sábado, 6 de fevereiro de 2010

Avançar para as águas mais profundas


A liturgia deste 5º Domingo do Tempo Comum reflete sobre o chamado e o envio. Alguém chama e envia para realizar alguma coisa. O título da presente reflexão fala do pedido de Jesus: “Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca” (Lc 5, 4). É um convite desafiador estendido a todo discípulo de Jesus, que impõe riscos à vida daquele que se dispuser a avançar para as águas mais profundas. Estas são desconhecidas, pois não se sabe o que há no mais profundo das águas oceânicas. É uma realidade que gera surpresa e causa medo. Os discípulos de Jesus, apesar de não terem pescado nada durante toda a noite, em atenção à sua palavra lançam as redes nas águas mais profundas e conseguem obter grande quantidade de peixe. Só conseguiram porque atenderam ao pedido de Jesus.

O mundo em que vivemos é um grande oceano. Neste há vários tipos de peixes e vários mistérios. As águas mais profundas deste mundo são as realidades sombrias que nos causam medo e nos desafiam a cada dia. Os seguidores de Jesus, chamados de cristãos, chamados para “pescar homens”, devem realizar tal pesca nestas águas mais profundas. Citemos, a fim de compreendermos melhor o sentido destas águas, alguns lugares, realidades e circunstâncias em que se manifestam a força das ondas oceânicas da vida: zonas de prostituição, favelas, ruas e praças, países paupérrimos, fome, violência, discriminação, agressão à natureza, enfim, o lugar dos empobrecidos e sofredores deste mundo. Os empobrecidos, com suas realidades e histórias são as águas mais profundas nas quais o discípulo de Jesus deve lançar as redes para a pesca.

O que vem a ser esta pesca? Como ela se dá? Com que finalidade se deve pescar? As Igrejas cristãs, sem exceção alguma, correm o risco de cair na tentação daquilo que podemos chamar de conquista de almas para Jesus. Nas grandes favelas encontramos centenas de pequenas igrejas situadas em tudo quanto que é lugar e de variadas manifestações religiosas. Nelas há um ponto negativo que compromete gravemente o trabalho de evangelização, que consiste no cultivo de uma fé ingênua e/ou espiritualista, ou seja, professam a fé superficialmente tendo como fim a mera satisfação dos desejos. A oração de tais Igrejas não visa a libertação integral da pessoa, por meio do processo de conscientização cristã e política, mas simplesmente na busca incessante de milagres para a solução de problemas, principalmente de ordem financeira.

Por outro lado, é inegável a presença reconfortante destas Igrejas no meio dos pobres. É justo admitir que, muitas vezes, os nossos irmãos assim chamados de “evangélicos” ou “crentes” estão mais presentes no meio dos pobres do que a Igreja, na realidade dos favelados. Eles celebram, visitam, estimulam a fé e recupera em muitas pessoas o gosto pela vida. Este é o aspecto positivo e louvável. Também pode ser um sinal ou um convite para a Igreja Católica se planejar melhor e se fazer cada vez mais presente na realidade dos pobres, pois a grande tentação é esperar que os pobres saiam de suas casas e procurem participar dos sacramentos nos templos. A Conferência de Aparecida denuncia e reprova com toda clareza a pastoral de manutenção e a vivência de uma Igreja sacramentalista, descomprometida com a vida das pessoas.

A pastoral de manutenção visa conservar uma Igreja que não corresponde mais às realidades pós-modernas. O avanço da mentalidade e da sociedade em si mesma obriga-nos a uma séria e exigente reciclagem teológico-metodológica. Tal reciclagem passa pela proximidade que se deve ter com a vida das pessoas, preferencialmente da vida dos pobres. Estes sempre desafiaram a Igreja, pois a pobreza sempre gritou contra o luxo e a ostentação, contra o prestígio e o poder. Os empobrecidos nos evangelizam quando nos dispomos a escutá-los humildemente, a exemplo de Jesus, que se fez pobre entre os pobres para confundir os grandes deste mundo.

A Igreja sacramentalista, que é resultado das decisões do Concílio de Trento, enquanto resposta à Reforma Protestante, está cada vez mais marginalizada pelas pessoas. Estas não aceitam mais a recepção passiva dos sacramentos, que em nada constrói, antes, escraviza e compromete a construção do Reino de Deus. Jesus não nos chamou para o sacramentalismo, mas para, por meio dos sacramentos, enquanto sinais da presença amorosa de Deus no meio do povo, e do anúncio da Boa Nova da vida e da liberdade construirmos seu Reino de amor e de justiça.

Avançar para as águas mais profundas é um desafio possível e necessário, mas para isso precisamos renunciar a tudo o que nos prende e nos impede. O texto evangélico deste Domingo (Lc 5, 1 – 11) termina com as seguintes palavras: “Então levaram as redes para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus”. Será que precisamos renunciar a vida e ao mundo para nos voltarmos para Jesus, que está nas alturas dos céus, como nos ensinam os espiritualistas de nossas Igrejas? Será que é preciso entregar a nossa vida a Jesus, porque tudo é do Pai que resolve todos os problemas? Este, certamente, não é o caminho apontado pelo Evangelho. Este nos aponta outra direção.

A leitura equivocada do Evangelho de Jesus está deixando muita gente nas águas mais rasas e límpidas. Não somos chamados para ficarmos na beira-mar, sem correr nenhum risco. Até podemos tomar tal atitude, mas certos de que não é a que Jesus nos pediu. As pessoas que estão na beira-mar são aquelas que ainda são dominadas pelo medo. É verdade que este faz parte da condição humana, mas quando se fala de seguimento de Jesus, o medo que paralisa e aliena torna-se inaceitável. O medo é incompatível com a missão cristã. Quem se deixa dominar pelo medo jamais consegue seguir Jesus, pois para isso precisa-se de coragem e ousadia.

Pessoas como Dom Hélder Câmara, Dom Luciano Mendes, Dom Oscar Romero, Ir. Dorothy Stang, Madre Teresa de Calcutá, Beata Lindalva Justo de Oliveira, entre tantos outros e outras que atenderam ao pedido de Jesus e avançaram para as águas mais profundas. Destes, as Irmãs Dorothy e Lindalva tiveram a graça de alcançar a coroa do martírio na construção do Reino de Deus. A vida destes santos e santas de Deus mostra claramente o risco que se corre no avançar para as águas mais profundas. Esta é a vocação de todo ser humano: doar a vida pela vida do mundo, a fim de que todos creiam na vida trazida por Jesus. Não somos chamados para pescar almas, pois estas não se pescam! Somos chamados a pescar homens, pessoas completas, com suas realidades e histórias enraizadas no mundo dos homens, a fim de que possam viver digna e integralmente conforme a vontade de Deus.

Somos chamados a responder prontamente a voz daquele que nos chama para a construção desafiante do Reino. A exemplo do profeta Isaías digamos a Deus: “Aqui estou! Envia-me” (Is 6, 8).


Tiago de França

Nenhum comentário: