quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Um olhar sobre a liturgia


A liturgia é a expressão celebrada da vida do povo de Deus. A vida do povo de Deus precisa ser celebrada, porque é a vida de Deus. A Escritura revela que a alegria de Deus está na vida de seu povo e desde as origens, as comunidades celebravam a memória da presença salvífica de Deus na história de seu povo. Desta forma, a liturgia precisa traduzir esta presença divina e não ocultá-la. A simbologia da liturgia é uma riqueza que precisa ser preservada e trabalhada. Ela precisa está intimamente ligada à realidade das comunidades. Na liturgia, o povo precisa sentir-se Igreja e esta sentir-se povo de Deus. É por meio de uma liturgia bem celebrada que damos graças ao Deus da vida pela sua encarnação na história em Jesus de Nazaré e pela ação do Espírito nas pessoas e no mundo. Guiados por este mesmo Espírito, na liturgia elevamos a Deus o nosso louvor e a nossa prece, que em nada acrescentam ao ser de Deus, mas que é pura manifestação de um povo que reconhece a ação amorosa do divino no humano.

A música é importantíssima para a liturgia. Por meio da música, bem cantada e instrumentada, a assembléia rende graças ao Senhor tendo em vista sua humilde ação misericordiosa na história. Assim sendo, a música não pode falar daquilo que não se ver e não se toca, porque é algo desconhecido a nós, mas deve cantar a vida do povo de Deus e sua manifestação entre nós. Quando o cantor e a equipe de liturgia desconhecem a vida comum do povo de Deus, pautada no seguimento de Jesus, as músicas se tornam alienantes e insuportáveis. Ultimamente, tenho tido dificuldade em participar de algumas Missas, pois, muitas vezes, o canto litúrgico não tem nenhuma ligação com o sentido da Celebração Eucarística. São cânticos que não tem nenhuma ligação com a Liturgia da Palavra da Celebração. As Missas transmitidas pela televisão estão cada vez piores. É preciso abrir uma exceção para as Missas do Santuário Nacional de N. Sra. Aparecida, onde os redentoristas respondem por uma liturgia organizada e bem celebrada.

A intromissão nas Missas de músicas que retratam o estado psicológico das pessoas é algo desastroso. Músicas sentimentalistas que apelam para um deus fora da história e que é capaz de resolver todos os nossos problemas. As pessoas são levadas, através destas músicas alienantes e insuportáveis, a cultivarem a fé de maneira absurdamente emotiva. As manifestações de choro, desmaios, “repouso” no Espírito, braços estendidos, olhos fechados, gritos, do orar em línguas, danças etc. tornam as Celebrações momentos longos e sessões psicológicas de “descarrego” espiritual. Só para citar um exemplo, a música “Como Zaqueu”, de Regis Danese, que não é um canto litúrgico, porque não responde às exigências da liturgia, está sendo muito cantada nas Missas. Virou moda cantar esta música nas igrejas. Esta música veio se unir a “Noites traiçoeiras”, de padre Marcelo Rossi, também muito cantada nas Celebrações.

Vejamos algumas expressões da música “Como Zaqueu”, de Regis Danese: “... eu quero subir o mais alto que eu puder...”, “... sou pequeno demais...”, “... largo tudo para te seguir...”, “... mexe com minha estrutura, sara todas as feridas...”, “... quero amar somente a ti...”, “... faz um milagre em mim”. São expressões que cultivam a idéia de um Deus todo-poderoso, que resolve os problemas e que está nas alturas. Tais expressões alimentam uma relação intimista com o divino, em que somente Deus interessa ao crente e nada mais. Amar somente a Deus, em detrimento dos irmãos. Não importam as injustiças cometidas pelas estruturas injustas da sociedade, mas a mudança das estruturas espirituais e a cura dos males interiores. Diante disto, pergunta-se: Onde fica a dimensão missionária e comunitária da fé e do ser Igreja? Tais músicas não cultivam nas pessoas o ser Igreja como Povo de Deus na história, mas alimentam uma fé descomprometida com a realidade e comprometida com o emotivo.

Estas músicas fazem sucesso na liturgia e fora desta porque vivemos num tempo em que as pessoas estão cada vez mais depressivas. A subjetividade é fator constitutivo de nosso tempo e como a fé também é subjetiva, então é sempre assimilado tudo aquilo que apela para a subjetividade e toca o lado emotivo das pessoas. Esta realidade levou o padre Fábio de Melo a ser o cantor que mais vendeu discos no ano passado. Livros, músicas, discursos, filmes, peças de teatro e tudo aquilo que é voltado para a auto-ajuda é sempre bem-vindo no mercado e vende bastante. E a religião não fica excluída, pois está sendo capaz de apresentar um Deus bom e providente, que atende as necessidades temporais e espirituais das pessoas. Ao sair do culto a este Deus, as pessoas dizem: “Ah, foi tão bom! Senti-me no céu. Agora não perco mais, pois foi pura unção!” A maioria dos crentes não está preocupada com a situação do mundo, mas com a satisfação de seus desejos em Deus.

O que fazer diante disto? Certamente, uma vez que as paróquias ainda são realidades insistentemente vividas, os párocos são os maiores responsáveis pela formação litúrgica de sua comunidade. Infelizmente, percebe-se que até os padres, muitas vezes, pedem para que se cantem tais músicas. Estes são incapazes de conduzir liturgicamente a comunidade, pois parece que se esqueceram da disciplina Liturgia do curso teológico que fizeram e precisam urgentemente se reciclar. A maioria das equipes de liturgias canta mal ou não sabe cantar porque não recebeu nenhuma formação. A formação litúrgica é imprescindível na vida paroquial. Faz muito bem à comunidade quando a liturgia é bem celebrada. Quando participo de uma Missa, a liturgia preparada ou não me revela a organização da comunidade. O Hinário Litúrgico da CNBB e o Ofício Divino das Comunidades são ótimos instrumentos litúrgicos para uma liturgia bem celebrada.

Concluo esta reflexão com as sábias palavras da poetisa Adélia Prado sobre a Liturgia: “A Missa é a coisa mais absurdamente poética que existe. É o absolutamente novo sempre. É Cristo se encarnando, tendo a sua Paixão, morrendo e ressuscitando. Nós não temos de botar mais nada em cima disso, é só isso”. Referindo-se a certas Missas, assim diz ela: “Olha, gente, têm algumas celebrações que a gente sai da igreja com vontade de procurar um lugar para rezar”. Penso que não preciso explicar as palavras da poetisa, porque são poéticas e por si já dizem tudo.


Tiago de França

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