quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Renunciar por amor


“Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim não pode ser meu discípulo.
Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem,
não pode ser meu discípulo!”
(Lc 14, 27.33)

A renúncia é uma das exigências do seguimento de Jesus de Nazaré. Sem renúncia é impossível segui-lo, pois optar por ele é renunciar a tudo o que se opõe ao Evangelho. Toda renúncia exige um esforço humano para ser realizada, juntamente com a graça de Deus que colabora no desprendimento daquilo que impede a pessoa de seguir Jesus. A graça não substitui a ação humana, mas colabora gratuitamente. É a ação divina na vida da pessoa que crer naquele que é a Vida. A graça divina não faz distinção de pessoas, mas age em toda pessoa que implora o auxílio divino na vivência dolorosa da experiência humana neste mundo. A ação divina em nós é silenciosa, humilde e oculta. Pela graça entramos em comunhão com Aquele que deseja ardentemente permanecer em nós e nos move para o bem. Este mover-se para o bem é a renúncia a todo o mal do mundo. É a ação de Deus em nós que nos capacita a fazermos o bem e evitarmos o mal.

O versículo 27 do capítulo 14 de Lucas como se pode conferir acima, apresenta Jesus com a exigência de se carregar a cruz. Trazendo para o hoje de nossa vida, quero transcrever um pensamento de um amigo professor do Seminário da Prainha: “É muito fácil e apetitoso trair Nosso Senhor pelo dinheiro ou pela fama, o difícil é abraçar sua cruz com amor”. Recebi recentemente por e-mail este pensamento. O autor estudou para ser padre, mas depois de concluída a formação do Seminário, optou pelo sacramento do matrimônio e hoje faz parte das Equipes de Nossa Senhora, movimento cristão que reflete sobre a realidade matrimonial. O autor do pensamento acima optou pelo matrimônio não por causa do celibato exigido pela Igreja, mas por causa da pobreza do ministério presbiteral. Quando estudava com ele História da Igreja e Economia e em nossas conversas informais, explicava-me que o presbítero e o bispo na Igreja devem ser homens pobres, e que somente a Igreja sendo pobre é que poderá ser escutada pelos pobres. Recordo-me de Dom Hélder Câmara que sonhava com a “Igreja dos Pobres” e que ensinava que quando a Igreja tornar-se pobre, o povo seria verdadeiramente Igreja e a Igreja verdadeiramente Povo de Deus.

Abraçar a cruz de Nosso Senhor com amor nos moldes da Igreja e da sociedade atual é algo dificílimo, porque tudo converge para o poder que se manifesta nas estruturas. O dinheiro e a fama, valores do capitalismo neoliberal, juntamente com o poder e a vaidade, também se infiltraram na vida da Igreja. Não preciso citar nomes de padres e bispos carreiristas, que só pensam na fama, no dinheiro, no poder e na vaidade; que são anti-valores evangélicos, que somente atrapalham na edificação do Reino de Deus entre nós. Abraçar a cruz de Nosso Senhor com amor é renunciar a tudo isto. Renunciar é uma experiência desagradável, humanamente falando, uma vez que somos seres tendenciosos. As influências de nossa sociedade doentia afloram as más tendências que há no homem tornando-o escravo de si mesmo e dos outros. Inebriado pelo poder, o homem se esquece do amor de Deus e do cuidado para com seu semelhante. Por isso que comecei esta reflexão falando do papel da graça em nós, pois sem ela não conseguimos agradar a Deus, nem nos libertarmos do fascínio do poder.


