quinta-feira, 3 de maio de 2012

A espiritualidade do caminho (II)


“O caminho se faz caminhando”

            No artigo anterior tentamos elaborar uma idéia sobre o que vem a ser espiritualidade. Frisamos que há diversas espiritualidades e pensamos que espiritualidade é liberdade, é caminho rumo à liberdade. Nossa reflexão está partindo da experiência de Jesus de Nazaré, que, segundo parece, viveu plenamente a experiência da liberdade. Portanto, nossa perspectiva é cristã, mas engloba a totalidade do ser humano. Por isso, nossa ótica é cristã, não religiosa. Claro que ao falar da liberdade experimentada por Jesus somos mais que convidados a lançarmos um olhar sobre o Cristianismo, espécie de movimento humano e espiritual que nasceu a partir de Jesus.

            Antes de falarmos do caminho a que nos propomos propriamente discorrer, penso que seja importante falarmos alguma coisa da experiência de liberdade do Nazareno. Isto porque a experiência dele é como que uma inspiração antiga e sempre nova de uma prática exitosa de liberdade. É muito importante, em primeiro lugar, considerar isto: Jesus viveu na perspectiva da liberdade. Ele não pregou uma ideologia da liberdade, mas procurou viver a liberdade, apesar dos riscos que tal vivência contempla. Nos escritos evangélicos não encontramos nenhum discurso metódico tendo como centralidade uma filosofia da liberdade, mas encontramos um homem que buscou incessantemente ser livre.

            A concretude da vida, longe dos fatos miraculosos criados pela fantasia humana, é o lugar da manifestação da liberdade. Portanto, buscar ser livre é, antes de tudo, procurar viver uma vida normal. A dinamicidade da vida é, em si mesma, instrumento valioso para a prática de atitudes que conduzem à liberdade. O desenrolar da vida, os acontecimentos que nela se dão, desde os mais significativos até os mais banais, são lugares de vivência da liberdade. É preciso, pois, que cada pessoa esteja atenta a si mesma e aquilo que está acontecendo no aqui e agora da existência. Estar acordado: atitude fundamental para perceber em que estágio se encontra no caminho que conduz à liberdade.

            Jesus era um homem acordado. Quem dorme não dá conta de viver a vida. Aliás, não consegue ver a vida, senti-la, experimentá-la, tê-la nas próprias mãos. Com muita facilidade Jesus percebia a si mesmo e aos outros: era um homem sensível, que sabia o que pensava, falava. Ele entendia seu pensamento, palavra e ação; tinha consciência clara de sua missão junto às pessoas. Seus opositores não o aceitavam porque constataram que ele vivia bem acordado. Quem está acordado não tem medo da verdade porque não tem medo da luz, porque aceita a realidade, a vive em plena comunhão. Assim era Jesus.

            Vivendo acordado numa realidade difícil e marcada pelos diversos sinais de morte, Jesus se depara com a grande tentação: a de fugir, entregando-se ao medo. Todo ser humano tende a fugir daquilo que lhe é difícil, perigoso e, conseqüentemente, arriscado e ameaçador. Com Jesus não foi diferente. Ele foi tentado a renunciar à liberdade e a viver aprisionado pelo medo. Diante do medo da morte por causa da escolha feita, resistiu. Resistiu não porque era Deus, mas porque entendeu os motivos pelos quais optou pela liberdade. Ele sabia que a salvação que anunciou ao povo era caminho rumo à liberdade.

            Ao mesmo tempo em que almeja ser livre o ser humano tem medo da liberdade. Jesus percebeu isto claramente e sua atividade missionária levava este dado em consideração. Ele foi considerado louco, desobediente, possesso, um fora da lei. As pessoas não o entendiam, e isto acontecia porque ele pautou sua vida numa outra perspectiva, que não era a da lei mosaica. Não vivia em função desta. Jesus considerou a importância da lei, mas a transcendeu; mostrou para as pessoas que o que importa é viver, e viver em abundância. Quem se torna escravo da lei não consegue viver abundantemente, porque em tal submissão não há liberdade.

            A vida está acima da lei. Somente quem se coloca no caminho da liberdade consegue acreditar e viver esta verdade cristã. Isto não é revolução e/ou insurreição contra as normas necessárias à organização da vida humana, mas caminho de liberdade. A liberdade está na vida, nunca nas leis que organizam a vida humana. Toda lei é imperfeita porque criada pelo ser humano. Este não consegue criar nada perfeito. Motivado pelos próprios interesses, este ser imperfeito sempre cai na tentação de absolutizar a lei em detrimento da vida. No caminho da liberdade acontece o oposto disso.

             Jesus percebeu que tanto as autoridades civis quanto as religiosas absolutizavam a lei em detrimento da vida do povo. Estas autoridades, desmascaradas em sua hipocrisia, perseguiram o profeta Jesus de Nazaré e o condenaram à morte. Com suas denúncias, ele representava uma ameaça constante ao sistema de exploração do povo. Causava ódio nas autoridades ver um pobre homem, vindo de Nazaré da Galiléia, anunciar o Reino de Deus ao povo. Como tolerar um pobre homem se opor a um sistema tal cruel e desumano como o que era mantido pelo Império Romano?... Mataram-no, impiedosamente.

            O anúncio do Reino é anúncio da liberdade. Os seguidores da primeira hora ousaram anunciar este Evangelho ao mundo. Hoje são poucos os que ousam anunciá-lo. No hoje das Igrejas cristãs a pregação passa longe do anúncio do Reino. Falar deste Reino é perigoso, gera confusão, as pessoas não aceitam. O que a maioria quer é outra coisa, menos ouvir falar da mensagem da liberdade anunciada por Jesus. De modo geral, as pessoas querem resolver seus problemas, querem um Deus “tapa-buraco”, que as socorra segundo suas necessidades e desejos. O importante é satisfazer os desejos: esta é a fé que muita gente professa.

            A espiritualidade do conflito era a espiritualidade de Jesus: sua vida foi um permanente conflito. Há conflitos onde há busca pela liberdade; do contrário, quando a pessoa evita entrar em conflito com as forças que se opõem à verdade e à liberdade, sua vida se tranqüiliza, ela goza a “paz”. Não são muitas as pessoas que lutam pela verdade e pela liberdade; a maioria dos conflitos é para encobrir a mentira e manter a alienação. O anúncio do Reino contempla a denúncia: o anúncio da verdade que desmascara a vida hipócrita dos mentirosos. Este é o perigoso conteúdo do anúncio do Reino: a verdade que liberta.

            Assim sendo, percebe-se que a espiritualidade do caminho é uma espiritualidade do conflito. No próximo texto veremos as implicações práticas na vida de quem se dispõe a viver segundo esta espiritualidade. Tais implicações parecem visíveis, mas é necessário clarear e/ou discorrer sobre outras intuições que merecem ser consideradas. Nossas reflexões se propõem a ser conforme o título: caminho. A idéia de caminho leva ao infinito. Nas entrelinhas da história há personagens que se propuseram a viver a vida segundo a espiritualidade de Jesus. Quem sabe, antes de nos adentrarmos à reflexão sobre o caminho em si, seja necessário aprofundar mais um pouco o sentido da espiritualidade de Jesus a partir do testemunho de alguma pessoa que tenha ousado viver de tal modo.


Tiago de França

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