sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Fim do ano: um convite à revisão de vida


           Revisitar a própria vida nunca foi algo comum no ser humano pós-moderno. Centrado somente no presente e na busca incessante do prazer, muitas pessoas se esquecem de revisitar a própria vida. Ano após ano, muitos passam sem constatar crescimento algum em si mesmos. Evitam a todo custo responder com sinceridade, honestidade e verdade à indagação que a muitos incomodam demasiadamente: O que estou fazendo da minha vida?

            O mundo certamente seria bem melhor se as pessoas procurassem responder para si mesmas a esta valiosa indagação, pois ela nos leva a uma oportuna e necessária autoanálise. O medo de se descobrir e de aceitar a realidade da própria vida impede muitas pessoas de se colocarem diante de si mesmas. São poucas as que têm a coragem de mergulhar no mais profundo de si para se encontrarem com a própria verdade.

            Os argumentos contra esta importante atitude e oportunidade de crescimento são vários, porém pouco válidos. Os que se recusam a fazer esta desafiadora viagem para o mais profundo de si afirmam que é perda de tempo, que é psicologismo, que isso não leva a nada, entre tantas outras desculpas que falam explicitamente de certo medo e fuga de si. De modo geral, as pessoas fogem de si mesmas para se refugiarem nos outros.

            Em um mundo tomado pelo barulho e pela dispersão, a atenção é um valor cada vez mais esquecido. Prestar atenção em si e nos outros, ver a si e aos outros, perceber-se e perceber os outros são atitudes fundamentais na vida. Tais atitudes conduzem ao essencial e libertam do secundário, daquilo que nos prende e nos aliena. Geralmente, as pessoas vivem preocupadas com o que é secundário na vida, esquecendo-se do essencial. O que é, então, o essencial na vida?

            A espiritualidade cristã ensina que o essencial na vida é ter o coração voltado para Deus e os olhos fixos em Jesus. O Deus uno e trino é o essencial da vida cristã. Nele o cristão encontra o sentido de sua vida, sua razão de ser e de existir. O mandamento do amor preenche a vida daqueles que tem fé e que espera em Deus. No e pelo amor a pessoa permanece em Deus e Deus permanece nela, numa comunhão que realiza e salva.

            Para quem não professa a fé em Deus, o amor também é como que a norma que rege a vida. O amor não tem religião e alcança todo ser humano, independentemente de cor, sexo, religião e cultura. Portanto, o essencial é o amor, que humaniza as relações interpessoais e com a natureza. A experiência afetiva e efetiva do amor é capaz de transformar toda a face da terra, libertando o mundo de todo mal. Impulsionado pelo amor, o ser humano é capaz do bem, volta-se e promove o bem.

            A sede pelo poder e pelo ter escraviza muitas pessoas desviando-as do essencial. Elas passam toda a vida à procura do sucesso, do prestígio, do poder e das riquezas. A ideologia capitalista consegue convencê-las levando-as a saírem à procura do que não é essencial para serem felizes na vida. Exceto o necessário, o acúmulo de riquezas é um dos males que afetam gravemente e, apesar disso, é uma prática corrente na vida de muitos.

            Só tem paz de espírito quem dá atenção ao essencial, pois este realiza plenamente o ser humano. O supérfluo e tudo aquilo que dispersa tendem a escravizar a pessoa, angustiando-a e levando-a a um vazio existencial. O mundo está repleto de pessoas desorientadas, excessivamente preocupadas com questões e coisas desnecessárias, inúteis, fúteis. Escravas dos apegos, passam pela vida sobrevivendo sem rumo.

            Neste fim de ano, ficam estas indagações: o que fiz de bom para construir um mundo melhor? Como as pessoas se sentiram quando estive com elas? Com que e com quem gastei tempo e energia? O que despertou meu interesse? Como lidei com as situações difíceis? Em relação a 2011, sinto-me mais livre e feliz? O que me anima e impulsiona a querer continuar vivendo? Tratei as pessoas com amor ou com indiferença? Quais foram minhas experiências de reconciliação com as pessoas? Crendo em Deus, como anda a minha relação com Ele?...

            Responder com sinceridade e verdade a estas indagações é revisar a própria vida. Toda pessoa que nasce neste mundo é chamada a crescer, a aperfeiçoar-se, a tornar-se cada vez melhor. Revendo os principais fatos ocorridos em todo o mundo neste ano que termina é nítida a necessidade de pessoas novas, rejuvenescidas, renovadas e revigoradas; pessoas que acreditem em outro mundo possível, mundo de justiça e de paz para todos.

Em 2013, é preciso reforçar os acertos e rever os equívocos, é preciso buscar ser feliz na fraternidade, não no isolamento; no amor, não na indiferença; na reconciliação, não nas intrigas; crendo que o amanhã só depende de nós, de nosso senso de justiça e de solidariedade para com o próximo; e que acima de tudo o importante é ser feliz e fazer os outros felizes.

Tiago de França

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Mensagem de Natal


“E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14).

Prezado/a amigo/a e irmão/ã em Cristo,

Graça e paz!

            Anualmente, costumo escrever uma mensagem de Natal aos amigos e comunidades por onde passei. Esta feliz Solenidade tem muito a nos ensinar no mundo de hoje. Não podemos permitir que ela seja esquecida e manipulada pelo consumismo, que leva muitas pessoas a se esquecer daquele que dá sentido ao Natal: Jesus de Nazaré.

Não faz mal trocar presentes, enfeitar casas, ruas e praças, juntar a família em torno da mesa para a refeição festiva. Tudo isto é bom, mas o verdadeiro sentido do Natal está na celebração do mistério da encarnação do Verbo de Deus. Por isso, vamos pensar o Natal a partir de três realidades: a do mundo, a da Igreja e a nossa própria realidade pessoal.

O mundo

            O mundo é fruto da ação humana, portanto, parece com o ser humano que o habita. A realidade mostra que estamos numa profunda crise de identidade. A fome, a violência e tantos outros males parecem insolúveis. A indiferença torna as pessoas insensíveis diante das necessidades do próximo. O mundo parece caminhar sem rumo. Ninguém sabe ao certo aonde iremos chegar. A crise econômica que assola a Europa gera insegurança em todo o mundo e os conflitos bélicos no Oriente não cessam.

