quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Vocação: chamados a servir


Eis o que disse Jesus a Simão e seu irmão André: “Sigam-me, e eu farei vocês se tornarem pescadores de homens” (Mc 1, 17). Este mesmo convite é estendido a toda pessoa que aceita Jesus e é batizada em seu nome. A presente reflexão tem como pretensão reanimar o chamado de Jesus e aprofundar este chamado em vista da evangelização do mundo. Neste mês de agosto a Igreja volta seu olhar para um assunto fundamental do conteúdo de nossa fé: o chamado de Deus.
Refletir sobre o chamado de Deus é uma necessidade constante de toda pessoa que se sente chamada pelo Senhor. Pois, para sermos seguidores de Jesus precisamos conhecê-lo. Vamos tentar responder às questões:
- Quem nos chama? Como nos chama?
- O que devo responder? Como responder?
- O que fazer depois de uma resposta madura e consciente?

A primeira frase do nº 129 do Documento de Aparecida afirma: “Por assim dizer, Deus Pai sai de si para nos chamar a participar de sua vida e de sua glória”. Somos chamados a participar da vida de Deus e de sua glória. Deus quer partilhar de sua intimidade conosco. Participar da vida de uma pessoa é sinal de amor e confiança. “Por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne” (Gn 2, 24). A união do homem e da mulher prefigura nossa união com Deus. Assim como o homem se torna uma só carne unindo-se à mulher, todo ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27), é chamado à participar de sua divindade, de sua vida. Só o ser humano, entre todos os seres vivos da terra, é que tem esse privilégio. Como participar da vida divina? Esta é uma questão que foi pensada e meditada desde os primórdios do povo de Deus no antigo Israel até nossos dias. Os Padres da Igreja são unânimes em dizer que o nosso fim último é o próprio Deus. A comunidade dos cristãos pertence a Cristo. Eis o que afirma a Apóstolo Paulo: “... mas vocês são de Cristo e Cristo é de Deus” (1 Cor 3, 23). Nós pertencemos a Deus. Ele é que é nosso guia. A vida divina não está fora de nosso mundo. Vivemos uma vida com Deus neste mundo. Antes de tudo, Deus nos chama à vida. Esta vida é divina porque está ligada a Deus. Aí entra o papel da religião: religar o gênero humano a Deus. Participar da vida divina significa crer que Deus é vida e a partir dessa crença, agir conforme a vontade de Deus. Quem aspira a vida divina precisa obedecer a vontade de Deus. Para viver com Deus precisamos saber onde ele está e como está agindo. Onde está Deus? Na liturgia não cansamos de responder: “Ele está no meio de nós!” E Jesus nos garantiu: “Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20). O mesmo evangelista confirma o que disse o profeta: “Ele será chamado de Emanuel, que quer dizer: Deus está conosco” (1, 23). Não há dúvidas de que Jesus permanece em nosso meio e participa na construção do Reino de Deus. A nossa glória está na alegria de sabermos que Deus não nos abandonou em meio às trevas de nossos erros. Ele nos chama a sermos seguidores de seu Filho Jesus Cristo. Aproximemo-nos, pois, de Jesus para conhecê-lo melhor. Esse aproximar-se nos revela a resposta à indagação: Como ele nos chama? Não esperemos que Deus nos chama por meio de visões, sonhos ou êxtases. Ele nos chama a partir de nossa vida, de nossa realidade. A partir da experiência e da vocação de Jesus aprendemos que Deus não é um enigma, mas um Pai amoroso que se revelou nas pessoas e situações simples da vida humana. Em Jesus, Deus se tornou humano para ser compreendido e amado por aqueles e aquelas que foram criados à sua imagem e semelhança. Deus se encarnou na história da humanidade. Este foi seu querer. Se não compreendermos a encarnação divina na história humana, não compreenderemos a nossa verdadeira vocação. O ser humano compreende a si mesmo a partir de sua compreensão de Deus. Se somos imagem e semelhança de Deus, ao compreender este Deus estaremos compreendendo a nós mesmos. Compreender e conhecer a Deus não quer dizer que devemos ser doutores em Teologia. Vejamos a importância que o evangelista dá ao conhecimento de Deus, quando cita as palavras de Jesus: “Ora, a vida eterna é esta: que eles conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3). Conhecer a Deus e a Jesus é possuir já neste mundo a vida eterna. Para alcançar a sabedoria divina e/ou conhecer a Deus não é necessário tornar-se sábio ou inteligente, pois a estes o Senhor não se revela (Cf. Mt 11, 25). Deus nos chama por meio de nossa vida. A partir de uma leitura evangélica podemos afirmar que ele se torna mais presente nos momentos mais sofridos da vida, especialmente da vida dos pobres. Estes nos revelam a vontade de Deus. Deus nos fala através dos pobres. A experiência dos pobres mostra o poder e a presença de Deus na história. Quem ignorar os pobres está ignorando o próprio Deus. Assim sendo, o clamor dos pobres torna-se a voz e o clamor de Deus. Isso explica a paixão de Jesus pelos pobres, esquecidos e marginalizados das sociedades de todos os tempos. Ele nos chama a sermos promotores da vida. E os pobres, que são massacrados pelo sistema neoliberal, são os principais destinatários da salvação. Ignorar esta verdade é não entender da verdade do Evangelho de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres” (Lc 4, 18). Esta é a verdade e não há outra. Desviar o sentido desta palavra é se opor à vontade de Deus que se manifestou nas ações de Jesus para com os pobres.
