quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Quaresma: tempo de escuta e conversão


“O amor está sempre unido à verdade e à liberdade, e por isso nunca é fraco. O amor sempre tem a resposta correta, jamais está errado” (Anthony de Mello, SJ).

Olhando o mundo à nossa volta percebemos o quanto as pessoas estão caindo cada vez mais na superficialidade, contentando-se em exercer papéis e usar máscaras, numa fuga constante de si mesmas. Até quando uma pessoa consegue insistir em enganar a si mesma?... É possível enganar a si mesmo?... O que está por trás dessa tentativa frustrante de engano e ilusão?... Há um caminho possível de libertação? Quaresma é tempo de pensar e enfrentar indagações como estas. É hora de termos coragem para darmos atenção ao essencial, que consiste na compreensão da verdade de todas as coisas.

Há constatações oriundas das mais diversas ciências humanas, há pesquisas e esforços para compreender todas as coisas, mas no fundo, há fortes resistências em relação à verdade da realidade. Constatou-se que o mundo está sendo destruído pelo ser humano, que não cansa de agredir a natureza. Somente constatou-se, mas a destruição continua. Há uma recusa em compreender e aceitar a realidade. Na Igreja, fala-se de opção preferencial pelos pobres. Os conceitos se tornaram teologicamente sofisticados, mas os pobres são somente visitados e mantidos à distância.

Caminhando entre as pessoas se percebe que vivem à procura da felicidade: todos almejam a felicidade e sempre a procuram nos bens materiais. Nas redes sociais, nas rodas de conversa, nos livros de autoajuda e no consenso de todos aparece a verdade de que não se pode encontrar a felicidade nos bens materiais. Todos estão de acordo com isto, mas é impossível contar o número dos que estão fazendo justamente o contrário: consomem-se coisas e pessoas, tudo é descartável. Os shoppings são os templos do deus dinheiro!

A verdade é que as pessoas não querem se converter. Na Igreja, a conversão se tornou termo relativo, seu real significado foi deturpado. Quem é o convertido? Entende-se que é aquele que cumpre fielmente as prescrições religiosas, vivendo uma vida pautada na piedade através das diversas práticas religiosas. Geralmente, tal pessoa desconhece o projeto de Jesus de Nazaré. Isto acontece porque está tão apegada à fidelidade às formas e regras, que se esquece do essencial. Não há nada além das práticas religiosas, tudo converge somente para elas e terminam nelas. O Evangelho de Jesus chama a isso de farisaísmo.

Por trás do farisaísmo se escondem os apegos e os interesses. As práticas religiosas costumam ser interesseiras, deixando de existir a gratuidade. Até Deus fica condicionado a agir conforme tais práticas. Tudo é automático. Neste sentido, o fariseu, aparentemente religioso, consegue convencer outros e, assim, joga pesados fardos nas costas do próximo. Ele aparenta ser feliz assim e exige que o outro o seja da mesma forma. É pecador e impuro todo aquele que não corresponde a este regime legalista de vida. Jesus de Nazaré ensina no seu Evangelho que Deus não nos chama a isso. Neste regime não há caminho para a liberdade.

A conversão passa pelo desapego e desapegar-se é, antes de tudo, compreender a si mesmo, ao mundo e às pessoas. Para compreender é preciso ver, recusar-se a fazer-se de cego diante da realidade. Esta está aí para ser vista e compreendida. O exercício da compreensão passa pela assimilação, jamais pela dissimulação. De modo geral, as pessoas fingem compreender a realidade. Há um conflito interior que não permite o enfrentamento, forjando inúmeras fugas. A experiência atual da condição humana mostra que isto só tem gerado sofrimento. Quanto mais as pessoas fogem do sofrimento, mais ele se torna presente e mais intenso.

As Igrejas cristãs, principalmente as neopentecostais, oferecem cura e libertação. Na verdade, são outra forma eficiente de alienação e escravidão. As pessoas fogem do mundo selvagem, que ceifam suas vidas pensando que tais Igrejas poderão libertá-las de seus sofrimentos. Puro engano. O sofrimento aumenta cada vez mais. O que acontece é que tais pessoas recebem uma injeção de ânimo ou algum outro paliativo ilusório, quando voltam para suas casas tudo continua do mesmo jeito. Os templos cheios devem-se ao fato de que lá dentro elas se sentem aparentemente bem e seguras.