            O Verbo de Deus se fez carne e habitou este mundo. Jesus esvaziou-se de si mesmo e se fez homem no mundo: foi plenamente humano. Levou a missão que o Pai lhe confiou até às últimas consequências. Ele foi fiel, não fugiu do mundo. Ensinou o mandamento do amor para que seus seguidores pudessem fazer a mesma coisa: não fugir do mundo, mas transformá-lo, cotidianamente, a partir do amor. O amor é única força capaz de transformar o mundo, tornando-o habitável para todos.

A Igreja

            A situação eclesial é tão confusa que é difícil defini-la. Há comemorações em torno dos 50 anos da abertura do Concílio Vaticano II (11/10/62 – 11/10/12), mas tais comemorações são marcadas pelo retrocesso e pelo saudosismo. Retrocesso por parte dos que trabalham pela ressurreição da Igreja pré-Vaticano II, de orientação tridentina; saudosismo por parte de muita gente progressista, que assiste a morte gradativa de comunidades eclesiais de base e de grandes figuras que se destacaram na luta pela libertação dos oprimidos.

            Apesar das diversas formas de opressões dentro e fora da Igreja, a palavra libertação é quase impronunciável. Quando falam de libertação referem-se a um movimento espiritual de libertação dos pecados meramente pessoais. A hierarquia está preocupada porque parece que os católicos não pecam mais; consequentemente, não procuram confessar os pecados. Há um número grandioso de clérigos e religiosos sem causa, que apegados aos atos litúrgicos pensam estar servindo ao Deus de Jesus. A Igreja precisa fazer uma urgente releitura do mistério da encarnação de Jesus para reencontrá-lo em Nazaré, onde está nascendo o verdadeiro Messias.

Colaboração pessoal

            O mundo carece de mulheres e homens de fé, que não percam a esperança e que atuem em vista de outro mundo possível. A esperança cristã sustenta o seguidor de Jesus no caminho que conduz à vida plena. Cada pessoa, a partir daquilo que é e que faz, é chamada a dar sua parcela de contribuição. Impulsionados pelos valores do evangelho o cristão é um trabalhador na vinha do Senhor. Na ociosidade não se pode esperar que a realidade mude para melhor.

            O discípulo missionário de Jesus é um anunciador da palavra de Deus. Esta palavra transforma as estruturas deste mundo. Esta transformação passa pela conversão das pessoas. Na escuta e no entendimento do evangelho a pessoa se transforma radicalmente, tornando-se sal e luz do mundo. Permitir que o mundo padeça nas trevas do erro e da ignorância pela falta do anúncio do genuíno evangelho de Jesus é um gravíssimo pecado de omissão.

            Sempre se pode fazer alguma coisa. As pessoas que precisam estão aí, presentes no cotidiano da vida de todos. O clamor dos empobrecidos se levanta de toda parte. Não enxerga nem escuta quem não quiser. Não basta ser solidário somente no tempo no qual se celebra o Natal. A solidariedade deve ser uma experiência permanente, como é o amor de Deus para com cada ser humano. O desejo de Deus é que na fraternidade todos possam viver dignamente, pois o culto celebrado por quem pratica a injustiça e a omissão não é aceito por Deus.

            Não há Natal sem participação na vida do próximo. O Natal acontece na periferia deste mundo, na manjedoura de Belém, na pequenez de uma pobre criança. Fora deste espírito fraterno só há aparência. Pode até haver alegria, mas não é a alegria do Natal do Senhor. Eis a expressão insistente do Senhor: “Procuro abrigo nos corações, de porta em porta desejo entrar, se alguém me acolhe com gratidão, faremos juntos a refeição”. Abrir o coração para acolher Jesus significa acolher a sua mensagem e colocar-se no seu caminho; caminho de justiça, amor e reconciliação.

            A você que acaba de ler esta mensagem, desejo-lhe um Feliz Natal e um Ano Novo repleto da graça de Deus!

            Fraternalmente, em Cristo Jesus,

Tiago de França da Silva
Belo Horizonte – MG, 24 de dezembro de 2012.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Acolher o Cristo que vem


“Que devemos fazer?” (Lc 3, 10).

            Estamos no Tempo de Avento. O que dizer deste tempo? Precedendo o Natal do Senhor, o advento é um tempo de esperança e de alegria; de espera e de reflexão; de leitura da palavra de Deus e de conversão. A espiritualidade deste tempo é a da espera ansiosa da vinda do Messias, o Libertador do povo de Deus. O texto evangélico deste III Domingo do Advento (cf. Lc 3, 10 – 18) traz a figura do profeta João Batista, que responde à pergunta que todos devemos fazer: Que devemos fazer para acolher o Messias que vem?

            Às multidões, o profeta responde: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo!” Trata-se de um convite à solidariedade que deve existir na comunidade cristã. Não se pode esperar o Messias fechando os olhos e as mãos diante das necessidades do próximo. Na comunidade eclesial é muito comum vermos isto: as pessoas querem acolher Jesus na Eucaristia, nas espécies de vinho e pão, mas se recusam a acolhê-lo na pessoa dos que sofrem, dos que precisam ser acolhidos em suas necessidades.

            A ideologia capitalista induz à indiferença: é a lei do salve-se quem puder! Os que não conseguem acompanhar as exigências do sistema são excluídos, considerados incapazes, preguiçosos e sem futuro. São exigências injustas, que existem em função da exclusão. É um modelo de sociedade que não oferece oportunidades para que todos possam viver dignamente. O profeta João Batista está mostrando os sem túnica e os sem comida. Na comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus estes não podem ser esquecidos.

            Aos cobradores de impostos, João Batista responde: “Não cobreis mais do que foi estabelecido”. O profeta está denunciando um dos males que se perpetuam na humanidade de todos os tempos: a exploração dos pequenos. O imposto sempre foi exploração dos pequenos. Os ricos sempre pagaram poucos impostos e quando pagam não sofrem como os pobres. Há quem viva à custa dos pequenos: quem assim procede precisa de conversão para acolher o Cristo que vem. O evangelho de Jesus não coaduna com a exploração dos pequenos.

            Aos soldados romanos, o profeta responde de forma semelhante: “Não tomeis à força o dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário”. Era fato comum na época tomar à força o dinheiro dos pobres. Estes eram constante e falsamente acusados e incriminados nos tribunais. A ambição levava os soldados a roubar os indefesos. Por isso, o profeta pede para que fiquem satisfeitos com o salário que recebiam. É um chamado a uma mudança radical de vida, para que cessem as injustiças praticadas contra os pobres da época.

