quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Bíblia, Palavra de Deus para a vida do povo


“Tua Palavra é lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho” (Sl 119, 105).

À maneira de introdução

No mês de setembro de cada ano, a Igreja prioriza a reflexão sobre o sentido e o valor da Palavra de Deus na vida eclesial. O objetivo é resgatar a leitura e a interpretação das Escrituras Sagradas na caminhada da Igreja. Nesta, há o ministério da Palavra, um serviço querigmático que lhe dá sentido e existência. Ou seja, a Igreja nasceu para o anúncio da Boa Nova de Jesus (cf. Mt 28, 19). O Concílio Vaticano II veio recordar o valor das Sagradas Escrituras: “[...] A Sagrada Escritura dos dois Testamentos, são como que um espelho no qual a Igreja, peregrina na terra, contempla a Deus, de quem tudo recebe, até chegar a vê-lo face a face tal qual ele é (cf. 1Jo 3, 2)” (Dei verbum, n. 7). A contemplação divina passa pela leitura orante da Palavra de Deus, leitura pautada na íntima ligação entre fé e vida. É Deus que se revela a si mesmo na sua Palavra. Em Cristo, plenitude da revelação, Deus se encarna na história e renova a esperança do povo que caminha rumo à libertação plena, o Reino de Deus.

O acesso à Palavra

Antes da Reforma Protestante do século XVI, os católicos não tinham acesso à Bíblia. Com Martinho Lutero, a Bíblia vai se tornando Palavra de Deus para o povo. Antes disso, toda a Bíblia estava escrita em latim, reservada aos estudiosos desta língua. Nas liturgias, o povo escutava, mas não compreendia nada. A compreensão passava pelo sermão do padre. Assim, não se sabia se o padre estava falando a verdade ou negando a verdade das Escrituras. Tal situação perdurou até o Concílio Vaticano II. Neste, o latim deixou de ser obrigatório, e a Palavra de Deus foi traduzida em várias línguas.

Mesmo com as traduções na língua de cada povo, os católicos mais do que os não-católicos, continuam não tendo acesso à Palavra de Deus. Muitos têm a Bíblia, mas não fazem leitura nem meditação alguma sobre a mesma. No caso dos não-católicos, muitos lêem, mas desconhecem o autêntico conteúdo. A verdade é que a maioria dos cristãos desconhece a Palavra de seu Deus. Aqui percebemos e entendemos a ingenuidade da fé de muita gente, pois como posso ter uma fé madura e profunda se desconheço a Palavra de Deus?...

Aqui aparece a situação daquelas pessoas que não sabem ler. Elas desconhecem a Palavra de Deus? Algumas, sim; outras, não. A leitura do texto não é a única maneira de ter acesso à Palavra de Deus. Nas comunidades primitivas do Cristianismo, a evangelização se dava pela transmissão oral. A Bíblia é fruto das traduções orais do povo de Deus. Uns contavam os fatos, outros escreviam. É por isso mesmo, que a Bíblia não pode ser vista como um livro científico nem de histórias. Quem procurar ler a Bíblia do ponto de vista científico poderá até se escandalizar, pois a cientificidade pode mostrar, claramente, sérias contradições textuais e históricas. A Bíblia está para ser lida, interpretada e rezada. É a Palavra do Deus que se revela na história de seu povo. Ela foi escrita para mostrar a ação misericordiosa de Deus junto a seu povo. A ação divina não pode ser medida pela visão científica dos dados históricos nem por meio da razão instrumental criada pelo homem.

Instrumento da libertação integral

Deus falou e fala tendo em vista a liberdade da pessoa. A Bíblia revela a ação libertadora de Deus no mundo. Por isso, Deus é libertador, e sua palavra é libertadora. Assim, peca contra o Deus libertador do gênero humano e da Criação aquela pessoa que se utiliza de sua Palavra para alienar e escravizar. O anúncio da Palavra visa à humanização do ser humano, não sua escravização. Se tal anúncio não tem como conseqüência a libertação integral da pessoa, então não pode ser considerado autêntico. Mais do que em outras épocas, a Palavra de Deus está sendo cada vez mais falsificada. Esta falsificação da Palavra passa pelo ocultamento da verdade e o anúncio desmedido da mentira, que aliena e causa confusão. As pessoas mentem, descaradamente, com a Bíblia na mão.