Somente o amor é capaz de nos libertar. Não o amor que está na outra pessoa, mas aquele que está em nós. Somos chamados para viver amando. Para isto, precisamos compreender o inimigo número um do amor: o medo. Quanto mais uma pessoa se entrega ao amor, mais livre ela se torna, porque o medo vai perecendo em sua vida, deixando-a viver de verdade. Quem se deixa dominar pelo medo já está morto. O medo é o único capaz de paralisar a vida. Esta perde o seu sentido autêntico.

A pessoa que ama é capaz de compreender-se e aceitar-se para, posteriormente, compreender e aceitar o próximo. Antes de tudo, é preciso amar a si mesmo. No caminho de Jesus não é necessário fazer mais nada a não ser amar. Ele só exigiu isso, as demais coisas foram os homens que foram criando. Tudo aquilo que foi acrescentado à mensagem de Jesus de Nazaré não deve ser considerado como o essencial, pois o essencial é a mensagem. A religião, o culto e tudo aquilo que foi sendo criado com o passar do tempo, tudo passa e pode ser modificado. A mensagem cristã que se encerra no amor jamais pode ser modificada porque tudo passa, somente o amor permanece.

A verdade e a liberdade encontram-se no amor. Quem se arrisca a amar encontrou o caminho da verdade e da liberdade; do contrário, tudo não passa de confusão e ilusão. Não há conversão fora do amor, da verdade e da liberdade. Converter-se é, em primeiro lugar, ser livre e na liberdade se encontra a felicidade tão almejada pelo ser humano. O itinerário quaresmal é uma ótima oportunidade para pensarmos a respeito de tudo isso. Sinta-se provocado e se arrisque em se libertar! Que o Espírito do Senhor nos conduza ao deserto e nos ajude a compreender os demônios que existem dentro de nós, a fim de que sejamos livres. Feliz caminhada!


Tiago de França

domingo, 12 de fevereiro de 2012

A cura do leproso


“Eu quero: fica curado!” (Mc 1, 41)

O texto de Mc 1, 40 – 45 fala da cura de um leproso que se atirou aos pés de Jesus e o reconheceu como aquele que podia curá-lo de sua doença. Jesus quis, a cura aconteceu e aquele que era leproso saiu divulgando a notícia por toda parte. O leproso era alguém afastado do convício social, totalmente excluído, ferido em sua dignidade; além de sofrer com a doença, sofria também com a exclusão.

Jesus tornou-se acessível e foi encontrado pelo leproso: eis a primeira constatação. Isto mostra que Jesus estava na periferia, nos lugares esquecidos onde se encontravam os esquecidos daquela época. Hoje, onde nos encontramos? Estamos no centro ou na periferia? A resposta é simples: se os últimos da sociedade têm acesso ao nosso cotidiano, então estamos na periferia; do contrário, estamos onde Jesus não está.

O leproso pediu de joelhos para ser libertado. Primeiro, Jesus teve compaixão. Ter compaixão quer dizer padecer com. A compaixão de Jesus é prova do seu esvaziamento. Um homem cheio de si é incapaz de compadecer-se. Um homem que não compartilha o sofrimento de quem sofre também é incapaz de sentir compaixão. Quais as situações que nos fazem sentir compaixão do próximo? Ou será que a indiferença já tomou conta de nós e nos tornamos insensíveis e cegos diante do clamor da face gritante do outro?...

Segundo, Jesus tocou no leproso. A cura passa pelo aproximar-se, pelo tocar e se deixar ser tocado pelo outro. Jesus não praticava magia, mas tocava as pessoas. Assim, mostrou-se corajoso porque ousou tocar alguém que era considerado impuro pela religião e pela sociedade. Tocando-o Jesus nos diz: Deixe-o viver, ele quer viver, precisa viver, tem o direito de viver, vosso Pai é vida! O leproso não era uma doença, não era uma coisa, não era impureza, mas homem, pessoa, filho de Deus. As mãos e a palavra de Jesus restituíram-lhe a vida e a dignidade. Saiu feliz, libertou-se da rejeição, tornou-se verdadeiramente pessoa: eis a vontade de Deus para todos.