            Para os que pensavam que ele seria o Messias, João Batista caracteriza o verdadeiro Messias: o forte; o que batiza com o Espírito e com o fogo; aquele que com a pá na mão irá limpar sua eira recolhendo o trigo e jogando a palha no fogo que não se apaga. O Messias é o forte porque Deus é o forte, que libertou o seu povo da casa da escravidão; é aquele que dará o Espírito para a edificação do Reino de Deus; que julgará os pobres com justiça, consolando-os em seus sofrimentos; é o enviado de Deus para estabelecer neste mundo um novo céu e uma nova terra.

            Para acolher o Messias que vem é preciso isto: querer viver no amor e na justiça. Estes valores do Reino não são praticados na solidão de uma vida isolada, mas na comunidade, na fraternidade. Eles são fundamentais na construção de novas relações, mais sadias, portanto, gratuitas. E assim, aparecerá um mundo novo, mais humano e fraterno no qual a indiferença sequer será lembrada. Neste novo mundo, as pessoas poderão viver como irmãs umas das outras, serão felizes. E Deus será tudo em todos.

Tiago de França

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O Ano da Fé


           O Papa Bento XVI convocou a Igreja para viver e celebrar o Ano da Fé, de 11 de outubro de 2012 a 11 de outubro de 2013. Logo no início, ocorreu em Roma o Sínodo dos Bispos, que teve como tema A Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã. Estas iniciativas demonstram a preocupação do Papa com a atual situação da Igreja: diminuição significativa do número de fiéis em todo o mundo, principalmente na Europa, considerada berço da cristandade. A evasão de fiéis é consequência de outros problemas internos da Igreja, mas é o motivo principal que perpassa o Ano da Fé e o Sínodo dos Bispos.

            Ainda não saiu a exortação apostólica pós-sinodal do Sínodo dos Bispos deste ano, mas pelo que se comenta não terá grandes novidades. Os Bispos não se reúnem em Roma para realizar grandes mudanças na Igreja. Institucionalmente, esta sempre foi lenta para realizar mudanças. Estas não podem ser esperadas. Mudanças sempre vieram das bases da Igreja, das lutas dos leigos, em meio a pressões e perseguições. Exemplo disso foi o movimento dos mendicantes do séc. XIII, na pessoa de São Francisco de Assis e tantos outros; mas o aparato institucional abafou a herança deixada pelos mendicantes: de pobres missionários passaram a ricas ordens religiosas.

            Por trás da preocupação pela diminuição significativa de fiéis se esconde outra mais séria: uma hierarquia fragilizada, que perde cada vez mais o controle sobre os fiéis. Estes, em sua maioria, não dão mais atenção ao que o clero ensina e afirma. Para justificar e legitimar a importância de suas posições e ensinamentos, a hierarquia acusa o relativismo como um dos maiores males do século. É verdade que o relativismo é um mal que afeta gravemente o ser humano pós-moderno, mas é verdade também que o mesmo não é o único que explica a evasão de fiéis e a crise institucional da Igreja.

            Não é só o relativismo que torna a hierarquia fragilizada, mas ela em si mesma é causa de sua própria fragilidade. Constituída verticalmente por homens excluindo, assim, a mulher, não consegue encontrar, a partir de sua atuação pautada na centralização do poder, respostas aos problemas que afligem o homem hodierno. A maioria dos jovens não se identifica mais com o ministério ordenado da forma como se encontra ordinariamente instituído na Igreja. Isto tem provocado um preocupante esvaziamento nos seminários, assim como um declínio no número de presbíteros em todo o mundo.

            O que se anuncia sobre o Ano da Fé não parece ser aquilo que realmente se quer alcançar com o mesmo. Anuncia-se que há uma séria necessidade de se explicitar melhor o seguimento de Jesus Cristo; que o cristão precisa comprometer-se com a conversão; que a Igreja é comunidade Povo de Deus, assembleia dos chamados; que a Igreja não deve se preocupar com o número, mas com a qualidade de seus membros; que a doutrina que conduz a salvação precisa ser melhor compreendida para ser praticada etc. Tudo isto pode e parece ser orientado para o fim a que se pretende realmente: reforçar a identidade católica para que a Igreja não perca totalmente sua hegemonia no mundo.

            Quem se recorda do Ano Sacerdotal? O que ficou deste ano convocado pelo Papa Bento XVI? Substancialmente, nada mudou na vida dos presbíteros e na sua missão na Igreja. Sem ser pessimista, mas penso que ocorrerá a mesma coisa com o Ano da Fé: muitas celebrações, seminários, simpósios, subsídios, debates e tantos outros eventos; mas, substancialmente pouca coisa ou quase nada mudará. E não mudará porque não haverá espaços para as urgentes, necessárias, almejadas e esperadas mudanças. Isto porque o novo sempre causa medo e insegurança.

            Há quem ache pessimista ou reducionista tal abordagem, mas parece ser a mais coerente com a realidade da Igreja. Apesar de tantas infidelidades e/ou incoerências, o Espírito de Deus não falta a seu povo, permanecendo-lhe fiel. Esta fidelidade divina assegura a realização plena do Reino, portanto, a salvação do gênero humano; salvação gratuita e universal, que contempla toda a humanidade, porque assim Deus o quis. Esta é a esperança cristã que perpassa toda a história e que a conduz até a consumação dos séculos.

Tiago de França

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O ser e o fazer na vida cristã


“Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Nem, em parte alguma habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular” (Carta a Diogneto, séc. II).

            O ser precede o fazer. Impulsionada por um modo próprio de ser, a pessoa age, manifesta-se no mundo com sentido e convicção. Esta ação é capaz de transformar, de fazer a vida acontecer, de recriar as coisas, aperfeiçoando-as para o bem. A experiência cristã acontece no caminho, no movimento peregrinante. Cristo, quando habitou historicamente este mundo adotou um estilo próprio: o de fazer-se companheiro do ser humano na lida simples do cotidiano da vida.

            Ele não fez nem pediu para fazer nada além disso. Sua religião consistia na leitura e na prática da palavra transformadora de Deus. A novidade de Jesus estava na observância da palavra de Deus. Era um judeu praticante da palavra, não mero observante da lei mosaica. Sua união com o Deus de Israel o levou à perfeição. Quem o encontrava não via nada de extraordinário em seu jeito de ser.

