Jesus inaugura a nova e eterna aliança, derramando o seu sangue na cruz, “o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos”. Com seu sangue, ele “entrou no santuário uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna” (Hb 9,12). A Eucaristia contém o mistério da cruz de Cristo, que contempla a sua ressurreição. Os que nela tomam parte devem estar dispostos a vivenciar a experiência da cruz e ressurreição, experiência que transforma o discípulo em missionário do Reino de Deus.

            A Eucaristia abre os olhos dos discípulos de Jesus, para que possam enxergar a vida com os olhos da fé. Essa nova visão da realidade concede a graça da identificação da ação de Deus no mundo. Apesar dos pesares da vida, o Senhor está no mundo, trabalhando diuturnamente. A criação continua sendo recapitulada em Cristo. A celebração da Eucaristia revela este mistério amoroso de redenção da humanidade. A ação ritual da liturgia eucarística faz o discípulo enxergar, compreender, sentir e comprometer-se com a ação redentora de Jesus. A participação na mesa do Senhor realiza o mistério da unificação, ou seja, o discípulo se torna morada de Deus, e Deus faz morada no discípulo. Este se torna um outro Cristo no mundo, capaz de realizar as obras de Deus e de receber a promessa da herança eterna.

            Há um hino eucarístico que reza o seguinte: “Vamos comungar, vamos comungar; comungar na Igreja e na vida dos irmãos”. A comunhão com Jesus exige a comunhão com os irmãos; participar da vida de Jesus significa tomar parte na vida dos irmãos. Por isso, participar da mesa eucarística é assumir os riscos da comunhão fraterna. O amor e a oração aos inimigos e perseguidores estão implícitos no ato de receber a Eucaristia, bem como o serviço generoso, alegre e gratuito aos irmãos e irmãs que sofrem. Na Eucaristia não existe exclusivismos nem indiferença. Ou seja, quem deseja entrar em comunhão com Jesus na Eucaristia precisa refletir se está disposto a entrar em comunhão com o próximo, especialmente os sofredores deste mundo. Ninguém pode receber Jesus na Eucaristia se isolando dos outros, vivendo como se estes não existissem. Eucaristia e indiferença são incompatíveis. Comunga-se para vencer este terrível pecado.

            Falar em comunhão significa promover a unidade no amor. Esta unidade exige humildade, disponibilidade e reconhecimento do outro. Unidade que não significa uniformidade ou padronização, mas aceitação e promoção da diversidade no amor. Antes de comungar, todo fiel católico responde à saudação da paz, dizendo: “O amor de Cristo nos uniu”. Portanto, assume um compromisso de viver a unidade. O Corpo e o Sangue do Senhor asseguram e mantém esta unidade. É um escândalo a participação no Corpo e o Sangue de Cristo sem este compromisso com a unidade que gera a paz. Os inimigos da paz de Cristo somente podem comungar se quiserem assumir um compromisso com a unidade e a paz. Não estão em comunhão com Jesus aqueles que se dedicam às intrigas, promovendo a divisão na Igreja de Jesus.

            Na Eucaristia o Senhor nos ama e nos convida ao amor. São tantas as pessoas necessitadas de amor. Na verdade, de amor todo ser humano é necessitado. São várias as formas de expressão deste amor. Em Cristo, a expressão máxima é a doação total da própria vida nas grandes causas do Reino de Deus: justiça, solidariedade, perdão, ternura, cuidado, alegria... Em Cristo Jesus, o discípulo missionário é sal e luz, fermento na massa, presença amorosa de Deus no mundo. Hoje, milhões de brasileiros sofrem com a falta de trabalho e alimento, com os altos índices de violência, com a falta de vacina e com o luto... Muitas são as oportunidades para viver em comunhão com Jesus nos irmãos e irmãs que sofrem.

            Por estas razões bíblicas e teológicas, que revelam a grandeza e a simplicidade do mistério eucarístico na vida cristã e eclesial, a celebração da Solenidade do Corpo e do Sangue do Senhor deve ir além da beleza da celebração ritual. Os membros do Corpo Místico de Jesus precisam, de fato, sentirem-se membros, purificados e renovados no Sangue do Senhor, para manifestarem, com palavras e ações, a caridade de Cristo; para que todos tenham vida e a tenham em abundância. Em um mundo profundamente marcado pela morte, em tempos de pandemia, a participação no mistério eucarístico deve levar cada fiel discípulo missionário de Jesus a manifestar no mundo a paixão, morte e ressurreição do Senhor. Somente dessa forma, poderão colher os frutos da redenção realizada pelo Senhor.  

Tiago de França

quarta-feira, 28 de abril de 2021

A CPI da Covid e os pecados de omissão

 


             Certa vez, um amigo padre, missionário estrangeiro no Brasil, me falou o seguinte: “Vocês, brasileiros, tem uma mania de não encarar os problemas; vocês gostam de adiar as coisas”. Ao ler as notícias de hoje, principalmente as relacionadas à CPI da Covid, instalada hoje em Brasília, veio à mente essas palavras do amigo padre missionário. Certamente, em todo lugar há os omissos e os procrastinadores. Mas o Brasil tem ganhado destaque nestes dois pontos. De fato, muitos brasileiros tem a mania de fugir dos problemas, pensando que, dessa forma, os problemas deixam de existir.

            O famoso “jeitinho brasileiro” também está inserido nesta cultura da fuga e do adiamento. Em inúmeros setores da sociedade, é comum escutarmos as pessoas falarem: “Depois a gente resolve isso!”, ou “A gente dá um jeitinho”. No caso da CPI da Covid, parlamentares investigarão as ações e omissões do governo, bem como o repasse de verbas durante a pandemia. Uma comissão parlamentar de inquérito tem a missão de investigar. Mas como a política brasileira é contaminada pelo vírus da corrupção, as CPIs já nascem com suspeitas. Há os que querem investigar, e os que querem evitar as investigações.

            O cenário é evidente: houve ações e omissões que provocaram a morte de milhares de brasileiros. Esta é a matéria das investigações. Se os parlamentares se afastarem das posições partidariamente apaixonadas e encararem o problema com seriedade, certamente a CPI encontrará os culpados. E o tempo de investigar é agora. Quando se adia uma investigação, geralmente não se investiga mais. Quando os responsáveis pelas investigações dizem não ter encontrado elementos suficientes, sem terem se ocupado com as investigações, então é porque, claramente, não se quer investigar. Consequência natural e óbvia: reforça-se a cultura da impunidade.

            O governo não quer a CPI da Covid, porque teme que os trabalhos sejam levados a sério e, assim, revelem-se os culpados. Alguém precisa ser responsabilizado pelas consequências do negacionismo que tomou conta do país. A negação da realidade pode conduzir à omissão. Se alguém nega que o vírus é capaz de provocar a morte das pessoas, esse alguém pode permitir que as pessoas morram, sem tomar nenhuma providência para evitar tal tragédia. Não querer enxergar a realidade também conduz à omissão. Quando alguém finge não enxergar o óbvio, não assume a responsabilidade de fazer alguma coisa para evitar o mal.

            Muitas pessoas deixam de falar e agir, porque não querem assumir responsabilidades; recusam-se a se comprometer. Mais do que isso, torcem para o “circo pegar fogo”, mesmo sabendo que também serão atingidas pelo fogo. Vivemos numa sociedade profundamente marcada pela falta de responsabilidade. Muitos dos detentores de poder não exercem com justiça o seu papel, gerando sofrimento e morte. A omissão sempre causa vítimas, sempre gera um mal coletivo. A falta de providência, ou a providência errada pode causar sofrimento e morte. Isso é óbvio, mas as pessoas, geralmente, não pensam nessas coisas. Essa falta de pensamento também constitui omissão. Evita-se o assunto.

            A espiritualidade cristã também fala de omissão. As pessoas podem pecar por pensamentos, palavras, atos e omissões. A omissão é um pecado. Omitir-se é deixar de fazer algum bem necessário à vida em comunidade. Também nas comunidades cristãs os problemas, muitas vezes, não são encarados. Quando não se adia a solução, decide-se de forma equivocada, prejudicando a comunidade. Muitas decisões não visam o bem da comunidade, mas somente o bem individual de muitas pessoas. Tais decisões não estão em sintonia com o projeto eclesial e comunitário, mas estão em função da satisfação do desejo pessoal dos que delas se beneficiam.

            Na Igreja Católica, apesar das dificuldades e resistências, o Papa Francisco tem tocado em algumas feridas abertas. Tocar na ferida é ação que provoca dor e incômodo. A reforma da Igreja passa, necessariamente, por incômodos, porque há aqueles que não querem tal reforma. Defendem que tudo continue do jeito de sempre. Tal posição coaduna-se com a ideia de que o Espírito Santo nada transforma, mas somente confirma o de sempre. Alguns alegam: “Sempre foi feito dessa forma; por que mudar agora?” As pessoas se acostumam, facilmente, com o mesmo, com a rotina, a mesmice, passando a gostar de uma vida insossa. Levam uma “vida espiritual” sem dinamismo, desligada do Evangelho e da ação do Espírito de Jesus.