Qual a nossa resposta diante do chamado de Deus? E como responder a este chamado? A resposta a estas questões damos com a vida. O grande pacifista da humanidade, Mahatma Gandhi, disse: “Não tenho mensagem para dizer, minha mensagem é a minha vida”. Toda a vida de uma pessoa que segue Jesus deve ser uma resposta definitiva ao chamado de Deus. Para respondermos a Deus precisamos saber antes respondermos a outra pergunta: Para que Deus me chama? É indiscutível que Deus nos chama. Isso é uma certeza. Deus chama a todo ser humano para o bem, para fazer o bem. Cada pessoa tem sua maneira de ser e dessa forma, chamada a fazer o bem a seu modo. Não importa a religião nem a condição da pessoa, importa escutarmos a voz de Deus e dar-lhe uma resposta madura e consciente. “Senhor, que queres que eu faça?” Ele nos dá sua resposta, porque se mostrou necessitado de nossa ação. Deus precisa de nós? Isso mesmo! Ele quis partilhar sua vida conosco e isto interpela nossa participação. Essa participação na vida divina é recíproca. A nossa vida se une a Deus e Ele se solidariza conosco. Responder a Deus é colocar-se a seu serviço. Quem se opõe a servir não pode dizer que respondeu ao chamado de Deus, pois descobrimos os verdadeiros seguidores de Jesus a partir do serviço que presta à comunidade cristã. O serviço fraterno, que é o amor ao próximo, é a marca indelével do seguimento de Jesus, ou seja, quem não ama não segue Jesus. O amor é a condição do seguimento, é a marca que confirma e identifica. A resposta ao chamado deve ser madura e consciente, pois precisamos viver conscientemente a opção de seguir Jesus. Seguir Jesus é uma opção, porque temos outras opções que o mundo nos coloca. Somos livres para optarmos por seguir Jesus. Quem faz essa opção não pode colocar a mão no arado e olhar para trás (Cf. Lc 9, 62). Atentos a realidade e aos sinais dos tempos, somos chamamos a discernir o chamado de Deus. Deus nos chama em função da construção do Reino de Deus. O chamado é algo pessoal: Deus chama a cada pessoa pelo nome. Mas a resposta é coletiva: chamados a servir aos irmãos e irmãs. Por isso, separar vocação de serviço é algo impossível. Falso profeta é aquele que afirma ser enviado por Deus ou consagrado ao Senhor, mas que se recusa a servir à comunidade. Conhecemos os discípulos de Jesus pelo amor serviçal praticado na vida.
Em nosso atual contexto de mundo e de Igreja o serviço fraterno torna-se cada vez mais desafiador. O documento Gaudium et Spes nº 17 afirma: “Mas é só na liberdade que o homem pode se converter ao bem”. Isso significa que a vocação cristã não pode ser vivida fora da liberdade. Precisamos ser livres e libertar as pessoas para o seguimento de Jesus. O teólogo José Comblin afirmou: “Uma libertação integral exige um processo pelo qual cada pessoa se liberta a si mesma e desfaz todos os laços que a mantêm presa ao passado, para construir laços de uma sociedade livre” (Cf. O espírito Santo e a Libertação. Série II. Petrópolis, 1987, p. 160). Cada pessoa é convidada a se libertar. Paulo Freire, famoso cientista da educação, costumava dizer que “ninguém liberta ninguém, nos libertamos em comunidade”. Os cristãos, especialmente os católicos, possuem um peso muito grande na maneira de ser Igreja, que é a tradição. A grande maioria de nossos católicos está presa e até escrava da tradição. Vivenciar o chamado de Deus sendo escravo da tradição é impossível. Não é que a tradição em si mesma seja um mal na Igreja. O que é preciso é absorver da tradição aquilo que é bom e que pode ser vivido em nossos dias. Construiu-se uma Igreja espiritualista, à margem da sociedade humana. Pensaram uma sociedade misteriosa e espiritual implantada no mundo, mas sem contato com ele. Essa é a Igreja da Cristandade, que predominou na Idade Média. Disse Dom Pedro Casaldáliga, Bispo Emérito de São Félix do Araguaia, MT: “A Igreja era virgem e pura enquanto habitava as catacumbas. Quando saiu das catacumbas se amasiou com o império” (Em entrevista a Caros Amigos, SP, fevereiro de 2000). Não precisamos citar os pecados da Igreja do passado e do presente, pois já são bastante conhecidos. Este desprendimento do passado é uma necessidade urgente para muitos fiéis e clérigos de nossa Igreja. Esta prisão ideológica e doutrinal em relação à Cristandade e à visão de Igreja construída pelo Concílio de Trento está impossibilitando a muitos a viver coerentemente a vocação cristã. Esta prisão faz um mal que é ainda pior: causa conflito entre os cristãos da mesma Igreja. Uns aceitam o Vaticano II e buscam traçar sua história vocacional segundo seus princípios e decisões, outros consideram o Vaticano II um erro por parte da Igreja e ainda ousam afirmar que o Vaticano II dispersou os cristãos e