            Justamente por isso, as autoridades religiosas de seu tempo não viam nele o Messias esperado. Não aparentava ser dotado de poderes especiais. Todos perguntavam pela origem da autoridade de sua pregação, admiravam-se quando souberam que era filho de carpinteiro, nascido em Nazaré. Até seus familiares se escandalizaram com seu jeito de ser. Dedicou a vida ao anúncio do Reino de Deus, foi perseguido, crucificado e ressuscitou ao terceiro dia.

            Depois de Jesus, os cristãos permaneceram fiéis à sua mensagem por um bom tempo. Passado o tempo das perseguições, a hierarquia da Igreja já nitidamente constituída aderiu ao Império Romano e o evangelho de Jesus foi aos poucos sendo esquecido. Um número significativo de cristãos saiu das cidades e foi morar no deserto, viviam sozinhos (eremitas) e em comunidade (cenobitas), esforçando-se para preservar a prática da mensagem cristã.

            O poder, as riquezas e o prestígio se infiltraram na vida da Igreja, mas mesmo assim o Espírito suscitou, ao longo da história, mulheres e homens evangélicos. Estas pessoas simplesmente se colocaram no caminho de Jesus e foram confirmadas por Deus. Ao longo do tempo, a Igreja foi se institucionalizando e, com isto, foram aparecendo códigos, normas e regras das mais diversas sobre todos os aspectos da vida eclesial. Junto a todo este conjunto normativo apareceram pessoas que foram se apegando à observância de tais coisas, em detrimento do evangelho de Jesus.

            Com o aparecimento das normas institucionais e das diversas práticas religiosas o ser cristão passou a ser identificado com a observância de tais normas e práticas. A fidelidade cristã passou a ser medida pela fidelidade aos princípios religiosos. O aparato religioso e institucional abafou a novidade do evangelho de Jesus, que faz o verdadeiro cristão. A preocupação pelo cumprimento fiel do que foi estabelecido pela instituição religiosa não deixa espaço para a prática da palavra de Deus. De modo geral, as pessoas não tem tempo para meditar e compreender a palavra de Deus.

            O cristão é pessoa simples e humilde, que vive no meio do mundo orientando-se pelos valores do Reino. Portanto, diferencia-se pela abertura, pela generosidade, pelo serviço e pela acolhida do outro. Vivendo despojadamente, procura fazer, acima de tudo, a vontade de Deus. Nada faz de extraordinário, sua vida já é extraordinária. Sua regra de vida é o amor e neste persevera até o fim. Este é o jeito de ser cristão, que supera o mero fazer que conduz ao vazio. Preenchido pelo Espírito e, por isso mesmo, livre de todo vazio existencial, o cristão tem os olhos fixos em Jesus, porque apaixonado por este confere sentido à vida, mesmo que esta aparentemente esteja desfigurada, mas a esperança cristã o faz superar todas as coisas.

Tiago de França

domingo, 25 de novembro de 2012

Jesus Cristo: rei do universo


“Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18, 37).

            Jesus foi aclamado rei, mas se recusou a tal aclamação. Os judeus esperavam um messias glorioso e dominador, que fosse reinar e acabar com a opressão no império romano. Jesus frustrou as expectativas das pessoas que esperavam um messias deste tipo: coroado de espinhos, foi morto numa cruz, símbolo da humilhação e da maldição. Não tinha os atributos dos reis mundanos: poder, prestígio e riqueza. Era impotente, mal visto e pobre. Vivia pregando o advento do Reino de Deus, que é plenamente oposto aos reinos deste mundo. Sua mensagem não foi acolhida, a não ser pelos empobrecidos, que viam nele a presença amorosa do Deus da Israel, Deus da vida e da liberdade.

            Os evangelhos falam de um rei humanamente impotente. Nas Igrejas cristãs a imagem do Cristo glorioso é muito bem recebida e propagada. O ser humano gosta das glórias, busca o poder, o prestígio e a riqueza. De modo geral, os cristãos não se identificam com o Cristo pobre e crucificado; desejam um Messias glorioso, constituído de poder e glória, que possa resolver todos os problemas da condição humana. O ser humano destrói a si próprio e a beleza da criação e invoca a realiza de Jesus para que venha reinar e resolver todas as coisas. As Igrejas pecam gravemente ao cultivar este tipo de imagem na cabeça das pessoas.

            Na imagem que fizeram do Cristo rei do universo aparece um Jesus que em nada se diferencia dos reis deste mundo: coroado, revestido com roupas luxuosas e com um cetro na mão. É o Cristo do imaginário de quem o fez, não o que aparece nos evangelhos. O Cristo é rei enquanto princípio e fim de toda a criação, porque por ele todas as coisas foram criadas (cf. Jo 1, 3); mas enquanto humano, Jesus nunca reinou neste mundo. O seu reino é o Reino de Deus, que acontece neste mundo e que na sua volta (parusia) se tornará realidade plena e perfeita.

            Diante de Pilatos, Jesus falou claramente de sua missão: Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. A verdade do Cristo é livre e promotora da salvação universal. É a verdade que fala do verdadeiro significado do ser humano, daquilo que este tem de mais íntimo e, portanto, de mais misterioso. A verdade de Jesus revela quem é o ser humano, é a sua epifania. Em um mundo tomado pela mentira, que gera confusão e oprime as pessoas, Jesus convida para que sejamos testemunhas da verdade; verdade que já está impressa na consciência e no coração de todo gênero humano, que por natureza tende para o bem e para a verdade.

            Quando criaram a festa de Cristo rei do universo pensaram no domínio de Cristo sobre a terra e sobre os poderes que atuam no mundo, identificando tal domínio com a missão da Igreja. Sem rodeios, eis o pensamento que deu origem a esta festa: Jesus é rei do universo e instituiu a Igreja para que governasse todo o mundo. Portanto, todos tem que se submeter ao poder da Igreja, na pessoa do Papa, que é a ponte que liga a terra ao céu.

