quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Viver a Quaresma com Jesus no deserto


“Quem busca a verdade, quem obedece a lei do amor,
não pode estar preocupado com o amanhã"
(Gandhi).

Estamos iniciando o tempo que precede a maior festa do Cristianismo: a Ressurreição do Senhor. A Quaresma é um tempo de preparação. A oração, a caridade e o jejum caracterizam o tempo quaresmal, pois levam o cristão a viver penitencialmente. Não se trata de mera penitência em vista da simples purificação do espírito, mas como preparação para a festa da Páscoa. É um tempo de escuta, silêncio e meditação da Palavra de Deus que levam à conversão da vida.

A CF – Campanha da Fraternidade, inserida anualmente na Quaresma, ajuda o cristão a pensar a situação emergencial da sociedade do ponto de vista da fé que brota da Palavra de Deus. O tema deste ano chama a atenção para o problema da economia. Trata-se de uma reflexão crítica da situação econômica atual, que mais mata do que dignifica a pessoa humana e como esta foi criada à imagem e semelhança de Deus, a CF quer alertar a todos para a necessidade de uma economia para a vida, para a acolhida e desenvolvimento integral de todos.

A espiritualidade quaresmal lembra a ida de Jesus ao deserto, impelido pelo Espírito, para ser tentado pelo diabo (cf. Mt 4, 1 – 11). A Quaresma é um tempo de deserto. Este é um lugar sombrio, silencioso, misterioso e até perigoso. A experiência de Jesus no deserto foi sofrida e, humanamente, angustiante. Seu encontro com o diabo é revelador. Jesus é tentado e resiste às três tentações. A maior das três é a que representa a sede de poder, o risco de se mostrar poderoso e superior aos outros, de ser rico e dominador. Enquanto homem como nós, Jesus fez a experiência de ser tentado e sentiu na pele a condição na qual nos encontramos: limitados e frágeis. Ninguém escapa de tal condição, mas a superamos pela fé em Jesus. Este não somente nos conhece porque é Deus, mas também porque tendo sido homem, nos conheceu pela carne e na carne.

O fato de Jesus nos conhecer muito mais do que nós nos conhecemos a nós mesmos é algo que nos assegura uma comunhão para com ele. Ir ao deserto significa participar desta comunhão com aquele que nos conhece e que por isso mesmo nos ama fraternalmente. O deserto é o lugar da intimidade com Deus, o lugar da experiência divina. A nossa condição não permite nos adentrarmos na comunhão trinitária, é o próprio Deus, por meio de seu Espírito, quem nos conduz ao seio de sua intimidade e nos faz participantes de uma experiência única e indelével. O encontro com Jesus no deserto é marcado por uma presença amorosa que opera em nós a conversão de nossa vida. É um encontro dialógico que nos remete ao mais íntimo de nós mesmos fazendo-nos conhecer mais e melhor.

As tentações foram necessárias para que Jesus se conhecesse melhor, isto enquanto pessoa. A condição humana de Jesus nos permite dizer isso. Quanto se encontra consigo mesmo, o homem se torna mais humano e, consequentemente, mais autêntico consigo mesmo e com o próximo. O encontro com as tentações fez Jesus se conhecer melhor na sua humanidade e também na sua divindade. Também nós, criados à imagem e semelhança daquele que estava com e em Jesus, somos chamados a nos conhecermos melhor nos encontro cotidiano com as tentações.

O Espírito de Jesus é quem melhor conhece a cada pessoa e sabe de seus processos e histórias. Cada ser humano está inserido numa realidade, num contexto diferente de vida que o torna humano ou desumano. Cada ser é fruto de sua realidade. O homem é responsável pela sua história e a partir do momento em que vive, mesmo que não queira, constrói a própria história e a do mundo. E no desenrolar desta história de homens frágeis e limitados, o Espírito se faz presente de maneira íntima e silenciosa, agindo em prol da libertação integral da cada pessoa. A vontade de Deus é que todos os homens se encontrem consigo mesmos e com Ele, e neste encontro revelador todos sejam felizes.

Aqui se percebe o quanto é perigoso a negação das próprias limitações e também a negação do mundo. Jesus não se recusou ir ao deserto. Ele foi, enfrentou as tentações e as venceu, saiu vitorioso. A vitória de Jesus sobre as tentações que geram o anti-Reino e a morte não passou pela negação de seu ser humano, nem pela fuga do mundo, mas pelo enfrentamento amoroso e recriador da experiência limitada deste mundo. Por isso, asseguradamente, podemos dizer que Jesus foi plenamente humano. Aprendemos a ser humanos a partir da experiência dele. Somos seguidores de Jesus a partir de sua experiência neste mundo, experiência revelada no seu Evangelho.

Para que o Espírito do Senhor nos revele quem verdadeiramente somos, precisamos combater em nós a tentação do fechamento de nós mesmos. O Espírito trabalha na e para a liberdade. Não somos forçados a nos deixar revelar e moldar por este Espírito. Pela oração e pela vida precisamos deixar transparecer a possibilidade de intervenção divina em nós. Deus pode fazer todas as coisas, mas não interfere em nossa liberdade. Esta nos dar a oportunidade de aceitarmos ou recusarmos o auxílio divino. Na experiência de Jesus aprendemos com sua obediência à vontade do Pai a sermos obedientes à voz do Deus que nos pode libertar do poder da morte. A obediência de Jesus à vontade de Deus o fez participar de sua intimidade e divindade. Também nós, a partir da experiência de Jesus, nos tornamos íntimos de Deus e participantes de seu amor.

O Espírito de Deus nos ensina, pela obediência à vontade divina, a amar a Deus através do amor ao próximo. A Quaresma nos diz que precisamos estar atentos ao amor, pois foi pelo amor que nos salva que Jesus ressuscitou dentre os mortos. Toda a experiência de Jesus encerra-se no amor. Ele tudo fez por amor. Veio a este mundo para nos recordar que fora do amor não existe salvação. A penitência quaresmal perde plenamente seu sentido e valor se não nos levar ao amor. Penitenciamo-nos não para sermos rigorosos conosco mesmos e, desta forma, nos mostrarmos mais santos; mas para sermos mais humanos e, consequentemente, mais amorosos conosco mesmos, com o próximo e com o mundo. Não adianta sermos piedosos e ascéticos se por meio de tais exercícios perdemos a capacidade de amar, pois onde não existe amor, mesmo que existam ascese e renúncias, não há santidade de vida.

Aproveitemos, pois, o tempo quaresmal para nos abrirmos ao Espírito, a fim de que nos revele a vontade de Deus. Precisamos aprender a amar, apesar de nossa condição. O mundo atual carece de mulheres e homens que amem apesar de tudo. Não permitamos que o ódio e a indiferença tomem conta de nossas vivências. Permitamo-nos que o Espírito nos converta e nos ressuscite para uma vida nova, pautada no amor que nos leva ao serviço do próximo, especialmente do sofredor e excluído.


Tiago de França

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