            Quem se habitua a esse estilo de vida não consegue ser proativo, não tem iniciativa. Portanto, facilmente se omite diante da necessidade de mudanças. Dominada por este espírito mundano de ser, a Igreja se torna letárgica, uma sociedade parada no tempo, impossibilitando a experiência dos necessários rompimentos. A radicalidade do Evangelho passa a ser vista como exagero, passível de apaziguamento. A subjetividade das pessoas passa a ser a norma da vida coletiva, e o gosto de cada um precisa ser satisfeito, sacrificando o bem comum. O eu passa a ser mais importante que o nós. Não se decide pensando nas pessoas, mas na pessoa a ser beneficiada pela decisão.

            Qualquer pessoa pode pecar por omissão, tanto o governo quanto os governados; tanto que tem quanto quem não tem poder em determinada instituição. Apesar dos condicionamentos, toda pessoa goza de uma margem de liberdade para decidir conforme a sua consciência e à luz do Evangelho de Jesus. A experiência de Jesus mostra que a omissão não fez parte de sua vida, pois agia sempre orientado pela vontade do Pai. Ele agia em nome do Pai, porque era um com o Pai (cf. Jo 10,25.30). O mesmo deve fazer todo aquele que deseja ser seu discípulo: agir conforme a vontade do Pai.

            Em todas as situações que exigem decisão, para não ser omisso, deve o discípulo pensar: “O que Jesus faria nessa situação?” Os evangelhos mostram que Jesus pensava sempre no bem das pessoas. Ele não jogava fardos pesados nas costas de ninguém. Também não se omitia nas situações de injustiça. Diante da exploração religiosa, pegou o chicote e expulsões os exploradores do Templo.

Este é apenas um dos exemplos que mostra um Cristo decidido a agir para libertar as pessoas. Até que ponto somos capazes de agir, visando a libertação das pessoas? Ao nosso redor há pessoas sofrendo. Estamos enxergando, ou fingimos não enxergar? Quando decidimos agir, a nossa ação colabora com a opressão, ou com a libertação das pessoas? Ajudamos a carregar a cruz, ou agimos para a cruz se tornar mais pesada e penosa? De nada adianta ficarmos indignados com os políticos omissos, quando também somos omissos no cotidiano de nossa vida. Por fim, cabe pensar nas seguintes palavras atribuídas a Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.

 

Tiago de França

quinta-feira, 8 de abril de 2021

O culto cristão e o radicalismo de muitos cristãos


Desde o início da pandemia temos visto nas redes sociais a proliferação de mensagens de cristãos tidos como radicais, que se expressam com muita violência sobre a limitação do culto cristão; limitação imposta pelos decretos governamentais e pelas orientações dos líderes religiosos que buscam respeitar tais decretos.

O radicalismo não vem de Deus, mas agride as coisas de Deus. Não faz bem às pessoas e faz com que o cristianismo seja rejeitado pelas mulheres e homens de bom senso. Assim como há radicais no Islamismo, que provocam o terrorismo no Oriente Médio e em outras partes do mundo, também no cristianismo estamos assistindo ao crescente surgimento de radicais cristãos: pessoas que usam a Bíblia numa tentativa desesperada de legitimar ideologias de morte.

Jesus Cristo não fazia parte de nenhum grupo adepto do radicalismo. A sua mensagem é radical porque centrada no amor a Deus e ao próximo. O amor é exigente e, portanto, radical, porque capaz de transformar e libertar, integralmente, as pessoas. Mas Jesus, Filho de Deus e Salvador da humanidade, não agredia as pessoas, nem se utilizava do nome de Deus para satanizar pessoas e instituições. Infelizmente, muitos que professam a fé em seu Nome estão caindo nesta tentação avassaladora

Os cristãos radicais costumam satanizar muitas realidades. Um exemplo claro disso é a satanização do novo coronavírus. Muitos estão dizendo que Satanás está usando o vírus para destruir a Igreja de Cristo, e afirmam também que os governantes e juízes que decretam o fechamento transitório das igrejas e templos são agentes de Satanás. Para isso, buscam na Bíblia expressões que sirvam para legitimar suas falas absurdas. Tiram os textos bíblicos de seus contextos e instrumentalizam a Palavra de Deus. Trata-se de uma desprezível manipulação da Palavra de Deus.