Este pensamento tem dois equívocos, que são tranquilamente desmentidos pelos evangelhos: primeiro, que Cristo veio para dominar. Este verbo não pode ser posto para Cristo, pois não corresponde ao que ele é. Jesus não foi enviado para dominar, mas para anunciar o Reino de Deus. Segundo, que Cristo instituiu a Igreja para governar o mundo. Jesus nada instituiu neste mundo. Nenhuma instituição pode se remeter a Cristo como seu fundador. A Igreja nasceu para evangelizar (cf. Evangelii Nuntiandi, n. 14) e tal evangelização passa necessária e imprescindivelmente pelo anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus. O anúncio do Evangelho dispensa o domínio e entra em profunda contradição com o mesmo. Na verdade, toda forma de dominação do ser humano, inclusive a dominação religiosa, é denunciada pelo evangelho de Jesus. O anúncio em si é denúncia contra toda forma de dominação.

O Reino de Deus anunciado por Jesus acolhe e promove todas as pessoas que são excluídas neste mundo. Este Reino é edificado a partir do amor, da verdade, da liberdade, da justiça, da solidariedade, da partilha, da comunhão, do respeito e de todo valor que promove a dignidade do ser humano. Assim como Jesus, quem quiser fazer parte do seu Reino é chamado a dar testemunho da verdade. Para escutar sua voz é preciso ser da verdade. O discípulo missionário de Jesus é toda pessoa que dar testemunho da verdade e que na escuta atenta de sua palavra se coloca no seu caminho até às últimas consequências. Colocar-se no caminho de Jesus, rei servidor, é permanecer na direção do próximo, na disponibilidade do serviço.

Tiago de França

domingo, 11 de novembro de 2012

As virtudes da acolhida e da generosidade


          Os gestos de duas viúvas chamam a atenção na Liturgia da Palavra deste XXXII Domingo Comum (cf. 1Rs 17, 10 – 16; Mc 12, 38 – 44): a primeira, é a de Sarepta, com a qual o profeta Elias se encontra e a segunda, é a que está sendo observada por Jesus, no templo de Jerusalém. A partir dos textos, vamos comentar tais gestos e tentar tirar deles alguma iluminação para nossa vida.

            Elias é um profeta de Javé. A figura do profeta é a daquele que anuncia a palavra de Deus e denuncia a idolatria e a injustiças que oprimem o povo de Israel. Elias é um dos maiores profetas do povo de Deus. Na ocasião do presente texto, se encontra com uma viúva. Órfãos e viúvas faziam parte da classe dos deserdados, dos desprotegidos e dos esquecidos de Israel. O Deus de Elias é o verdadeiro Deus, aquele que escolhe e ama seu povo cuidando com amor materno os filhos sem vez e sem voz, os que são excluídos.

            À viúva Elias pede água e pão. Não é um pedido para testar a generosidade e a bondade daquela pobre mulher. Elias era um pobre de Javé. Servindo a Deus vivia pobremente. Por isso, estava na mesma condição da viúva. Não lhe era superior em nada. Trata-se do encontro de dois pobres que tem somente a Deus como riqueza de suas vidas. A pobre viúva não tinha pão, mas um punhado de farinha para preparar um alimento e esperar a morte chegar. Elias representa a presença provedora de Deus, que não abandona seus filhos e filhas.

            Acolhendo o profeta, a viúva acolheu a Deus, que não deixou nada faltar. Elias simplesmente se fez presente, participou da vida daquela mulher, lhe falou da generosidade divina, que faz brotar a fartura. “Não te preocupes!”, fala Elias para a viúva. Diante da difícil situação da vida, a confiança na divina Providência nos ensina que não devemos nos afligir, nos desesperar. A esperança de que tudo se resolverá com paciência operosa é o que Elias nos faz entender. “A mulher foi e fez como Elias lhe tinha dito”: houve ação, e nesta Deus não se ausentou. Ir e fazer com a confiança no Deus que faz com que as coisas boas aconteçam na vida daqueles que nele confiam.

            Em nossos dias há tantos Elias que estão junto às viúvas e órfãos esquecidos no silêncio e no anonimato de uma sociedade que não os enxerga. São mulheres e homens que se deixam tocar pela palavra de Deus que aponta para os excluídos. O profeta Elias está na Igreja falando incansavelmente do sofrimento dos excluídos. São poucos os que escutam os profetas. A maioria dos que se consagraram para o cuidado e a evangelização dos excluídos está ocupada com a burocracia eclesiástica. Enquanto os excluídos querem água e pão, os consagrados estão preocupados com as rubricas eclesiásticas, como se estas contribuíssem em alguma coisa para que o Reino de Deus aconteça.

            Antes do episódio da pobre viúva que deposita duas pequenas moedas no cofre do templo, Jesus alerta a multidão a respeito dos doutores da lei elencando as qualidades vergonhosas deles: gostam de andar com roupas vistosas; gostam de ser cumprimentados nas praças públicas; gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas e nos banquetes e devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. São os defeitos de quem deseja ser grande, aplaudido e venerado por todos; é o proceder dos opressores, que se aproveitam dos mais fracos.  Jesus, o profeta por excelência, denuncia a hipocrisia das autoridades religiosas de seu tempo. Se formos atentos a muitos dos clérigos da Igreja perceberemos que há neles estas mesmas maneiras de proceder.

            Jesus chamou a atenção dos discípulos para a pobreza e generosidade da viúva que depositou sua esmola no templo. Nas Igrejas cristãs há uma leitura distorcida deste acontecimento. Muitos se utilizam deste texto para legitimar o dízimo, afirmando que se deve devolver a Deus aquilo que ele nos dá e que se deve fazer como a viúva: dar tudo o que possui. Tal leitura induz as pessoas a fazerem um acordo financeiro com Deus: elas lhe oferecem o dízimo e outras ofertas esperando receber em troca as bênçãos, os milagres e a solução para seus problemas materiais. Não foi para ensinar isso que Jesus chamou a atenção de seus discípulos, mas para denunciar os ricos, que de tanto possuir davam daquilo que lhes sobrava recusando-se, assim, à verdadeira partilha fraterna.

            Acolher e ser solidário com o próximo são ações do seguidor de Jesus, mas ações gratuitas, portanto, despojadas de interesses. O cristão não precisa esperar de Deus recompensa alguma por ser acolhedor e solidário para com o próximo, pois proceder desta forma já é em si recompensa. É feliz quem assim procede! É sinal de que compreendeu a mensagem cristã e está colocando-a em prática. A verdadeira felicidade do cristão está em servir com generosidade e alegria. Agir com generosidade é colocar-se integralmente a serviço dos irmãos e irmãs, assim como a viúva: sem reservas.