desorganizou a Igreja. O que o chamado de Deus tem a ver com isso? Todo cristão age conforme a doutrina que crer. Se creio na doutrina de Jesus, minhas ações condizem com as de Jesus. A doutrina da Igreja busca se configurar a doutrina de Jesus. Se a visão de Igreja é a de Trento, então irei agir como se estivesse nos tempos de Trento. Foi isso que preocupou o Santo Padre João XXIII e o levou a convocar um novo Concílio. A proposta dele foi o aggiornamento, palavra italiana que em português podemos traduzir por atualizar-se, atualização. O Papa bom propôs a atualização dos princípios da Igreja à realidade. Uma atualização prudente e coerente. Pessoalmente, penso que somente pelo fato de o Papa João XXIII ter tido a coragem profética e evangélica de convocar um novo Concílio com tal proposta, já demonstra sua fidelidade à missão apostólica e sua santidade pessoal. Foi um Papa que escutou e atendeu aos apelos do Espírito que assiste a Igreja ao longo da história. Diante disso, se não tivermos a coragem de nos desprendermos de nossa velha catequese, então fica difícil construirmos a Igreja missionária sonhada pelos Bispos reunidos na V CELAM, em Aparecida, SP. Na verdade, esta Igreja missionária é um sonho de todos os católicos de boa vontade que acreditam na proposta do Concílio Vaticano II. A formação teológica de nossos Seminários precisa se converter neste sentido, pois do contrário, continuaremos alimentando uma Igreja que já faleceu e foi sepultada pela história. A grande maioria de católicos que não aceitam a ressurreição desta “Igreja falecida” espera de nós o aggiornamento proposto pelo Papa João XXIII. A revisão do estado presbiteral em nossa atual Igreja é uma questão de urgência, pois a mentalidade de nossos fiéis está mudando e eles não estão aceitando mais certos comportamentos e homilias que não correspondem com a realidade. Na Sessão Inaugural da V CELAM, em Aparecida, SP o Papa Bento XVI propõe que os sacerdotes “tem de ser, como Jesus, um homem que procure, através da oração, o rosto e a vontade de Deus, cultivando igualmente sua preparação cultural e intelectual”. Uma boa preparação intelectual e cultural possibilita ao leigo e ao presbítero ter uma visão ampla e aberta da realidade e da Igreja.
Uma mente aberta não ignora as novidades que o Espírito faz brotar no seio da Igreja. O novo sempre causou medo naqueles que são inimigos das mudanças, mas estas são urgentemente necessárias. Mudar de mentalidade é desarmar-se e ir ao encontro da sociedade secularizada e globalizada de nossos dias, sem hipocrisias nem dogmatismos. O seminarista de hoje é o padre de amanhã falando de Deus ao mundo. Caso se recuse a fazer uma leitura orante, evangélica e coerente da realidade da vida no mundo, por mais que fale bonito às multidões, num curto intervalo de tempo tudo cairá no esquecimento! A mudança de mentalidade na Igreja e na sociedade exige um programa de formação que vise a conscientização das pessoas e o pleno conhecimento da vontade de Deus e seu projeto. Trata-se de um caminho exaustivo, pois não é fácil renunciar a convicções que foram construídas e ensinadas durante séculos. Exige-se também uma revisão nas estruturas da Igreja, seus organismos, dioceses e congregações; pois a história já provou que as estruturas têm atrapalhado bastante na evangelização do povo de Deus. Tudo isso requer abertura e boa vontade. Tais transformações devem ocorrer sábia e prudentemente, na fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo. Cada vocação na Igreja, no silêncio e na perseverança, cofiando na graça e na misericórdia de Deus, é chamada a ir dando passos rumo às grandes transformações; pois no Reino de Deus as coisas acontecem aos poucos, lentamente. O nosso Deus é paciente e bondoso, ele não está preocupado com o tempo, mas com a felicidade humana que se concretizará plenamente na plenitude do Reino entre nós. A história também nos mostra, que apesar das fraquezas, a Igreja tem dado alguns passos rumo à conversão. O pedido de perdão realizado pelo Papa João Paulo II na abertura do Terceiro Milênio foi um sinal positivo. Quando se fala em mudança de mentalidade, o lugar em que a mesma pode ocorrer eficazmente é na formação seminarística, pois os padres são na Igreja e para a Igreja, construtores de opinião. E se eles opinam de forma equivocada, infelizmente levam a muitas pessoas ao erro e ao anti-Reino. Faço votos de que o Espírito de Amor, que sonda até as profundezas de Deus (Cf. 1 Cor 2, 10) nos ajude no nosso processo de conversão. Que São Vicente de Paulo nos ajude com sua intercessão a sermos fiéis seguidores de Jesus na fidelidade aos pobres.

Tiago de França da Silva,
Seminarista

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