O que está escrito no livro do Apocalipse vale para toda a Bíblia: "Se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. E se alguém tirar algo das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará a sua parte da árvore da Vida e da Cidade Santa, que estão descritas neste livro!" (Apocalipse 22,18-19). Usar textos bíblicos para satanizar pessoas e instituições é um pecado gravíssimo, porque constitui falsificação das Sagradas Escrituras.

Além da Bíblia, os radicais cristãos se utilizam de uma interpretação equivocada da Tradição da Igreja. Muitos citam a época da Igreja primitiva para dizer que estamos vivendo situação semelhante. Trata-se de um equívoco. A comparação mostra, com clareza, que não conhecem a Igreja primitiva. Precisam estudar a História da Igreja. O desconhecimento das Escrituras e da História faz com que apareçam tais comparações. Somente em algumas partes do mundo os cristãos têm experimentado perseguições sangrentas. No Brasil não há uma perseguição sistemática aos cristãos, como na Igreja primitiva.

O coronavírus não é uma invenção de Satanás para destruir a Igreja de Cristo. A ciência explica muito bem o surgimento dos vírus e outros agentes nocivos à saúde e ao progresso dos povos. Esta mesma ciência tem a capacidade de buscar soluções possíveis para erradicar tais males, e as vacinas produzidas são uma prova disso. Os adeptos do radicalismo se parecem com aqueles que, no tempo de Jesus - época desprovida de conhecimento científico -, atribuíam a Satanás e seus demônios a origem de inúmeras doenças. É necessário aprender a ler e a interpretar as Sagradas Escrituras; do contrário, muitas aberrações podem ser ditas e feitas em nome de Deus, com base nas mesmas Escrituras Sagradas.

Por fim, cabe ainda considerar que os juízes dos tribunais têm a missão constitucional de resolver os conflitos entre as pessoas. Quando direitos entram em conflito, os tribunais devem resolver a questão. Em matéria de direitos, é preciso considerar que nenhum direito é absoluto. Quando o direito à vida entra em conflito com o direito à prática pública do culto, prevalece o direito à vida. Isso é óbvio. Ninguém precisa ser jurista para compreender isso. Para cultuar a Deus, o crente precisa estar vivo. Os mortos não louvam ao Senhor (cf. Salmo 115,17).

O culto cristão está para além das práticas religiosas realizadas nas igrejas e templos. O próprio Jesus ensinou no sermão da montanha que se deve orar ao Pai com sinceridade de coração a partir de qualquer lugar (cf. Mateus 6,5-6), porque Deus está em toda parte. É preciso aprender a adorar ao Pai "em espírito e verdade" (João 4,24).

O culto nas igrejas e templos é muito importante para manter as comunidades unidas e animadas, porque a fé cristã é essencialmente comunitária, mas a suspensão provisória do culto não deve ser motivo para desespero. O que o Senhor espera de cada fiel é a prática cotidiana do amor. Não adianta o culto nas igrejas e templos se o coração permanece distante do Senhor. Cabe ainda recordar uma palavra oportuna para este momento, escrita por São Tiago: "Com efeito, a religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo" (Tiago 1,27).

O momento reclama o amor a Deus e aos irmãos. Há muita gente precisando de ajuda. Muitas pessoas estão passando fome. Outras estão angustiadas, ansiosas e depressivas. Inúmeras famílias enlutadas. Portanto, muitas ocasiões para a prática do amor ao próximo. Os adeptos do radicalismo precisam abandonar o barulho que fazem nas redes sociais para terem tempo para a prática da caridade. No dia do juízo final, o Senhor não perguntará se o fiel defendeu a religião e suas doutrinas. Neste sentido, vale a leitura e meditação de Mateus 25,31-46, que fala do julgamento segundo o amor. Deus salva os que amam, porque o mais importante é o amor, não a prática rigorosa da lei e da religião. 

Tiago de França

segunda-feira, 8 de março de 2021

Dia Internacional da Mulher

 


           Não há muito o que comemorar neste dia 8 de março – Dia Internacional da Mulher. No Brasil, os índices de violência contra a mulher são preocupantes. Segundo o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, em 2020, foram registradas 105.821 denúncias de violência contra a mulher. A maioria das vítimas é pobre, da periferia, com pouca escolaridade e autodeclarada como de cor parda, com idade entre 35 e 39 anos. O perfil mais comum dos agressores é de homens brancos, com idade entre 35 e 39 anos.