Tiago de França

sábado, 3 de novembro de 2012

Ser santo hoje


           O Concílio Vaticano II afirmou que todo cristão é chamado a ser santo. Portanto, o chamado à santidade é universal. A santidade não é privilégio de poucos, pois o mesmo Espírito ilumina e santifica a todos. Este Espírito santificador é dom gratuito de Deus, é ação amorosa de Deus presente no mundo e que conduz o ser humano à comunhão com Deus. É a força divina que não podendo ser controlada nem manipulada por ninguém renova todas as coisas. O Espírito é que faz os santos.

            Em todas as épocas da história da Igreja e até os dias de hoje, as pessoas sempre pensaram que o santo é alguém perfeito, que cumpre fielmente os mandamentos de Deus. Por isso, a santidade era vista como algo distante, inacessível, somente possível aos religiosos. As biografias dos santos antigos se revestem de fatos miraculosos que induzem as pessoas a verem os santos como seres superiores, escolhidos para viverem outro estilo de vida totalmente diferente da vida do comum dos mortais. Por isso, o santo era alguém separado do mundo. Apesar disso, sempre houve santos e santas fora deste modelo tradicional.

            Após o Concílio Vaticano II a compreensão mudou radicalmente. Vamos caracterizar a santidade a partir de três valores ou realidades fundamentais, sem as quais não pode existir santidade hoje.

            O santo é aquele que se coloca no caminho de Jesus de Nazaré. Colocar-se a caminho é partir, sair de si mesmo e ir ao encontro do próximo. No caminho de Jesus há o encontro alegre e fraterno entre as pessoas. Estas se encontram para seres felizes na comunidade, na unidade que acontece na diversidade. Neste sentido, o santo é alguém que está em movimento, que vê a vida a partir da evolução de todas as coisas, que vive em plena transformação. Portanto, o santo não é encontrado em casa, preservando sua vida, longe dos perigos da vida. É pessoa do mundo, da vida comum e, consequentemente, simples, sem chamar a atenção de ninguém.

            O santo é aquele que procura ser livre, deixando-se guiar somente pelo Espírito de Deus. Vivendo normalmente, encontra-se espiritualmente livre. Não há quem consiga controlá-lo, pois está sempre além de seu tempo, vivendo o tempo da graça de Deus. O santo põe toda a sua confiança em Deus. Deus é sua única segurança. Depende única e exclusivamente da força do Espírito. Este o conduz na e para a liberdade. Somente quem é conduzido pelo Espírito é verdadeiramente livre. É o Espírito que o auxilia no cumprimento da vontade de Deus, impedindo que se deixe dominar pelo egoísmo.

            O santo é aquele que procura pautar sua vida no amor e não na observância da lei. Na sociedade e na Igreja há muitas leis, o santo as cumpre procurando viver o mandamento do amor a Deus e ao próximo. Não há nenhuma preocupação com as leis, estas não o aprisionam. Muitas vezes, para cumprir a vontade divina, o santo entra em conflito com a lei, desobedecendo-a. A exemplo de Jesus, põe a vida acima da observância da lei. O que importa é amar a Deus e ao próximo e para isto necessita, às vezes, confrontar-se com leis que contradizem o evangelho de Jesus, tanto na sociedade quanto na Igreja.

            Não são santos somente os que são canonizados pela Igreja. Para ser santo não é necessário tal reconhecimento. São incontáveis os santos e santas que existem no mundo, vivendo no anonimato, principalmente entre os mais pobres, tornando este mundo mais fraterno e possível para todos. Inspirados e conduzidos pelo Espírito e orientados pela liberdade e sabedoria do Evangelho são presença amorosa de Deus recriando no amor todas as coisas. O Espírito não deixa faltar ao mundo e à Igreja os santos e santas de Deus. 

Tiago de França

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A morte e a ressurreição


“Eu entendo que os sofrimentos do tempo presente nem merecem ser comparados com a glória que deve ser revelada em nós” (Rm 8, 18).

            Anualmente, a celebração do Dia de Finados convida-nos a repensarmos a dimensão de finitude da existência humana: a espécie humana nasce, cresce, se reproduz e morre. É um ciclo que não se interrompe. Não há quem escape do fim, todos morrem. Há quem afirme que esta é a dimensão trágica da existência. São poucas as pessoas que conseguem se reconciliar com a morte. A maioria foge, uns não suportam nem ouvir falar. O ser humano tem medo da morte. Esta angustia a uns, deprime a outros. Vamos ousar algumas afirmações a partir da experiência de Jesus de Nazaré. Como Jesus encarou a morte? Qual sentido que ele conferiu à própria morte? O que significa morrer em Cristo para ressuscitar com ele?

            O texto evangélico nas suas quatro versões (Mt, Mc, Lc e Jo) falam que Jesus realmente morreu crucificado. Jesus não morreu aleatoriamente. Sua morte não foi mero acidente de percurso nem pura predestinação, mas consequência de sua missão. Há quem faça uma interpretação evangélica que leva a um Jesus neutro, sem causa alguma. Tal interpretação é infiel aos fatos e, portanto, não corresponde à realidade que os textos revelam. Se Jesus não tivesse optado pelos excluídos do seu tempo, certamente teria morrido idoso e querido pelas autoridades civis e religiosas do seu tempo.

            Jesus procurou viver sua vida intensamente, sem se preocupar com a morte. Quando se referia a ela sempre mencionava a ressurreição, a vitória sobre a morte. Sua preocupação era o cumprimento da vontade do Pai. Ele tinha plena consciência de que o cumprimento da vontade divina naquele contexto o levaria à morte violenta. A vontade do Pai era que ele fosse o missionário, o pregador da Boa Nova do Reino no meio dos marginalizados da época. Em plena sintonia com esta divina vontade, Jesus colocou-se a serviço da libertação dos empobrecidos, ensinando e pregando o Evangelho do Reino no meio do povo de Deus.

            A vida pública de Jesus nos ensina que a morte não deve ser motivo de preocupação. Toda preocupação gera ansiedade, angústia, medo e até depressão. A vida acontece naturalmente e devemos procurar vivê-la com sentido. Viver sem sentido não vale a pena, já é a morte visitando-nos, antecipadamente. Quem procura dar um sentido à própria vida não tem medo da morte. Entregar-se plenamente a uma causa com amor e zelo é caminho certo para superar tal medo. O amor afetivo e efetivo não permite que o medo nos aprisione, mas nos mantêm esperançosos e acordados na vida.

