domingo, 13 de março de 2011

As tentações de Jesus e nossa fidelidade ao projeto de Deus


“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4).

Neste I Domingo da Quaresma, o Evangelho fala das três tentações de Jesus (cf. Mt 4, 1 – 11). Neste texto, encontramos Jesus sendo conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, onde foi tentado pelo diabo. Este significa as forças de divisão que há em nós e no mundo no qual vivemos. Nossa reflexão quer pensar e meditar as seguintes questões: O que são as tentações e por que nelas caímos? O que é o pecado e por que pecamos? Como Jesus venceu as tentações e como devemos vencer as nossas? Quais as tentações que nos desviam do caminho de Jesus e quebram nossa fidelidade ao projeto de Deus?

Desde o início, todos pecaram

A primeira leitura da Liturgia da Palavra deste Domingo (cf. Gn 2, 7 – 9; 3, 1 – 7) fala da criação do homem e da mulher à imagem e semelhança de Deus, assim como da desobediência deste primeiro casal. A narração coloca a “árvore do conhecimento do bem e do mal” no centro do jardim. O fruto desta árvore era proibido e, justamente por isso, instigado pela serpente (símbolo do mal), o casal atraído pela vontade de conhecer, resolve comer do fruto proibido. Isto é o que nos diz a letra do texto.

A exegese bíblica feita por Carlos Mesters, o maior biblista vivo da Igreja no Brasil, é de extraordinário valor para compreendermos bem este relato, mas já que nossa tentativa é de tirarmos uma mensagem breve do texto (hermenêutica) e não fazermos análise exegética do mesmo, então, queremos, juntamente com o citado biblista, destacar três aspectos e/ou verdades hermenêuticas que transparecem no texto: 1) Deus é bom e criou todas as coisas boas; 2) O homem é livre para obedecer ou não a Deus e 3) O Paraíso terrestre é uma possibilidade real.

Nós cremos que Deus é bom, pois como nos fala o apóstolo João: “Deus é amor” (1 Jo 4, 8). Por ser Deus plenamente amor, Ele é também perfeito. Assim, não podemos afirmar que Deus seja o autor do mal, pois o amor e a perfeição não dão origem ao mal. Longe de querer ser um relato realista, o relato da criação chama-nos a atenção para a bondade divina que criou todas as coisas boas para o nosso bem. A mulher e o homem foram criados para viverem em plena comunhão com Deus, participando da vida divina, portanto, livres do pecado e a morte.

O ser humano foi criado na liberdade e para a liberdade. Deus concedeu-lhe a liberdade de escutá-lo e obedecê-lo ou não. A presença simbólica do fruto proibido e da serpente mostra que há possibilidade para se desviar do projeto pensado por Deus. Abusando da liberdade concedida, a mulher e o homem resolvem optar por conhecer outra realidade oposta ao projeto de Deus e passaram, assim, a experimentar o pecado e a morte.

Deus não criou o pecado e a morte para o ser humano, mas a vida eterna. Em outras palavras, o ser humano não foi criado para sofrer e morrer, mas para viver, eternamente, em comunhão com a fonte da vida, que é o próprio Deus. Esta comunhão plena com a fonte da vida e esta realidade sem pecado e morte denominamos Reino de Deus. Este Reino é a possibilidade real do Paraíso terrestre, ou seja, a partir do momento em que Adão e Eva desobedeceram a Deus, este continuou acreditando no ser humano. A partir daí, deu-se início ao que chamamos de História da Salvação.

O pecado é algo que passou a fazer parte da vida do ser humano por sua própria escolha, ou seja, desde Adão e Eva escolhemos ser pecadores e pecamos. A respeito do pecado, precisamos considerar três questões: 1) Nenhum pecado tem o poder de nos tirar a filiação adotiva em Cristo Jesus, porque Deus nos ama, somente ele é bom e misericordioso; 2) Por ser bom e misericordioso Deus nos perdoa, incondicionalmente e 3) Em nossas experiências de pecado se manifestam o amor e a bondade de Deus, por isso, procuremos ser cada vez mais humanos por meio do reconhecimento de nossas fraquezas e limitações.

