domingo, 27 de março de 2011

Jesus de Nazaré: fonte que sacia a nossa sede de Deus


“E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna”.
(Jo 4, 14)

Na Liturgia da Palavra desde III Domingo da Quaresma nos encontramos com o famoso encontro de Jesus com a mulher samaritana no poço de Jacó (cf. Jo 4, 5 – 42). Antes disso, vemos Moisés com seu povo murmurando na caminhada rumo à terra prometida (cf. Ex 17, 3 – 7). Depois, o apóstolo Paulo escrevendo aos Romanos fala da nossa justificação por meio do mediador único e verdadeiro: Jesus Cristo.

A água, tanto na primeira leitura quanto no Evangelho ocupa lugar central. Inicialmente, a nossa sede é corporal; posteriormente, somos chamados a refletir que o ser humano tem outros tipos de sede: de amor e de realização, de justiça e de paz, de felicidade, enfim, sede de Deus. Por outro lado, há quem tenha sede de poder, de prestígio, de riqueza, de vingança, entre outras sedes destrutivas. Você que deu início à leitura deste texto: qual a sua sede mais profunda? O que você mais deseja para a sua vida? Com Jesus reorientaremos a/s nossa/s sede/s e buscaremos nos saciar nele, fonte de água viva que jorra para a vida eterna.

A sede do povo de Deus no deserto

O trecho do livro do Êxodo que se nos apresenta neste Domingo nos faz ter pena de Moisés, o líder do povo recém saído da escravidão no Egito. As pessoas sentem sede. Esta estava as maltratando em pleno deserto. De fato, deve ter sido uma experiência difícil. Diante da escassez de água e alimento, elementos básicos para a sobrevivência do ser humano, o povo reclama e se volta contra o Deus de Moisés. Este, sentindo-se impotente diante da situação clama a Deus dizendo: "Que farei por este povo? Por pouco não me apedrejam!”

Deus, que nunca abandona seu povo nos caminhos e descaminhos da vida, resolve se manifestar, providenciando água em pleno deserto: Moisés bate sua vara na rocha e desta sai água para o povo beber. Pronto! Resolvido, parcialmente, o problema. Depois, virão outras murmurações e a paciência divina vai acompanhando a incredulidade e a insatisfação de um povo fraco e pecador, povo escolhido por Deus para viver a experiência da vida e da liberdade numa terra onde corre leite e mel.

O texto selecionado termina com a seguinte indagação do povo: “O Senhor está no meio de nós ou não?” Esta pergunta nos remete àquelas pessoas que estão sufocadas em sua sede e sofrimentos, e que se perguntam: Onde está Deus? A nossa pouca fé oriunda de nossa cegueira nos leva a pensar na ausência de Deus neste mundo dilacerado de dor e sofrimentos, misérias e tragédias de toda ordem. No caso do povo da caminhada no deserto, Deus o escutou, imediatamente. Em outros momentos, a impressão que dá é a de que Deus é surdo, mudo e insensível, pois parece não ligar para a situação das pessoas.

A religião nos ensinou a acreditar num Deus que interfere na ordem natural do mundo. Esta crença tem levado muita gente à perda da fé e à frustração, pois como explicar o silêncio de Deus diante do massacre de seis milhões de judeus na Alemanha e da morte de milhares de pessoas nas catástrofes oriundas das ações irresponsáveis do ser humano para com a natureza. Há coisas que somente Deus explica.

Creio na verdade de que o ser humano arca, consciente ou inconscientemente, direta ou indiretamente, com as conseqüências de suas ações. Por isso, ao invés de perguntarmos pelo porquê de Deus não se manifestar, deveríamos perguntar pelos reais motivos que levam o ser humano à autodestruição de si mesmo. É duro aceitar, mas a verdade é que o ser humano procura, incansavelmente, a própria morte através da prática de muitas injustiças, dentre as mais graves se encontra a destruição da natureza, que tem causado desequilíbrio e mortes inumeráveis. Acusar a Deus de omissão é omitir nossa participação em nossa própria desgraça e/ou morte.

A experiência do encontro de Jesus com a samaritana

Há duas informações que aparecem no início do cap. 4 de João que nos interessam para compreendermos bem o encontro de Jesus com a samaritana. Primeira, que os fariseus ficaram sabendo que Jesus atraía discípulos e batizava mais do que o profeta João Batista. O evangelista corrige o boato dizendo que, “na verdade, não era Jesus que batizava, mas os seus discípulos”; segunda, que Jesus não tinha a intenção de ir para a Samaria, terra de não-judeus, mas para a Galiléia. Sua passagem e permanência na Samaria se deveram ao fato de que esta ficava no caminho que levava à Galiléia.

O texto em si traz vários pormenores que revelam muita coisa, mas para não nos estendermos muito, vamos àquilo que nos parece fundamental. Os especialistas em Bíblia possuem várias analogias e comentários sobre este texto, mas isto a gente deixa para um curso de teologia bíblica. Uma simples hermenêutica deseja, apenas, dizer a mensagem central do texto para a edificação da comunidade cristã. Ao povo interessa saber o que Deus quer nos dizer com as palavras e os gestos do profeta e Messias Jesus.

Os samaritanos não se davam bem com os judeus. O sistema religioso destes excluía aqueles. O povo samaritano é oriundo de uma mistura entre hebreus e assírios, e tinha uma concepção religiosa bem diferente da dos judeus. Quando de passagem pela Samaria, Jesus sente sede e se encontra no poço de Jacó. Para os judeus, o poço é garantia de abundância da água oferecida por Deus no deserto. Basta ver a importância da água na vida do povo guiado por Deus através de Moisés.

