sábado, 2 de abril de 2011

Jesus de Nazaré: Luz que nos liberta da cegueira


“Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não vêem vejam e os que vêem se tornem cegos” (Jo 9, 38).

A luz ocupa lugar central na Liturgia da Palavra deste IV Domingo da Quaresma. Na primeira leitura encontramos a eleição e unção de Davi como rei, como aquele que foi escolhido e ungido para governar o povo de Deus (1 Sm 16, 1b.6 – 7. 10 – 13a). Na segunda leitura, meditaremos a respeito do significado de ser luz na comunidade cristã (Ef 5, 8 – 14), e no Evangelho, vamos ver a conflituosa cura do cego de nascença e o que esta cura significa para nós hoje, na Igreja e no mundo.

Davi e o desafio de governar

Antes de Davi ter sido ungido rei de Israel, o povo vivia sob o regime tribal. O próprio povo pede um rei para governá-lo. Deus escuta e escolhi Davi, humilde pastor da casa de Jessé de Belém. Na eleição e unção de Davi aparecem dois detalhes que merecem nossa atenção, pois nos ajudam a entender o significado da missão do legítimo governante. Vejamos.

“Não olhes para a sua aparência nem para a sua estatura, porque eu o rejeitei. Não julgo segundo os critérios do homem: o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração”, disse o Senhor a Samuel quando este viu Eliab, um dos irmãos de Davi. Deus nos pede que não julguemos segundo as aparências das pessoas e das realidades mundanas. Infelizmente, é isto que costumamos fazer.

Julgar segundo as aparências é perigoso porque o ser humano não é só aparência, mas interioridade e essência. É verdade que não temos o poder de enxergarmos as pessoas a partir do coração, pois somente Deus conhece o mais profundo do nosso ser. Certa vez, santo Agostinho disse que Deus nos conhece mais do que nós nos conhecemos a nós mesmos. Em outras palavras, o ser humano morre sem saber quem realmente é. Somos seres complexos e dados ao infinito, que, cotidiana e gradativamente, vamos nos descobrindo na comunhão com Deus e com o próximo, nosso irmão.

O conhecimento de todas as coisas pertence somente a Deus. Ele sonda o nosso coração, conhece a nossa condição e as nossas mais profundas inquietações e buscas. O coração, segundo a tradição judaica, é o centro das decisões do ser humano. No Evangelho, Jesus ensina que é do coração que brotam nossas más ações. A psicologia, ciência moderna que estuda o comportamento do gênero humano, alerta-nos para o perigo de nos deixarmos levar pelas aparências das coisas e pessoas.

O mundo de nossos dias, chamado pós-moderno, está profundamente marcado pela estética. As pessoas estão cada vez mais preocupadas com a aparência, elas deixam de ser naturais para se tornarem superficiais; conhecê-las é um desafio exaustivo. A falsidade é a conseqüência inevitável de quem procura viver segundo as aparências. No fundo, devido ao apego às aparências, as pessoas tornam-se vazias e, aos poucos, vão perdendo o sentido da vida.

Viver segundo as aparências é uma decisão perigosa porque tudo o que é aparente é, conseqüentemente, passageiro. Assim sendo, mais cedo ou mais tarde, a verdadeira essência da pessoa vem à luz. Aos poucos, não suportando viver na superficialidade e não tendo mais condição de mantê-la, as pessoas se revelando. Algumas até demoram, outras chegam ao escândalo de si mesmas em pouco tempo.

Quer sejamos muito limitados, quer virtuosos, nossa vida deve ser pautada na autenticidade, ou seja, na verdade de nós mesmos. Precisamos vencer a tendência natural de resistirmos em dizer quem realmente somos. Quem se recusa à autenticidade leva uma vida medíocre e perde a oportunidade de viver, pois toda superficialidade alimentada pelas aparências é caminho para a morte.