            Outro dado fundamental é que Jesus era um homem despojado, desapegado: amava as pessoas sem se apegar a elas. Sua liberdade o levou ao desapego da própria vida. Com sua vida mostrou que o apego é um sério empecilho para o amor e com sua morte evidenciou o valor da liberdade em relação a todas as coisas. Ninguém forçou Jesus, ele abraçou a morte com liberdade. Somente a pessoa despojada é capaz de enfrentar a morte com liberdade, do contrário morre angustiada e infeliz. Jesus foi ao encontro da morte com plena confiança no Pai, pois sabia que não o abandonaria jamais. Na morte, entregou-se nas mãos de Deus. Sua vida pertencia a Deus, pois Deus era o sentido último de sua vida.

            A íntima comunhão com Deus, através de uma vida pautada no amor e na relação pessoal com Deus confortou Jesus diante da morte. Suas ações e palavras testemunham sua entrega, sua fidelidade ao Pai. Em sua vida não havia espaço para o domínio do medo. Ele não podia ocupar-se com o medo sendo que tinha que estar com as pessoas, ouvindo-as, consolando-as, levando-as à comunhão com Deus. Nisto consistia sua missão. Todos se sentiam atraídos por este jeito simples e autêntico de ser.

            São Francisco de Assis ensinava que a morte é nossa irmã, companheira que não falta a ninguém, que nos conduz ao encontro com o Absoluto, que faz a criatura voltar ao seio de seu Criador. Quem assistiu sua morte é testemunha de sua serenidade, de sua alegria, de sua entrega definitiva. Outra morte edificante foi a de Santa Terezinha do Menino Jesus: tranquila, serena, pacífica, santa. Estas e tantas outras pessoas levaram uma vida sem egoísmo, sem pretensões ambiciosas, sem ódio. Sabiam que a vida continua após a morte, que seriam acolhidas na alegria da face de Deus. Neste sentido, a morte deixa de ser algo ruim e terrível e se transforma num momento de encontro, de paz de espírito, de páscoa.

            Todas as pessoas corajosas que buscam viver simples e humildemente neste mundo, sem ilusões nem apegos já estão vencendo a morte, estão ressuscitando. Quando a morte do corpo lhes chegar não será motivo de desespero, mas de chegada, de encontro, de alegria. Os que vivem apegados às coisas e às pessoas não são capazes de entender isto, porque o medo e a angústia os cegam, os endurecem, os aprisionam, os tornam infelizes. Portanto, na liberdade de filhos e filhas de Deus, na comunhão com Ele e na confiança filial busquemos viver uma vida simples e despojada para que a morte não nos surpreenda e não se torne um pesadelo para nós. Ela não foi criada por Deus, mas em Cristo podemos vencê-la, definitivamente.

Tiago de França

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II


O Espírito gera novidade

            Após a morte do Papa Pio XII, o colégio cardinalício se reuniu para eleger um sucessor. Não encontrando um candidato que pudesse estar à altura do recentemente falecido, elegeram um papa de transição, que quis ser chamado pelo nome João XXIII. Homem simples, conhecedor da história da Igreja, dado ao diálogo e de espírito aberto; no dia 25 de janeiro de 1959, surpreendeu o mundo ao anunciar a realização do Concílio Ecumênico Vaticano II.

            Com os olhos da fé, os teólogos abertos às mudanças urgentemente necessárias à Igreja viram no anúncio, na convocação e na realização do Vaticano II um sinal da ação amorosa de Deus. Assim como o profeta João Batista, o papa João XXIII foi enviado por Deus na hora oportuna para abrir as janelas da antiga Igreja Católica, para que nela se respirasse ares novos. O Espírito se utilizou de quem se esperava pouco. Ao longo da história da Igreja sempre foi assim: o movimento do Espírito vai sempre à contramão dos planos meramente humanos, que com insistência tenderam e tendem a barrar a ação deste mesmo Espírito.

O Concílio: entre a coragem e o medo

            A atitude do papa João XXIII, ao anunciar e convocar o Vaticano II foi corajosa. Não se trata de uma ideia que lhe surgiu do nada, mas de uma ação feliz e audaz de quem estava por dentro dos anseios de uma Igreja que clamava por mudanças. Ninguém suportava mais o fardo doutrinal e disciplinar do Concílio de Trento, ocorrido no séc. XVI. O mundo evoluiu e a Igreja parou no tempo. Sensível a esta evolução e ao clamor de leigos, padres, bispos e religiosos, João XXIII anunciou a possibilidade da mudança.

            Em 11 de outubro de 1962, se iniciou o Vaticano II; e em 8 de dezembro de 1965, se deu o seu encerramento. A leitura de seus documentos, assim como dos seus bastidores revelam muitos conflitos teológicos e ideológicos. Os conflitos entre os que queriam manter o modelo tridentino de Igreja, alicerçado na cristandade e os que desejavam uma Igreja mais aberta ao mundo moderno perduraram até o fim do Concílio. Hoje, estes conflitos se dão de outra forma.

            Os documentos oriundos do Concílio responderam coerentemente aos desafios da modernidade. Trata-se de um Concílio fiel a seu tempo. Inúmeros teólogos e bispos presentes fizeram valer o desejo do papa João XXIII: aggiornamento. O papa desejava atualizar a Igreja. Ele não aceitava mais que ela se enxergasse como sociedade perfeita no meio do mundo; também reprovava a indisposição para o diálogo e a insistência na condenação e demonização do mundo.

Fala-se em pós-modernidade e exige-se um novo aggiornamento

            A realização do Vaticano II pressupõe uma compreensão que toda a Igreja precisa ter: todas as realidades humanas são passíveis de erro e de atualização. Os textos conciliares possuem um espírito de atualização de cunho predominantemente pastoral. Este espírito não pode ser marginalizado, mas vigorosamente retomado com o intuito de se responder aos novos desafios que surgem.

            Historicamente, é visível a resistência que a Igreja sempre teve com a palavra transformação. Esta palavra sempre causou medo à Igreja. Há uma tendência explícita ao apego às tradições em detrimento do novo que o Espírito sempre suscitou no mundo e na Igreja. Essa resistência à atualização marcou a realização do Concílio, mas não conseguiu dominá-lo plenamente.

