terça-feira, 20 de março de 2012

A Quaresma e o Sacramento da Reconciliação


“Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?’ Jesus respondeu: ‘Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete’" (Mt 18, 21 – 22).

Os textos bíblicos que estão sendo lidos nas celebrações que estão acontecendo neste tempo quaresmal falam da experiência da infidelidade humana e do caminho da conversão. A Igreja convida seus membros para experimentarem a misericórdia de Deus, experiência que se manifesta no Sacramento da Reconciliação.

Há um Deus que é amor e misericórdia e que não se cansa de acolher e perdoar a todos. Voltar para Deus de todo o coração, rasgando o coração e não as vestes (cf. Jl 2, 12): eis o chamado insistente do tempo quaresmal. Para entendermos bem o sentido deste chamado vamos, brevemente, discorrer sobre alguns fatores que nos chamam a atenção quando falamos de Sacramento da Reconciliação.

Os católicos estão deixando de procurar o Sacramento da Reconciliação. Isto é um fato. Contra ele não há argumentos. Isto tem causado muita dor de cabeça aos ministros da Igreja, especialmente aqueles que ministram tal Sacramento: o padre e o bispo. Fala-se que os católicos estão abandonando tal prática sacramental por causa da secularização. A culpa é sempre do mundo. Outros, porém, falam da crescente perda da consciência de pecado.

Antes das tentativas da reforma conciliar, tudo era considerado pecado. De modo geral, as pessoas viviam apavoradas porque escutavam sermões demasiadamente moralistas e apelativos, que falavam demasiadamente de pecado, castigo, inferno, condenação, perdição, culpa etc. É verdade que atualmente a consciência de pecado é quase inexistente, mas a Igreja tem parcela de culpa nisso. O homem moderno não aceita nem suporta um Deus Juiz, severo, vigilante, castigador, que autoriza o julgamento e a imposição da pena pelo delito cometido. Esta imagem de Deus contradiz a que foi apresentada e vivida por Jesus de Nazaré: Deus é amor.

As pessoas não acreditam mais no Sacramento da Reconciliação como via única do voltar-se para Deus através do arrependimento sincero. O homem moderno não acredita que Deus necessite de intermediários para perdoá-lo, nem crê na concepção de pecado ensinada pela Igreja, concepção marcada pela “medição” do delito para a justa aplicação da pena (penitência). As pessoas não aceitam mais serem enquadradas no rigoroso sistema jurídico eclesiástico. Elas não têm mais medo dos juízos e das condenações oriundas da Igreja.

Deus não se ofende quando nos deixamos levar pela nossa fraqueza. Isto mesmo: Deus não se ofende. A capacidade de se sentir ofendido, entristecer-se e sentir-se irado por causa dos erros cometidos são coisas do ser humano que não podem ser transferidas para Deus. Em Deus só há amor, alegria, bondade, misericórdia infinitas. É verdade que a Bíblia se utiliza de sentimentos humanos para falar da ação de Deus no mundo, mas tudo não passa de recurso pedagógico dos autores sagrados, que são necessários para facilitar a compreensão.

Neste sentido, com muita razão nos fala o teólogo jesuíta Roger Lenaers em seu livro Outro cristianismo é possível – a fé em linguagem moderna, que a palavra reconciliação é inadequada para falar do voltar-se para Deus. No capítulo sobre o Sacramento da Reconciliação afirma o mencionado autor: “reconciliação supõe um conflito anterior. Duas partes brigaram e querem reatar a amizade. Ora, um Deus que entra numa rixa é uma imagem tão pouco sustentável quanto a de um Deus que castiga ou anistia”.

A missão de Jesus de Nazaré neste mundo foi a expressão máxima do amor divino. Portanto, ao procurar o Sacramento da Reconciliação o cristão deve se sentir acolhido pelo amor curativo e salvífico de Deus. Tal experiência não passa pelo julgamento nem pela imposição de penitências. Na Idade Média e na mente de muitos cristãos de hoje há a idéia de que Deus se regozija e/ou sente prazer em ver o pecador penitenciando-se, impondo a si mesmo castigos pelas faltas cometidas. Este Deus não é o de Jesus de Nazaré. Deus não necessita de nossas penitências para nos conceder seu perdão.

O perdão divino é gratuito. Deus não nos exige nada pelo seu perdão, nem nos impõe castigos por termos desobedecido à lei do amor. Portanto, longe de expressões religiosamente exteriores, a experiência do perdão acontece no coração do ser humano. É no coração do ser humano que Deus age e o liberta para o amor. Por isso, de nada adiantam gestos penitenciais se o coração não se abre à graça divina. Deus não revelou nenhuma lista de pecados e penas para serem observadas. A fraqueza do ser humano consiste em fechar-se em si mesmo e negar-se a escuta de Deus. É como que a origem de todos os males possíveis de serem praticados.

Na vida eclesial constata-se que o Sacramento da Reconciliação se transformou numa prática religiosa mecânica sem “efeito” espiritual. Muitos dos que se confessam afirmam: “Eu procuro o confissão porque a Igreja manda!”, ou seja, por pura obediência a um preceito religioso. O Sacramento torna-se uma ação pontual, quer periodicamente, quer ocasionalmente. É evidente a falta de consciência do que se procura. A procura pelo Sacramento pela mera observância da lei da Igreja não gera a conversão da pessoa.

O Sacramento da Reconciliação ensina a sermos misericordiosos com aqueles que nos ofendem. O perdão de Deus nos restabelece a paz de espírito e consciência e nos educa para o exercício amoroso da compaixão para com o próximo. Ser misericordioso é compadecer-se da miséria alheia, é ser sinal da presença amorosa de Deus na vida do outro.

O Sacramento da Reconciliação deve fazer nascer uma Igreja reconciliada com o mundo. Quando o Papa João XXIII anunciou a realização do Concílio Vaticano II, tanto no anúncio quanto na abertura do mesmo, o “Papa bom” fez questão de enfatizar que os bispos não iriam se reunir para formular novas condenações para o mundo, mas fazer um aggiornamento da Igreja, a fim de que esta encontre sua missão fundamental: anunciar ao mundo a Boa Notícia do Reino de Deus. Portanto, o Sacramento da Reconciliação é o lugar do encontro com o Deus que é pura misericórdia; é também uma escola onde a Igreja deve aprender a ser mansa, humilde, acolhedora e misericordiosa, preferencialmente com os últimos da sociedade.

Ninguém está obrigado ao Sacramento da Reconciliação. O primeiro motivo que justifica esta afirmação é o seguinte: na vida cristã ninguém está obrigado a nada. A misericórdia divina se manifesta na liberdade de filhos de Deus. Fora da liberdade não há sacramento válido diante de Deus. A graça divina se manifesta na gratuidade e na liberdade. O segundo motivo é que tal Sacramento não é a única via para se obter o perdão divino. Trata-se de uma alternativa que a Igreja oferece para se obter o perdão divino trilhando-se, assim, o caminho da conversão. Os demais cristãos não-católicos não possuem este Sacramento e recebem igualmente o perdão de Deus. O mais importante não é o ritual em si, mas a disposição cristã em responder ao chamado divino à santidade.


Tiago de França

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