Deus escolheu Davi porque lhe conhecia o coração. Em seu reinado veremos que ele não foi perfeito. Deus quis que Davi governasse seu povo e lhe garantiu a devida assistência: “E a partir daquele dia o espírito do Senhor se apoderou de Davi”. Deus chama e acompanha, orienta e guia de perto aqueles que escolhe e unge para a missão. O Espírito unge e confirma o chamado divino e coloca o missionário no caminho de Jesus.

Dom Oscar Romero dizia aos militares que assassinavam as pessoas durante a ditadura salvadorenha: “Parem de matar! Vocês não são obrigados a obedecer a ordens de superiores, ordens que são contrárias à ordem de Deus, que diz ‘Não matarás!’” (Homilia do dia 24 de março de 1980, dia de seu martírio). Deus confirma a autoridade que se coloca a serviço da vida do povo. Uma autoridade que teme a Deus não se deixa corromper em detrimento da vida dos pobres. Falar do rei Davi é recordar às autoridades que o poder de governar o povo deve ter como principio fundamental a justiça que promove a paz.

Jesus, o cego e a cegueira

O início do Evangelho deste Domingo revela uma crença que havia entre os judeus: a cegueira era considerada castigo divino pelos pecados praticados. Diante do cego de nascença, a pergunta dos discípulos mostra que eles também acreditavam em tal crença: “Mestre, quem pecou para que nascesse cego: ele ou os seus pais?” A resposta de Jesus põe um fim na tal crença: Jesus afirma que a cegueira daquele homem era lugar da manifestação das obras de Deus; que não tinha ligação alguma com pecado pessoal, familiar ou hereditário.

Jesus aproveita a ocasião para falar aos discípulos sobre o fim último de sua missão: a realização das obras de Deus. Ele veio para observar a vontade de Deus e esta está centrada na dignidade da pessoa humana. Jesus veio para servir às pessoas: esta era a sua missão. Ao concluir a sua resposta, Jesus afirma que era a luz do mundo e parte para a ação: “cuspiu no chão, fez lama com saliva e colocou-a sobre os olhos do cego”. Feito isto, mandou-o à piscina de Siloé: “O cego foi, lavou-se e voltou enxergando”. Estava livre da cegueira que lhe acarretava condenação e exclusão.

Depois de ter sido curado, deu-se início, por parte das autoridades judaicas, a perseguição ao pobre homem. Indagado pelas pessoas a respeito de Jesus, não escondeu a verdade: “É um profeta”. Não acreditando na cura, os judeus procuraram os pais do “ex-cego”, e estes, com medo das autoridades judaicas, que fizeram o propósito de expulsar da comunidade quem declarasse Jesus como o Messias, disseram: “Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego. Como agora está enxergando, isso não sabemos. E quem lhe abriu os olhos também não sabemos. Interrogai-o, ele é maior de idade, ele pode falar por si mesmo”.

Os judeus, não se convencendo do fato, resolveram acusar Jesus de ser mais um pecador entre os pecadores e instigaram o homem curado a fazer a mesma coisa, mas ele permaneceu convicto de que Jesus era, de fato, um profeta vindo de Deus: “Se ele é pecador, não sei. Só sei que eu era cego e agora vejo”. Depois ter sido acusado de ter nascido “todo em pecado” e de ter sido expulso da comunidade, o homem reencontrou-se com Jesus. Este lhe fez a pergunta que o levou à profissão de fé: “Acreditas no Filho do Homem?”

“Quem é, Senhor, para que eu creia nele?” Esta resposta curiosa do homem curado revela que ele tinha conhecimento a respeito da vinda do Messias. Diante desta pergunta, Jesus fala claramente que ele é, verdadeiramente, o Filho de Deus: “Tu o estás vendo; é aquele que está falando contigo”. Jesus o fez enxergar para que visse o Filho de Deus e para ter de volta a sua dignidade. E o homem acreditou em Jesus: “Eu creio, Senhor!”