Pois bem, Jesus se encontra fora do campo religioso e social de seu povo. Ele se encontra com uma mulher samaritana, que o evangelista não nos diz o nome. A ausência do nome pode nos indicar não somente uma mulher (singularidade), mas um povo (samaritanos). Encontrando-se com ela, Jesus causa a admiração dos discípulos por causa de três questões curiosas: primeiro, porque estava conversando a sós com uma mulher, coisa incomum entre judeus; segundo, porque estava falando com uma samaritana, situação também não recomendável e terceiro, porque, além de mulher e samaritana, ela vivia com um homem que não era seu (seria ela adúltera?!)

Jesus rompe, radical e profeticamente, a separação entre judeus e samaritanos. Isto se apresenta como uma Boa Notícia, Evangelho da reconciliação que acaba com a exclusão e com a indiferença. Ao afirmar que todos devem adorar o Pai em espírito e verdade, Jesus descentraliza o culto do Templo de Jerusalém. Este era considerado o “poço da água viva”, lugar do encontro com a benção divina. Jesus afirma que Deus é espírito e que pode ser adorado em qualquer lugar e por qualquer pessoa e/ou povo. Diante disso, a mulher demonstra ter conhecimento da vinda do Messias, que é exposto como aquele que “nos vai fazer conhecer todas as coisas”.

Jesus não esconde três verdades fundamentais: a primeira, que os samaritanos adoravam o que não conheciam; a segunda, que a salvação vem dos judeus e a terceira, que ele tem a água e o alimento que jorra e dura para a vida eterna. Ele mesmo, diante da mulher samaritana, declara-se o Messias predito pelos profetas, mas o que chama a atenção dela é que ele falou de sua vida, de seus dilemas. Jesus se mostrou próximo dela, se interessou por sua vida e partilhou de seu sofrimento. Isto a marcou, profundamente.

Como acontece em quase todos os que se encontraram com Jesus, ao descobrir nele um grande profeta e o Messias prometido, a mulher torna-se evangelizadora. Ela proclama a Boa Notícia, ou seja, o próprio Cristo para o seu povo. Este vem ao encontro de Jesus e pede que permaneça na Samaria por mais tempo. O Messias atende ao pedido e fica durante dois dias. Depois de terem escutado a palavra libertadora de Jesus, os samaritanos creram e abraçaram a fé nele, confessando que Jesus é “verdadeiramente o salvador do mundo”.

Quando Jesus fala de uma água diferente da do povo de Jacó, a mulher se interessa em recebê-la. As palavras dela revelam não somente a sede corporal, mas uma sede por vida plena e dignidade. Isto a levou a anunciar Jesus para um povo sofrido e excluído. A alegria do anúncio foi um sinal de que Jesus saciou sua sede. Os samaritanos sentiram-se saciados com a palavra de Jesus, sentiram-se acolhidos pelo Ungido de Deus, abraçaram a fé a partir da experiência da escuta e do encontro com a fonte da água da vida.

Todo cristão e toda a Igreja são chamados a beber da fonte de água viva que é Jesus. A escuta de sua palavra leva-nos a aderir seu projeto. Este nos exige a acolhida e o respeito mútuos. Jesus não condenou os samaritanos. Assim, somos chamados a fazermos o mesmo: jamais condenar pessoas de outras religiões, povos e culturas. Com estes, devemos dialogar tendo como princípios o respeito, a tolerância, o amor, a justiça, que conduzem à verdadeira unidade. A diversidade de culturas existe e deve ser mantida e, sobretudo, respeitada.

Quais os samaritanos de nossos dias? Não seriam os homossexuais e as prostitutas, os espíritas e os que praticam o candomblé e outras culturas afro-brasileiras, as mulheres que sofrem preconceito em todas as culturas do mundo, os ciganos e imigrantes que estão sendo rechaçados na Europa e em outros lugares, os indígenas e quilombolas tidos como “bichos do mato”?... De fato, não são poucos os samaritanos de nossos dias.

Todo ser humano, no mais profundo de si, tem sede de Deus. Às vezes, este Deus não tem nome e quando tem, é diferente do nosso. Todas as religiões têm algo a nos ensinar. Não deve haver certa procura recíproca de erradicação e desvalorização, mas diálogo que nos leva à compreensão e à tolerância. Cada uma, à sua maneira e a partir daquilo que crê, deve procurar a Deus e atender o seu mandamento maior: o cuidado e o amor pela vida. Penso que não deva existir cultura autenticamente religiosa que não tenha como fim último a felicidade do ser humano. O caminho que nos leva a Deus não se encontra na uniformidade, mas na diversidade.

Para nós, cristãos, Jesus é a água que nos transforma em fonte de água que brota para a eternidade. Devemos viver saciados e inundados de Deus de uma forma que todas as pessoas que vierem ao nosso encontro possam viver a experiência da samaritana. As pessoas devem se encontrar com Jesus na pessoa de cada um de nós. Concluo esta reflexão citando um exemplo de um homem que bebeu na fonte que é Cristo e que se transformou a si mesmo num lugar de encontro com Deus.

Quem se encontrou alguma vez com Dom Hélder Câmara (1909 – 1999) sabe muito bem de sua paz de espírito e de sua generosidade. Sua presença irradiava a força e a presença divinas. As pessoas se alegravam com sua presença, palavras e gestos. Todos saíam edificados de sua presença. Isto acontecia porque aquele pobre Bispo vivia em comunhão com Deus através da fonte regeneradora da oração, da partilha e da justiça. Dom Hélder Câmara nos fez acreditar que, de fato, Deus habita em nós (cf. Jo 17, 23). Deus o constituiu profeta, homem da autoridade pacificadora e serviçal, do amor fecundo e verdadeiro. Isto significa ser fonte de água que jorra para a vida eterna. Água cristalina, que faz bem e que dá vida.


Tiago de França

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