            A pandemia contribuiu para piorar a situação, ou torná-la mais explícita. Segundo um levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os casos de feminicídio cresceram 22,2% em março e abril de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. A alta dos crimes ocorreu em 12 estados. A Lei do Feminicídio alterou o Código Penal, incluindo como qualificador do crime de homicídio o feminicídio, que também se tornou crime hediondo, com penalidades mais altas.

            A Lei 13.104/15 (Lei do Feminicídio) prevê duas situações para a sua aplicação: que o crime resulte de violência doméstica, hipótese em que o autor do crime é um familiar da vítima ou já manteve algum laço afetivo com ela; que o crime resulte de discriminação de gênero (misoginia/coisificação da mulher), sendo o autor conhecido ou não da vítima. A misoginia ultrapassa o machismo por se caracterizar como um tipo específico de ódio à mulher. Trata-se de uma forte repulsa à figura feminina. O Brasil é o quinto país do mundo com maior número de feminicídios.

            Segundo estudos psicanalíticos, o misógino sente prazer ao ferir o sentimento feminino. A situação chega ao ponto de o cérebro liberar dopamina, neurotransmissor do prazer, o que leva o criminoso a repetir o comportamento. Muitos misóginos são facilmente identificados nas redes sociais, pois se aproveitam do “anonimato” para se esconderem por trás da tela do computador ou celular. Essas redes facilitam a ação dos criminosos, que, de forma impiedosa, extravasam ódio e ofensas às mulheres. Os estudos também indicam que, para muitos homens, a misoginia funciona como um escudo que os ajuda a esconder dúvidas ou problemas relacionados à própria masculinidade.

            Os misóginos costumam se aproveitar das mulheres mais frágeis e inseguras, que sofrem com baixa autoestima e, por isso mesmo, são menos assertivas. Inicialmente, o homem misógino é cordial, educado, amoroso e atencioso; mas com o passar do tempo, torna-se intolerante, possessivo, autoritário e violento. Oprime física e psicologicamente suas vítimas. Costuma matá-las aos poucos, sufocando-as com sutileza e frieza. É um monstro travestido de cordeiro.

            A ética cristã ensina que a mulher não é, nem pode ser considerada inferior ao homem. Ensina também que todo homem que trata a mulher com desprezo e ódio não pode, jamais, afirmar que segue Jesus, porque a fé cristã é incompatível com o desprezo do outro. Falsos cristãos tratam as mulheres com desprezo e indiferença. Não há um versículo sequer na Bíblia que possa justificar tal forma de proceder. Quem afirma o contrário, na verdade, deturpa o sentido das Sagradas Escrituras com o objetivo de justificar a violência contra a mulher.

            Jesus se relacionou com as mulheres com estima e respeito, promovendo a sua dignidade (cf. Jo 4,1-26; 8,1-11; Lc 7,36-50; 10,38-42) e libertando-as do poder opressor dos homens moralistas e sedentos de violência. Maria Madalena, discípula do Senhor, foi a primeira testemunha da ressurreição (cf. Jo 20,1-18). O próprio Jesus se encarnou no seio virginal de Maria, uma pobre mulher de Nazaré da Galileia (cf. Mt 1,18-24; Lc 2,7; Jo 1,14). Quis Deus que seu Filho amado se encarnasse no seio de uma mulher, bendita entre todas as mulheres (cf. Lc 1,42).

            Neste Dia Internacional na Mulher é necessário não somente reconhecer o seu lugar e importância para o desenvolvimento da humanidade, como também apoiar todas as iniciativas de defesa e promoção de seus direitos. É necessário também denunciar as injustiças que as afligem e ferem. Todas as formas de violência contra a mulher são inaceitáveis, porque jamais podem ser justificadas. Nenhum tipo de violência se justifica.

O art. 5º, inciso I da Constituição da República é claro e preciso ao afirmar que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. É preciso lutar, incansavelmente, para que esta igualdade seja real, afetiva e efetiva. Independentemente das circunstâncias, a violação dessa igualdade constitui injustiça que não pode ser tolerada. O sangue das vítimas clama por justiça. Não há cidadania autêntica, nem democracia sem o reconhecimento, defesa e promoção dos direitos da mulher.

O Disque 100 e o Ligue 180 são canais gratuitos e confiáveis para denúncias de violações de direitos humanos e de violência contra a mulher. Estes serviços funcionam 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. Denunciar é preciso. Omitir-se é tornar-se conivente com as violações dos direitos e com a violência contra a mulher. Se os bons permanecem em silêncio, os maus dominam, oprimem e matam. Todo ser humano é chamado a ser livre e feliz; não há liberdade, nem felicidade onde reinam a violência e a morte.