A experiência de Jesus no deserto

Antes de assumir publicamente sua missão, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, onde permaneceu durante quarenta dias. O número quarenta tem ligação com os quarenta anos da caminhada do povo de Deus rumo à terra prometida. No deserto, Jesus sofre três tentações. Vamos vê-las e atualizá-las.

A tentação do TER

Jesus sentiu fome e o diabo lhe sugeriu que transformasse pedras em pão. Jesus responde: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. Se Jesus cedesse a esta tentação, estaria usando de seu poder para satisfação de suas próprias necessidades. Esta tentação sugere a aquisição e o apego aos bens materiais. Jesus não podia reduzir sua missão à satisfação de desejos por coisa alguma. Ele era um homem livre, despojado, desapegado de si mesmo e de tudo aquilo que poderia impedi-lo de exercer sua missão.

A resposta de Jesus nos revela que não podemos reduzir a nossa vida à satisfação desenfreada de nossos desejos e ao apego aos bens materiais. É verdade que somos seres de desejos e necessidades, que precisam ser satisfeitas para a sobrevivência neste mundo. O que Jesus nos ensina é que não vivemos somente de pão, ou seja, nele nos tornamos filhos de Deus e participantes da vida divina. Nossa filiação adotiva e participação na vida de Deus exigem que estejamos em comunhão com ele através da palavra que sai de sua boca. A dimensão material é uma das dimensões de nossa vida, não a única.

Jesus é a Palavra de Deus, nele está a nossa vida. Ninguém pode ser chamado de cristão sem a escuta e a prática da palavra que saiu da boca de Deus. Portanto, a exemplo de Jesus, somos chamados a vencer a tentação do TER fazendo uso somente das coisas que são necessárias à vida. Quando os bens comprometerem a nossa liberdade e a nossa relação com o Deus que nos criou é sinal de que precisam ser repensados. O acúmulo de bens gera apego e este tira-nos a liberdade.

A tentação do PRAZER

O diabo leva Jesus à parte mais alta do Templo da Cidade Santa e lhe pede que se jogue, a fim de que os anjos o protejam. Jesus responde: “Não tentarás o Senhor teu Deus”. Esta tentação sugere o prestígio e a autoglorificação de si mesmo. Jesus foi tentado a usar o poder que lhe foi concedido por Deus não para a construção do Reino, mas para a busca da fama.

Em outras ocasiões, os evangelistas afirmam que Jesus ficou famoso devido os sinais que realizava no meio do povo. Jesus não buscava a fama e/ou prestígio social, mas a autenticidade de seus sinais levava as pessoas a acreditar que ele era, de fato, o Messias prometido pelos profetas. Durante toda a sua vida, foi tentado a abandonar o projeto do Pai para enveredar-se no caminho do prestígio. Ele tinha de tudo para se tornar um homem extraordinariamente famoso e influente, capaz de tomar para si o poder imperial.

O Evangelho mostra, claramente, que Jesus optou por outro caminho, escolheu o lugar dos últimos: “Mas Jesus percebeu que iam pegá-lo para fazê-lo rei. Então ele se retirou sozinho, de novo, para a montanha” (Jo 6, 15). Jesus fugiu de toda mania de grandeza, prestígio, autogloficação, elogios etc. Sua missão era permanecer junto dos desprestigiados, dos esquecidos, dos mal afamados.

Numa sociedade que prega o culto da própria imagem, o cristão é tentado a viver segundo as aparências, portanto, na superficialidade. Não é difícil encontrarmos pessoas que procuram ser vistas buscando reconhecimentos, títulos, aplausos, elogios etc. O seguimento de Jesus propõe o inverso, sugere o anonimato, a humildade, a serenidade e a discrição. No caminho de Jesus, quem quiser ser grande, deve ser o servidor de todos (cf. Mt 20, 26).

A tentação do PODER

O diabo levou Jesus para um monte muito alto e lá lhe mostrou todos os reinos do mundo e sua glória e lhe sugeriu que se ajoelhasse e o adorasse. Jesus responde: “Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a ele prestarás culto”. Esta tentação sugere o poder, o domínio, o controle, o autoritarismo etc. Jesus é tentado a deixar de lado o Reino de Deus para construir um reino para si mesmo.