Como estamos tocando as pessoas? Há mãos curadoras por este mundo a fora... Há mãos que tiram a vida do próximo... Há outros que saqueiam o dinheiro público e há também aquelas que violentam, espancam, ferem... No Oriente Médio, quanto sangue!... Nos centros urbanos, quanto desespero!... Há ainda aquelas mãos ungidas de pessoas consagradas para acolher, abençoar, absolver, santificar... Uns usam estolas, outros mitras. O que estão fazendo estas mãos que dizem ser reservadas tão somente para o serviço? Efetivamente, estão curando as mazelas do povo de Deus?...

Há lepra em todo lugar neste mundo: fome, depressão, desemprego, violência doméstica e social, preconceito, intolerância etc. Todas estas realidades tiram a vida das pessoas, as desumanizam. Há que cultive o pecado da omissão recorrendo ao culto. Isto mesmo, ao culto. Há sacerdotes e levitas apressados para chegarem logo ao templo para cultuar seu Deus. Que Deus?... O Deus de Jesus está na vida do leproso da periferia e da beira do caminho, e dificilmente pode ser encontrado escondido num sacrário de prata ou ouro. Para tentar agradar mais a Deus inventaram até a adoração perpétua ao Santíssimo Sacramento! Esqueceram que se adora servindo a Deus.

É preciso tomar muito cuidado para que o culto não se transforme em fuga da realidade. Isto acontece quando o culto não aponta para a periferia. É o que está acontecendo com todas as Igrejas cristãs: a liturgias e cultos cada vez mais aperfeiçoados e, conseqüentemente, desencarnados. Há muita leitura distorcida da Bíblia e um barulho ensurdecedor. Os que sofrem com o mal do clericalismo investem nos paramentos e nas reformas das igrejas. O povo fica impressionado, sem palavras diante de tanta beleza!... Enquanto isso, o leproso continua na periferia, porque não aparece no culto. As igrejas estão se tornando espaços cada vez menos propícios para acolher os pobres.

Jesus veio para libertar o ser humano de todo tipo de escravidão. Seu querer é a liberdade do gênero humano. O leproso precisava se libertar da lepra para se integrar na sociedade e viver de forma saudável e digna. E nós, de que tipo de lepra precisamos ser libertos? A quem estamos recorrendo para nos libertar de nossas lepras? Queremos mesmo ser livres?...


Tiago de França

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A devoção ao Divino Pai eterno


Entre os dias 8 e 22 do mês passado, participei das Santas Missões Populares Vicentinas, em Coronel Murta, pequena cidade da região do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Várias coisas me chamaram a atenção, dentre as quais a devoção ao Divino Pai eterno. Durante as visitas às famílias fui indagado várias vezes a respeito da legitimidade desta devoção popular, que está se espalhando por todo o país. Curiosamente, resolvi assisti a uma das missas presidida pelo famoso Pe. Robson, redentorista e principal divulgador de tal devoção. Justamente no dia em que assisti à missa na TV Aparecida, o citado padre falou, insistentemente, da construção do novo santuário, que custará muitos milhões de reais.

Irei pontuar algumas considerações a respeito desta devoção, respondendo, assim, aos amigos e leitores de meu Blog, que, insistentemente, tem me pedido para escrever alguma coisa sobre esta questão.

1 – Na Igreja da Idade Média, a devoção aos santos era algo quase que fundamental na vida eclesial e a afluência do povo era tão grande que a Igreja chegou até a se utilizar da boa fé do povo para explorá-lo, ou seja, ganhou-se muito dinheiro e muitos bens à custa da devoção aos santos. Assim sendo, isto não é uma novidade na vida da Igreja. Após as denúncias de M. Lutero no séc. XVI, a situação melhorou um pouco, mas os desvios e/ou excessos continuaram dificultando a prática de uma fé verdadeiramente cristã.

2 – A imagem do Divino Pai eterno, a meu ver já é um desvio. Os cristãos de outras Igrejas podem, com muita razão, nos acusar, em certo sentido, de sermos idólatras. Penso que não há necessidade de fabricarmos uma imagem de Deus. Deus não tem forma, ninguém jamais o viu, como podemos fazer-lhe uma imagem? Na imagem fabricada, o Pai eterno é um velho barbudo! Deus não é um ancião! Na mesma imagem aparece o Filho, o Espírito e Maria. Desta forma, não é uma imagem da Trindade Santa, é algo diferente que passou despercebido. Ironicamente, alguns se perguntam o que Maria está fazendo naquela imagem!