Por fim, o texto termina com Jesus retomando sua reflexão a respeito da própria missão, desta vez, falando não da cegueira física, mas da cegueira da consciência e do espírito: “Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não vêem vejam e os que vêem se tornem cegos”. Estando por perto, os fariseus perguntaram a Jesus se eles eram cegos. Jesus lhes responde, imediatamente: “Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis: ‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece”. A cegueira que provoca indiferença era o grave pecado dos fariseus.

A cegueira na Igreja e no mundo

Não estamos mais falando de cegueira física, apesar desta ser um dos males que afetam milhares de pessoas em todo o mundo. A cegueira da consciência é a pior de todas as cegueiras e, infelizmente, está presente tanto na Igreja quanto no mundo. A Igreja está no mundo, logo a cegueira que encontramos neste encontra-se também naquela.

Há pessoas que se recusam a ver a realidade. Esta cegueira diante da realidade pode ser denominada cegueira de consciência. Ver a realidade compromete-nos, direta ou indiretamente. É justamente por causa do compromisso oriundo do ver que muita gente se recusa a abrir os olhos e ver. Tanto na sociedade quanto na Igreja isto tem provocado retrocesso e estagnação.

Uma pessoa alienada não pode ser cristã. Perde o seu tempo e engana-se a si mesmo se tentar sê-lo. Não existe Cristianismo desvinculado da realidade. Religião que não tem ligação com as realidades mundanas não é religião, mas ilusão e opressão religiosa. Na Igreja, é incontável o número de pessoas que se julgam cristãs através da prática de uma fé desvinculada do mundo. Depois do surgimento dos movimentos neopentecostais, este número aumentou bastante. Os neopentecostais procuram, de modo geral, as “coisas do alto” nas alturas, esquecendo-se de que elas se encontram no mundo. Isto é um tipo gravíssimo de cegueira.

A cegueira de consciência afeta a Igreja porque tal cegueira gera outro pecado grave: a indiferença. Vejamos o que nos diz a profecia de Dom Oscar Romero sobre o pecado da indiferença presente na Igreja: “Uma religião de missa dominical, mas de semanas injustas não agrada ao Deus da Vida. Uma religião de muita reza, mas de hipocrisias no coração não é cristã. Uma Igreja que se instala só para estar bem, para ter muito dinheiro, muita comodidade, mas que não ouve os clamores das injustiças não é a verdadeira Igreja de nosso divino Redentor” (Homilia do dia 20 de novembro de 1977).

No mundo secular, fora do contexto eclesial, a mesma cegueira manifesta-se, semelhantemente. Os cegos são aqueles que não acreditam nem lutam por um mundo melhor, pessoas que se opõem à luta pela vida e pela liberdade; que se recusam a trabalhar na construção do Reino de Deus porque o consideram uma ilusão e/ou fantasia. Estas pessoas são míopes, pois possuem uma visão estreitíssima da realidade. Sem a necessária conversão, são pessoas sem futuro, que simplesmente ocupam lugar no espaço, que não se ocupam com nenhuma causa, a não ser com a mera sobrevivência biológica.

A construção do Reino de Deus necessita de pessoas que tenham a coragem de ver a si mesmas e ao mundo do que jeito que são. Depois desta visão crítica destas realidades, o cristão é chamado a pensar sua ação (julgar) e, posteriormente, agir sobre a realidade à luz da fé iluminada pelo Evangelho. O Espírito Santo, presente na vida do cristão, liberta-o de toda e qualquer cegueira. Este mesmo Espírito nos ensina a discernir o que agrada a Deus, nos desperta de nosso sono e lerdeza, nos faz viver como “filhos da luz” na prática da bondade, justiça e verdade. É o que nos ensina o apóstolo Paulo ao escrever à Comunidade de Éfeso. Jesus, Luz do mundo, confere-nos a visão necessária, libertando-nos dos pecados da indiferença e do desamor.


Tiago de França

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