A tentação do poder é a pior de todas as tentações, porque suas conseqüências são mais desastrosas na vida do ser humano. Uma pessoa dominada pelo poder torna-se um demônio encarnado! Quando contaminado pelo vírus do poder, a pessoa é capaz de cometer as piores atrocidades para consegui-lo e para manter-se nele. A luta pelo poder tem causado muitas perseguições e mortes no mundo.

O poder pressupõe a manipulação e o controle do outro. Cria-se um regime de alienação e opressão. As piores opressões que existem são promovidas pelo poder religioso, pois se trata de opressão ora sutil, ora explícita em nome de Deus. A alienação e opressão religiosas conseguem controlar mais o ser humano, porque o espírito religioso lhe explora mais intimamente. Basta olharmos para a história do Cristianismo e de outras religiões e vermos a quantidade de sangue derramado em nome de Deus e da religião.

O apego ao poder é uma doença gravíssima que tem levado muita gente à morte. Quando assimila o espírito do poder, a pessoa nunca consegue se libertar. São pouquíssimos os casos de pessoas que renunciaram o poder; antes, procuram-no cada vez mais. O poder é capaz de tornar o ser humano perigoso e, portanto, noviço à sociedade. O ditador da Líbia, o general Muammar Kadafi, é um dos exemplos mais atuais de políticos que se apegam ao poder de uma maneira que transformam a democracia em ditadura.

As três tentações na vida da Igreja

Estas três tentações estão presentes na vida da Igreja. Leigos e clérigos são tentados pelo ter, pelo prazer e pelo poder. Às vezes, os clérigos pecam mais do que os leigos. A tentação que mais aflige a hierarquia eclesiástica é a do poder, isto porque a hierarquia é constituída de forma piramidal: diácono, presbítero, bispo, cardeal, papa. Além destes títulos há outros títulos que não valem a pena serem citados.

Houve uma época em que alguns destes títulos eram comprados, outros negociados. Com as reformas que foram se dando na linguagem e na organicidade da Igreja, estas compras e negociações foram extintas, mas a estrutura permaneceu. Nem o Concílio Vaticano II conseguiu mexer na estrutura eclesiástica da Igreja. Esta estrutura é mantida pelas relações de poder entre os membros e organizações.

A funcionalidade, às vezes, parece ser tão complexa que nem os próprios católicos a entendem. O povo sabe que existe, mas não sabe para que serve nem como funciona! O povo só conhece o diácono e o padre. Quanto ao bispo, se vê ocasionalmente, quando na celebração da Crisma; mas devido a muitas ocupações burocráticas (maioria dos casos), muitos bispos têm evitado o contato com o povo delegando cônegos e monsenhores para a administração do Sacramento da Crisma, posse de párocos e outras atividades.

Os mesmos pecados que encontramos nas relações de poder entre seculares acontecem, quase que igualmente, no mundo religioso. A ambição, o desejo e o apego ao poder são os mesmos. O que está em jogo é o poder e quem for politicamente fraco não consegue nada. Uma vez cristalizada e quase que intocável, a hierarquia é lugar desejado por muitos homens. Digo homens porque as mulheres não participam da hierarquia. Somente homens recebem o Sacramento da Ordem, que os constitui e legitima.

O perigo do poder é que o mesmo gera apego e desserviço, ou seja, uma vez apegada ao poder, a pessoa não quer servir, mas ser servida por aqueles que lhe são inferiores. Quando a autoridade constituída não coloca o poder a serviço, cai na tentação de usá-lo para alienar e oprimir. O verdadeiro discípulo missionário de Jesus de Nazaré é aquele que procura servir até as últimas conseqüências. Jesus serviu os pobres durante toda a sua vida e na morte de Cruz demonstrou amor e compaixão até para com seus algozes (cf. Lc 23, 34).

Para ser verdadeiro discípulo missionário de Jesus de Nazaré, o cristão precisa permanecer em estado de vigilância. “Vigiem e rezem, para não cair na tentação! Porque o espírito está pronto para resistir, mas a carne é fraca”, disse Jesus (Mc 14, 38). Vigiar significa permanecer acordado, estar de olhos abertos para enxergar o perigo. Quem vigia e reza nunca é pego de surpresa e dificilmente cai na tentação. Quaresma é tempo propício de vigilância e oração. Estas nos ajudam a nos mantermos fiéis ao projeto de Deus.


Tiago de França

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