Tiago de França

quinta-feira, 4 de março de 2021

Breves apontamentos sobre os delitos contra a unidade da Igreja Católica

 


“Lembremos bem: ser parte da Igreja quer dizer ser unido a Cristo e receber Dele a vida divina que nos faz viver como cristãos (…) e quer dizer também aprender a superar personalismos e divisões” (Papa Francisco, catequese do dia 19/06/2013). 

            Nestes breves apontamentos, desejo compartilhar alguns conceitos expressos no Código de Direito Canônico, que falam sobre delitos contra a unidade da Igreja Católica. A situação atual, marcada pelo acirramento de conflitos no seio da Igreja reclama a nossa atenção e acende um sinal de alerta no que se refere à unidade da Igreja.

Não somente a Palavra de Deus exige a comunhão da Igreja, mas também a legislação canônica em vigor, que precisa ser conhecida, para que haja maior clareza da necessidade, importância e urgência da comunhão eclesial. Muitas vezes, a violação da lei ocorre por falta de conhecimento, o que não livra o violador da justa pena prevista na própria lei.

1. Apostasia, heresia e cisma

            O Livro VI do Código de Direito Canônico, promulgado por São João Paulo II em 1983, trata das sanções na Igreja. Os delitos contra a religião e a unidade da Igreja se encontram no Título I da II Parte. Para a nossa abordagem, interessa-nos o cânon 1.364, §§1 e 2, onde se preceitua o que se segue:

Cân. 1.364 - §1. O apóstata da fé, o herege ou o cismático incorre em excomunhão latae sententiae, salvo a prescrição do cân. 194, §1, n. 2; além disso, o clérigo pode ser punido com as penas mencionadas no cân. 1336, §1, nn. 1, 2 e 3.

§ 2. Se a prolongada contumácia ou a gravidade do escândalo o exige, podem-se acrescentar outras penas não excetuada a demissão do estado clerical.

            Para não dar margem a injustiças decorrentes de interpretações equivocadas, o próprio Código traz os conceitos de apostasia, heresia e cisma, expressos no livro III (Do múnus de ensinar da Igreja). Vejamos:

Cân. 751 – Chama-se heresia a negação pertinaz, após a recepção do batismo, de qualquer verdade que se deva crer com fé divina e católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dela; apostasia, o repúdio total da fé cristã; cisma, a recusa de sujeição ao Sumo Pontífice ou de comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos.

            Para que se configure heresia, a verdade da fé é negada de forma clara e continuada. Deve a culpa estar claramente verificada. Em outras palavras, de forma obstinada, o herege nega ou coloca em dúvida uma ou várias verdades de fé. Trata-se de postura pertinaz, ou seja, que dura no tempo, praticada com insistência. Na apostasia, temos uma situação mais gravosa, que se configura no repúdio total da fé cristã. Tendo sido batizado e professado a fé, o apóstata se volta contra a mesma fé, repudiando-a plenamente.

            O momento atual parece não ser muito marcado por hereges e apóstatas, que, certamente, devem existir. Facilmente, verificamos a ação deliberada de católicos que distorcem a doutrina da Igreja, negando verdades fundamentais da fé. Ora fazem de forma propositada, ora de forma inconsciente.

A distorção é negação, porque não se aceita o que a Igreja ensina. Não aceitando, rejeita-se, e tal rejeição é uma forma dissimilada (indireta/implícita) de negação. Cada caso deve ser verificado, para saber da clareza e da consciência dos que, supostamente, cometem esse tipo de delito. A heresia requer uma avaliação mais rigorosa, nos termos da lei. A apostasia parece ser mais fácil de ser identificada, porque se trata de repúdio total à fé cristã.

Na situação atual, caracterizada por agressões ao Papa, ao Colégio dos Bispos e a Bispos determinados, encontramos manifestações, nitidamente, cismáticas. Basta verificar o teor das falas e/ou posicionamentos de inúmeros católicos, principalmente nas redes sociais, para constatar que se tratam de católicos cismáticos.

A lei canônica fala de recusa de sujeição ao Sumo Pontífice. O que significa essa sujeição? Na Igreja Católica, o Papa é sucessor de Pedro, Bispo da Diocese de Roma, cabeça do Colégio dos Bispos, Vigário de Cristo, Pastor da Igreja universal e detentor do poder ordinário supremo, pleno, imediato e universal (cf. Cân. 331; constituição dogmática Pastor Aeternus). Além dessas prerrogativas, também acumula a função de Chefe do Estado da Cidade do Vaticano. Estes poderes podem sempre ser exercidos livremente.