Trata-se de uma mentira sistemática, ou seja, elaborada de tal forma que se confunde com a verdade evangélica. A verdade das Escrituras desmascara a mentira sistemática e sistêmica, ou seja, desmascara a mentira intencional das pessoas, das instituições e do sistema opressor. A experiência de Jesus de Nazaré fala bem desta perspectiva. Sendo ele mesmo a Verdade e se utilizando da verdade dos gestos e das palavras, Jesus denunciou a mentira das tradições judaicas e do sistema opressor do Império romano, a falsa e opressora ordem social estabelecida e legitimada pelas tradições e pelas leis judaicas. Conseqüentemente, foi brutalmente assassinado pelos respectivos responsáveis pelas Leis: a religião oficial e o injusto tribunal cívico-religioso da época. A morte de Jesus não pode ser entendida pela via da predestinação, mas como conseqüência da adesão ao projeto libertador de Deus.

Desta forma, o compromisso da Palavra de Deus é com a libertação das pessoas, em todo tempo e lugar. Comprometer-se com a Palavra de Deus é assumir com a vida o projeto libertador de Jesus, o Reino de Deus. Portanto, o/a missionário/a da Palavra é alguém que se coloca a serviço da libertação integral das pessoas, a serviço do bem do outro. Estar a serviço da libertação do outro é permanecer atento às necessidades dos que padecem neste mundo. Somente quem está atento às necessidades do outro é quem está apto a viver o amor (caridade, solidariedade). A vivência desta passa pela sensibilidade e esta passa pelo estar atento. Trata-se de certa vigilância permanente em relação ao padecimento das vítimas do sistema opressor que reina no mundo de hoje. A Palavra gera a caridade.

Instrumento da unidade cristã

Eis o que diz o n. 247 do Documento de Aparecida: “Encontramos Jesus na Sagrada Escritura, lida na Igreja. A Sagrada Escritura, ‘Palavra de Deus escrita por inspiração do Espírito Santo’(DV 9), é, com a Tradição, fonte de vida para a Igreja e a alma de sua ação evangelizadora. Desconhecer a Escritura é desconhecer Jesus Cristo e renunciar a anunciá-lo”. O Documento está ensinando que a Sagrada Escritura é um dos lugares de encontro com Jesus Cristo. Quando lemos e meditamos a Palavra estamos nos encontrando com Jesus. Este deseja a unidade dos cristãos (cf. Jo 17, 21). Como explicar o fato de que os cristãos, professando a fé no mesmo Deus e lendo a mesma Escritura Sagrada, serem tão desunidos?...

Até hoje a Palavra não conseguiu plenificar a unidade dos cristãos. No mundo, os cristãos são um verdadeiro exemplo de gente desunida. É vergonhoso afirmar, mas é a verdade! Penso que, enquanto os cristãos não se unirem, não conseguirão dialogar com as demais religiões, pois o diálogo com as outras religiões pressupõe, em primeiro lugar, diálogo entre os próprios cristãos. Somos um povo desunido e que se desune cada vez mais. Quanto mais se multiplicam as denominações cristãs, mais desunidos se tornam os cristãos. Na maioria das vezes, a Bíblia é utilizada como tentativa de legitimação de tal desunião. O resultado disso é a confusão que causa conflitos e descrenças cada vez mais acentuadas. Muitas pessoas não aceitam a fé cristã por causa das escandalosas divisões entre os cristãos.

Por outro lado, encontramos o corporativismo que está na base das instituições religiosas. A busca e a manutenção de interesses pessoais e grupais têm causado o descrédito da religião. As instituições brigam até as últimas conseqüências pela defesa e promoção de seus próprios interesses. Estas brigas envolvem muita corrupção e morte: roubos, sonegações, adulterações, perseguições, manipulação, lavagem de dinheiro, assassinatos etc. Neste contexto de confusão e de interesses corporativistas, a Palavra de Deus é totalmente deixada de lado. Ela não tem lugar nestas circunstâncias, pois nelas não há valores evangélicos que geram vida e dignidade, mas somente as forças do anti-Reino que geram a morte do ser humano.

Os cristãos precisam aprender que a Palavra de Deus constrói a caridade e a verdade, porque é a sublime revelação de um Deus que é amor e verdade. Acreditar no Deus que a Bíblia revela é procurar viver, apesar da condição humana, os valores da caridade e da verdade. Se estas estiverem presentes nas relações entre os cristãos, conseqüentemente, teremos a tão sonhada unidade cristã. Somente é cristão aquele que pautar toda a sua existência na verdade e na caridade, do contrário, são pessoas que se iludem umas às outras numa divisão sem fim. Só há verdade unidade na caridade e na verdade.