            Estamos diante de novos problemas e desafios que a pós-modernidade vai ocasionando (aborto, eutanásia, novas tecnologias, avanços científicos etc.) e que reclamam uma reflexão mais aberta por parte da Igreja, sem reducionismos, nem extremismos. Além destes, a vida interna da Igreja também reclama por novos rumos e novas mudanças, tais como: é preciso rever o lugar da mulher, a constituição hierárquica do ministério ordenado, a colegialidade episcopal, o uso dos métodos anticoncepcionais, o celibato obrigatório etc.

            Estas realidades não exigem respostas definitivas, pois a condição humana não comporta o definitivo. Este está para além do ser humano. As realidades terrenas e humanas exigem respostas atuais, que estejam em sintonia com os sinais dos tempos. As ciências disponibilizam ao homem os instrumentos necessários para que o mesmo encontre tais respostas atuais e condizentes.

O diálogo sincero e honesto com tais ciências permite que a Igreja ofereça sua parcela de contribuição, tornando-se ela mesma aquilo a que é chamada a ser: instrumento de salvação da humanidade. Portanto, com o espírito renovador do Vaticano II e no pleno diálogo com a pós-modernidade, renunciando ao medo e à ambiciosa pretensão de ser a dona da verdade, a Igreja poderá realizar a sua missão no mundo.

A Igreja diante de dois caminhos

            No Antigo Testamento das Escrituras Sagradas, Deus colocou o seu povo diante de dois caminhos: o que leva à vida e o que leva à morte (cf. Jr 21, 8). Colocar-se em um dos caminhos é participar de uma sorte inevitável: ou se vive, ou se morre. A vida da Igreja, enquanto instituição no meio do mundo, também depende de uma escolha semelhante: ou se entrega à ousadia de continuar caminhando rumo ao futuro, assumindo destemidamente a sua missão, ou ao medo e à omissão, voltando-se para o passado. Se esta última opção for escolhida, as futuras gerações conhecerão a instituição católica através dos museus e dos livros de história.

            Tudo o que é humano necessita, por natureza, de aperfeiçoamento. Nada do que o ser humano faz é perfeito e eterno. Tudo passa, somente Deus e seu amor permanecem para sempre. Deus é presente e futuro, é eternidade. Ele criou o ser humano para caminhar e a dinâmica do caminho é sempre rumo à eternidade. Não se caminha para a eternidade fugindo da dinâmica conflituosa da vida.

Jesus disse que somente os violentos alcançarão o Reino. Longe de apontar a violência como uma forma de se alcançar o Reino, o que Jesus quer dizer é que seu discípulo não pode se deixar acomodar-se a este mundo, mas procurar manter-se audaz e vigilante, trabalhando incansavelmente na construção do novo céu e da nova terra.

Os insatisfeitos com o Vaticano II procuram desmoralizá-lo e relativizá-lo, minando seu valor e sua eficácia na história. Desde papas até fiéis das comunidades, houve e há quem queira voltar ao passado, ao modelo tridentino de Igreja. O espírito tridentino, impregnado em muitas pessoas da Igreja, leva-as ao passado. É algo tão forte que há jovens desprovidos da mínima noção do que foi o Concílio de Trento, mas que concebem a Igreja e a própria fé a partir das resoluções do mesmo; resoluções que não respondem mais às exigências do homem pós-moderno.

A tendência de se voltar ao passado se manifesta mais explicitamente no campo litúrgico. Desde o papa Bento XVI até às bases da Igreja, percebe-se claramente a retomada de paramentos, costumes, devocionais, formas de oração, espírito excessivo de piedade aos santos e à Maria, entre outras manifestações litúrgicas e paralitúrgicas.

Na liturgia oficial insiste-se na restrita observância das rubricas e fórmulas canonicamente aprovadas. Tal observância engessa a liturgia e as celebrações perdem sua naturalidade e ganham mecanicidade. Assim, ao celebrarem, os ministros ordenados e leigos se preocupam mais com o cumprimento da observância das rubricas do que com a comunhão com Deus que o momento celebrativo é chamado a proporcionar. Os fiéis deixam de participar e passam a assistir às celebrações, como meros expectadores, conforme ocorria antes do Vaticano II.

O futuro da Igreja e a Igreja do futuro

            Recentemente, o teólogo suíço Hans Küng, homem de renomada produção teológica e coragem profética, publicou o livro A Igreja tem salvação? Trata-se de um olhar perspicaz sobre a situação da Igreja. A partir da leitura, podemos afirmar sem medo de nos equivocar que a situação atual da Igreja é complexa e grave.

            O teólogo belga José Comblin (in memoriam) morreu afirmando que a Igreja do futuro será constituída somente de leigos e que a hierarquia irá desaparecer. De fato, os jovens não se sentem mais motivados para serem ordenados na Igreja. Permanecer no seminário durante anos, estudando Filosofia e Teologia, tornou-se algo impensável. Não há pastoral vocacional que consiga reverter o atual quadro: seminários cada vez mais vazios e ordenações cada vez mais escassas.

            Particularmente, creio que o seguimento de Jesus acontece na liberdade dos filhos e filhas de Deus. A hierarquia também crê nesta verdade fundamental, mas a liberdade continua sendo um problema na vida da Igreja: agir com liberdade continua sendo algo perigoso. Os que detêm o poder na Igreja sempre tiveram medo das mulheres e homens que procuram seguir Jesus no caminho da liberdade. Tal medo gerou, gera e continuará gerando inúmeras perseguições.

            O futuro da Igreja foi anunciado pelo Vaticano II: a Igreja é Povo de Deus. Este povo, que marcha na história, jamais poderá ser dizimado, pois o Espírito está presente e atuante nele. O fim está para tudo aquilo que é meramente humano, que existe para fins humanos e que obstaculiza a realização do Reino de Deus. Por mais doloroso que seja, é preciso admitir que as obras humanas são finitas.

            Eis o que o Espírito, ao longo da história, sempre disse à Igreja: colocar-se no caminho de Jesus e perseverar até as últimas consequências. Este caminho é o da liberdade. O caminho da liberdade é o caminho do despojamento, do desapego, da humildade, da simplicidade, da mansidão, do amor e da justiça do Reino. Fora disso, tudo é confusão, omissão, desvio, corrupção, escândalo, exclusão e, portanto, obra sem futuro. A memória dos 50 anos do Vaticano II que neste ano estamos celebrando nos convida a nos colocarmos neste caminho, que é caminho de vida e de liberdade para todos.


Tiago de França