O versículo 33 do capítulo 14 de Lucas apresenta Jesus exigindo a renúncia de tudo o que se tem. É impossível negarmos que este versículo se refere às pessoas ricas, àquelas que detêm o poder financeiro. Os pobres, financeiramente, não têm nada para renunciar. É verdade que muitos pobres precisam renunciar a falta de união, de perseverança na luta pela libertação e a ambição pelo ter e pelo poder, pois temos muitos pobres que desejam ardentemente riquezas e poder, e quando conseguem ficar ricos passam da condição de explorados para a condição de exploradores. Um exemplo disso são muitos de nossos governantes, que desejaram e conseguiram ser eleitos tendo em vista somente os altos salários e mordomias, além dos desvios de verbas públicas. Na política, enveredar pelos caminhos da corrupção é mais cômodo e mais fácil que pelos da justiça e retidão. A situação é tão viciosa que muitos afirmam que político justo não existe e se existir não dura por muito tempo!

Para concluir e ilustrar esta reflexão apresento brevemente dois nomes que retratam muito bem o testemunho da renúncia ao poder e às riquezas. Trata-se de um Padre e de um Bispo. O Pe. José Antônio de Maria Ibiapina, mais conhecido como Padre-mestre Ibiapina, nasceu em Sobral, CE, em 1806 e faleceu em 19 de fevereiro de 1883, em Santa Fé, PB. Em 1832 recebe o título de Bacharel em Direito pela Faculdade de Olinda, PE, tornando-se em seguida professor da mesma. Em 1834 e 1835 foi nomeado Juiz de Direito de Quixeramobim, CE. De 1834 a 1837 foi Deputado Estadual da Província do Ceará. Concluído o mandato, resolveu regressar para o Recife, onde começou a advogar em favor dos pobres que não tinham condições para pagar advogados. Exerceu a mesma profissão na Paraíba, entre os anos 1838 e 1839. Depois disso, resolveu se recolher num retiro espiritual de três anos consecutivos para uma reflexão sobre a própria vida. Logo após, decidiu-se pelo ministério presbiteral. Tendo estudado Teologia, é ordenado por Dom João da Purificação Perdigão, Bispo de Pernambuco, em 26 de julho de 1853. Devido à aguçada inteligência, Dom João o nomeia Vigário Geral, Provedor do Bispado e professor de Eloqüência do Seminário de Olinda, mas não se deixando seduzir por tais ofícios honrosos, o Padre-mestre Ibiapina resolveu ir ao encontro dos pobres do Nordeste, como missionário. Não foi recebido em algumas dioceses, devido à inveja dos Bispos, mas foi bem acolhido pelos prediletos de Jesus, os pobres, a quem serviu pela prática da caridade. Faleceu com fama de santidade em sua Casa de Caridade preferida, em Santa Fé, PB, rodeado por suas santas beatas, mulheres dadas à caridade evangélica. Seu processo de canonização já está aberto em Roma. O Apóstolo do Nordeste já é reconhecido pela Igreja como Servo de Deus, após documento emitido pela Santa Sé em fevereiro de 1992. Padre-mestre Ibiapina é um exemplo de homem humilde e simples, de seguidor de Jesus de Nazaré junto aos pobres.

O segundo nome é mais conhecido ainda, pois viveu entre 1909 a 1999. Dom Hélder Pessoa Câmara nasceu em Fortaleza, CE e morreu em Recife, PE. Foi um dos maiores profetas do século XX, o maior da Igreja do Brasil. Fundador da CNBB e do CELAM, trabalhou incessantemente pela conversão da Igreja. Foi poeta, escritor, místico e santo. Quem o conheceu de perto sabe de sua sensibilidade e humildade para com os sofredores da sociedade de seu tempo. Dotado de um espírito crítico e perspicaz estava atento aos problemas sociais que assolavam a vida dos pobres. Homem de extraordinário poder de comunicação denunciou corajosamente a ditadura militar dentro e fora do Brasil. Amigo da verdade e da transparência ajudou a Igreja a repensar o processo de evangelização no Brasil. Identificado com a simplicidade, morreu pobremente entre os pobres em Recife, PE. Dom Hélder foi exemplo de cristão e de Bispo para a sociedade e para a Igreja. Tocados por tais exemplos possamos também trilhar o caminho de Jesus de Nazaré, que passa pela renúncia a toda espécie de poder opressor, portanto, contrário ao Evangelho da vida e da liberdade.


Tiago de França

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