Instrumento de conversão

A Palavra de Deus orienta-nos para a conversão. Ela foi escrita tendo em vista a conversão do ser humano para o Reino de Deus, ou seja, a Bíblia nos ensina o caminho de Jesus, e este caminho tem como conseqüência o Reino de Deus. Tudo converge para o Reino de Deus. A pessoa começa a se converter quando se decide pelo seguimento de Jesus de Nazaré. Tal seguimento é o que chamamos de processo de conversão. Não existe conversão fora do caminho de Jesus. Ninguém se converte seguindo fielmente os preceitos da religião, mas colocando-se no caminho de Jesus. É importante insistir nesta importante questão porque é comum encontrarmos pessoas que seguem fielmente os preceitos da religião (participação no culto, contribuição do Dízimo, participação nos eventos religiosos, devoção aos santos, confissões e comunhões constantes etc.), mas que são incapazes de se colocar no caminho de Jesus através da autêntica caridade (solidariedade).

A Palavra nos ensina que a conversão de nossa vida é o voltar-se para a vida do outro, ou seja, ver o Deus de Jesus na vida do outro. Ir ao encontro das reais necessidades dos que sofrem e assisti-los, gratuita e fraternalmente; buscar participar da vida dos empobrecidos, feridos em sua dignidade; denunciar as injustiças que geram miséria e morte; comprometer-se, afetiva e efetivamente com a transformação da sociedade, visando um mundo mais humano. Isto é conversão. Esta é uma atitude madura e, portanto, consciente e livre de lutar pela vida do mundo. A conversão nos leva a sermos continuadores da ação missionária de Jesus.

Vive-se na Igreja uma equivocada idéia de conversão. A maioria dos neopentecostais vê a conversão como uma experiência pessoal de Deus. O conceito está correto, mas a prática se mostra equivocada. A prática tem mostrado a conversão como algo mágico na vida das pessoas. Estas participam de um momento de oração, de um retiro, de uma reunião ou culto, de um curso ou orientação, e ao terminarem estas experiências momentâneas e isoladas afirmam que já estão convertidas. Afirmam, iludindo a si mesmas e aos outros: “Encontrei Jesus! Estou salvo! Sou um convertido!” Não sabem o que estão falando, somente sabem que se sentem bem. O sentir-se bem está na base das atuais “conversões” de muitas pessoas. São “conversões” que não visam a comum-unidade nem a justiça do Reino de Deus.

Para ilustrar o conceito de conversão que a Palavra nos ensina e que foi acima explicitado cito um exemplo de conversão na Igreja: A vida e a ministério episcopal de Dom Hélder Pessoa Câmara (Fortaleza – CE,1909 /Recife – PE,1999). Dom Hélder se colocou no caminho de Jesus e iniciou seu processo de conversão quando descobriu Jesus na pessoa dos pobres. Esta descoberta radical ocorreu aos 56 anos de idade, quando era Bispo Auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, no encontro com as necessidades dos pobres das grandes favelas daquela cidade. Aos pobres serviu até o último dia de sua vida, vivendo pobre, no meio dos pobres e para os pobres. Tornou-se o modelo de Bispo que a Igreja precisa ter. Homem de oração e ação, contemplativo na ação, Dom Hélder foi um autêntico cristão, ouvinte e praticante da Palavra do Deus libertador. Foi justificado pela caridade vivida na verdade, morreu humildemente santo.

À maneira de conclusão

A Bíblia é a palavra de um Deus que quis ser amigo do homem encarnando-se neste mundo para a salvação de todos. Todo cristão é chamado a ser um anunciador da bondade, da justiça e da misericórdia deste Deus amigo. O Espírito Santo, que conhece as profundezas de Deus e sonda todas as realidades humanas e mundanas revela-nos a face amorosa deste Deus agindo, cotidiana e incansavelmente, no meio de nós. Este mesmo Espírito, na liberdade dos filhos e filhas de Deus, age em nós e por meio de nós para a libertação integral da pessoa e do mundo. Concluo esta breve reflexão implorando ao Espírito, força e presença amorosa de Deus em nós e entre nós, que nos torne sensíveis e disponíveis para vivermos o mandamento maior, a lei do cristão, o fundamento da nossa vida: O amor a Deus e ao próximo como a nós mesmos. Anunciemos isto às pessoas e ao mundo para que o Reino de Deus vá se tornando uma realidade no meio de nós.

Tiago de França da Silva
Belo Horizonte – MG, 19/ 09/2010.

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