A sujeição de que fala a lei canônica não é sinônimo de subserviência, nem de obediência cega. É possível que, respeitosamente, um cristão católico não possa se identificar com alguma palavra ou posicionamento do Papa, mas em matéria de doutrina sobre a fé e os costumes, cabe a todo católico observar com “religioso obséquio de inteligência e vontade” (cf. Cân. 752).

Devem os fiéis evitar tudo o que não estiver de acordo com a doutrina que o Papa e o Colégio dos Bispos enunciam sobre a fé e os costumes, mesmo quando não tenham a intenção de proclamá-la por ato definitivo. Além deste dever de observância em matéria doutrinal, cabe a todo fiel católico o respeito e a obediência quanto às decisões emanadas pelo Papa e pelos Bispos, também sobre questões disciplinares. Entende-se que tais decisões visam promover a disciplina eclesiástica e a comunhão eclesial, considerando a diversidades das culturas e dos costumes.

O cânon 751 também fala de recusa à comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos. A Igreja somente cresce na comunhão, que significa união com Deus e com os irmãos que professam a mesma fé. Todo fiel que se dedica a disseminar o ódio, criando e veiculando mentiras sobre os ministros sagrados e demais membros da Igreja, tornam-se inimigos da comunhão eclesial, ferindo-a, gravemente. É o que tem ocorrido, ultimamente.

Nas redes sociais, pessoas e grupos tem se dedicado a caluniar e difamar o Papa Francisco, a Conferência dos Bispos e alguns bispos, mais especificamente. Utilizam-se de notícias falsas e ofensas de toda sorte, numa tentativa violenta de deslegitimar o Pontífice e inúmeros Bispos. Além disso, fazem leitura seletiva de documentos da Igreja, tirando-os dos contextos nos quais foram elaborados, bem como deturpando o sentido dos mesmos. Utilizam as Sagradas Escrituras para difamar, julgar e condenar pessoas e instituições eclesiásticas. Há também os que se recusam a aceitar o pontificado do Papa Francisco, questionando, assim, a legitimidade do conclave que o elegeu.

2. A punição de clérigos apóstatas, hereges e cismáticos

            O cânon 1.364, §1 fala que os que praticam apostasia, heresia e cisma incorrem em excomunhão latae sententiae, ou seja, logo que cometem o delito, sem nenhuma intervenção de autoridade eclesiástica, já estão excomungados. Portanto, não estão mais em comunhão com a Igreja, mas fora desta. Trata-se de excomunhão automática. Isso vale tanto para leigos quanto para clérigos (ministros ordenados) que cometam tais delitos.

            No caso de clérigo, o supracitado cânon prescreve a punição com as penas previstas no cânon 1.336, §1, nn. 1, 2 e 3:

1º proibição ou obrigação de morar em determinado lugar ou território;

2º privação de um poder, ofício, encargo, direito, privilégio, faculdade, graça, título ou insígnia, mesmo meramente honorífica;

3º proibição de exercer o que é mencionado no n. 2, ou proibição de exercer em determinado lugar ou também fora de determinado lugar; essas proibições, porém, nunca são sob pena de nulidade.

            O rol de penas previstas no cânon 1.336 não é taxativo, mas exemplificativo, conferindo ao Ordinário o poder de escolha. Se aplicada uma destas penas, o clérigo insistir no cometimento do delito, podem-se acrescentar outras penas; e se estas se mostrarem ineficazes, pode-se demiti-lo do estado clerical. Dependendo da gravidade do escândalo, pode-se agir da mesma forma, ou seja, aplicar outras penas, ou, não sendo suficientes, decrete-se a demissão do estado clerical. É o que dispõe o n. 2 do cânon 1.364.

            No cânon 1.373 há previsão de punições (interdito ou outras justas penas) para os católicos, clérigos ou leigos, que excitam publicamente aversão ou ódio contra a Sé Apostólica ou contra o Ordinário (Bispo ou Arcebispo), em razão de algum ato de poder ou ministério eclesiástico, ou incitam os fiéis à desobediência a eles. O interdito se assemelha à excomunhão, porém, é mais brando, pois possui efeitos de menor alcance. Pelo interdito há uma suspensão parcial da comunhão visível. Incorrem nas penas previstas neste cânon os que atuam em campanhas difamatórias contra o Pontífice e os Bispos. A ofensa ao Pontífice constitui ofensa à Sé Apostólica.