3 – A devoção aos santos e santas de Deus é legítima na Igreja, é recomendável. É verdade que não é o fundamental na vida cristã, pois o essencial é o seguimento a Jesus de Nazaré. Sabemos muito bem que os santos foram e são mulheres e homens que se colocaram e se colocam no caminho do Cristo Jesus. Penso que não podemos ser devotos de Deus. Somos filhos de Deus e não precisamos nos relacionar com Ele como nos relacionamos com os demais santos. Deus é o Santo por excelência e a fonte de toda a santidade. Nossa relação com Deus deve ser filial, não devocional.

A partir das perguntas das pessoas percebo que muita gente confunde o Pai eterno com um santo comum. Uma jovem dona de casa me disse: “Eu adoro o Divino Pai eterno, tudo o que eu peço, alcanço. Ele pede a Deus tudo o que eu preciso!” O vínculo é tão devocional que há a imagem e a novena. Como podemos nos relacionar com Deus através de promessas e novenas?...

4 – É verdade que Deus não vai levar em consideração este equívoco de ordem doutrinal e pastoral ao escutar o clamor de um pobre sofrido que lhe suplica através de uma devoção como essas, mas isto não justifica a permanência da mesma de forma equivocada. O maior problema está no fato de não levar as pessoas ao seguimento de Jesus de Nazaré, mas à dependência e ao cultivo da imagem de um Deus meramente dispensador de todas as graças. Não vejo diferença entre o apelo desta e outras formas apelativas de devoção e o “Pare de sofrer!” da Igreja Universal do Reino de Deus. O Pe. Robson insiste nisto: “o Pai eterno não quer ver ninguém sofrendo, faça sua promessa, venha à Trindade (GO), faça conosco a novena e seja um benfeitor na construção do novo santuário!”

5 – Não precisamos prometer nada a Deus. Ele não nos atende por força de promessas. A relação com Ele deve ser filial e gratuita. Nossa missão é seguir seu Filho Jesus e construirmos o Reino. Devoções apelativas como esta desviam os cristãos de sua missão fundamental. Por isso, merece correção e reorientação. A missão da Igreja não é levar às pessoas a santuários através de incansáveis e inúmeras peregrinações.

A adesão ao projeto de Jesus não acontece em peregrinações, mas no cotidiano da vida, vivendo-se o amor na relação com o próximo. Não adianta se apegar às devoções se não se busca fazer a vontade de Deus. Fora do seguimento de Cristo e de seu projeto libertador toda e qualquer devoção perde seu sentido e se transforma em instrumento de alienação; torna-se fardo pesado nas costas dos pobres, que assumem certa obrigação de tirar do pouco dinheiro que tem para sustentar e manter estruturas pesadas e dispendiosas.

Espero que o leitor tenha compreendido a mensagem deste texto. Não estou indo contra as manifestações da religiosidade popular. Estas são ricas e necessárias ao povo de Deus, mas os desvios e excessos devem ser prudentemente observados, a fim de que o Evangelho de Jesus de Nazaré não seja marginalizado. A Igreja deve levar as pessoas a um encontro com o Deus de Jesus de Nazaré, não a uma imagem de Deus.

É inadmissível que Deus seja reduzido a objeto de devoção popular, pois é o eterno mistério, portanto, insondável. A verdadeira imagem de Deus está no Cristo crucificado. Não podemos fugir da cruz de Cristo, pois “se com ele morremos, com ele viveremos; se com ele sofremos, com ele reinaremos. Se nós o renegarmos, também ele nos renegará. Se lhe formos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode renegar a si mesmo” (2 Tm 2, 11 – 13).

Devoções como esta induzem as pessoas a pensar que Deus tem a obrigação de livrá-las de seus sofrimentos, quando na verdade o sofrimento é inerente à condição humana. É verdade que Ele não quer nos ver sofrendo, mas é verdade também que não enviou seu Filho com a missão de curar e libertar as pessoas de seus sofrimentos. Jesus curou e libertou muita gente, mas esta nunca foi sua missão fundamental.


Tiago de França