            A Igreja tem o legítimo poder de privar dos bens que ela administra (sacramentos, ofícios, ministérios etc.). No rol das penas e punições previstas no Código, há algumas censuras aos que são excomungados. A excomunhão é a censura mais grave, pois coloca a pessoa fora da comunhão visível da Igreja. A censura é uma pena medicinal, que priva a pessoa dos direitos inerentes à comunhão da Igreja. Eis as censuras impostas aos que são automaticamente excomungados:

Cân. 1.331 - §1. Ao excomungado proíbe-se:

1º ter qualquer participação ministerial na celebração do sacrifício da Eucaristia ou em quaisquer outras cerimônias de culto;

2º celebrar sacramentos ou sacramentais e receber sacramentos;

3º exercer quaisquer ofícios, ministérios ou encargos eclesiásticos ou praticar atos de regime.

            Como se vê, a excomunhão é sanção gravosa, pois tira da pessoa a comunhão com a Igreja, adquirida pelo Batismo. No Código há outras proibições impostas aos excomungados: incapacidade de lucrar indulgência (cf. cân. 996); inabilidade para votar e para participar de associação de fieis (cf. cânones 171,§1 e 316); proibição de receber a Eucaristia (cân. 915), entre outras.            

3. A unidade da Igreja e a aplicação da lei penal canônica

            Algumas pessoas discordam da utilização da lei penal canônica para salvaguardar a unidade da Igreja. A lei penal existe em vista da caridade evangélica; melhor dito, esta é o fundamento daquela. Discorrendo sobre a finalidade do Código, diz o Papa São João Paulo II na Constituição Apostólica de promulgação do Código:

“Torna-se bem claro, pois, que o objetivo do Código não é, de forma alguma, substituir na vida da Igreja dos fiéis, a fé, a graça, os carismas, nem muito menos a caridade. Pelo contrário, sua finalidade é, antes, criar na sociedade eclesial uma ordem que, dando primazia ao amor, à graça e aos carismas, facilite ao mesmo tempo o seu desenvolvimento orgânico na vida, seja da sociedade eclesial, seja de cada um de seus membros”.

            O Papa é claro em suas palavras: a finalidade do Código é criar uma ordem na sociedade eclesial, facilitando o desenvolvimento do amor, da graça e dos carismas na vida da Igreja e de seus membros. Os delitos contra a unidade da Igreja causam desordem, portanto, desarmonia e confusão. As divisões são produzidas por quem, obstinada e sistematicamente, dissemina o ódio, utilizando-se de todos os meios possíveis. Neste sentido, as redes sociais, vergonhosamente, transformaram-se em campo de batalha, onde se manifestam pessoas que parecem desconhecer o significado do amor, da graça e dos carismas.

            A lei penal visa restabelecer e assegurar a comunhão da Igreja, que é um bem jurídico fundamental. A unidade da Igreja também depende da atuação dos responsáveis pela aplicação da lei, que com justiça e misericórdia, não podem deixar de aplicá-la. Quando a unidade está ameaçada é necessário agir com firmeza, para que os que cometem tais delitos saibam que a Igreja não é Casa da desordem e/ou da anarquia, mas da misericórdia, da justiça e da paz. Toda a Igreja sofre com as divisões, e reclama por justiça, para que se restabeleçam a unidade e a paz. Uma Igreja dividida é incapaz de falar de unidade e paz ao mundo dilacerado por discórdias.

            A responsabilidade pela unidade da Igreja é de todos aqueles que nela receberam o Batismo. O apelo de Jesus é claro e veemente: “Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti. Que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21). Cada membro da Igreja precisa crescer em espírito de pertença e comunhão. Na Igreja cabem todos, porque nasceu para acolher a todos, sem proselitismo, nem acepção de pessoas.

Superando o personalismo se descobre que todos são igualmente importantes, porque gozam da mesma dignidade de filhos e filhas de Deus. É na comunhão fraterna que a Igreja cresce e cumpre a sua missão. Nenhum batizado deveria se insurgir contra seus irmãos, porque tal atitude fere o Corpo místico de Cristo e, consequentemente, vai contra a Cabeça da Igreja, que é o próprio Cristo. Todos os que militam contra a unidade da Igreja se colocam, por si mesmos, fora dela. Isso contraria a vontade de Deus, expressa nas palavras de Jesus e no testemunho de Jesus.

Seminarista Tiago de França