quinta-feira, 27 de setembro de 2012

São Vicente de Paulo: místico e missionário dos pobres


“O segredo mais íntimo de Deus é a sua misericórdia”.
(SVP. In: Coste XI, 341)

            Jesus confiou aos seus discípulos o anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus. No cotidiano da missão lhes ensinou a ir aos mais pobres dentre os pobres. A opção de Jesus era pelos despossuídos, excluídos, marginalizados. Isto porque estes só têm a Deus como refúgio e proteção. Deus é a única riqueza dos pobres. Evangelizá-los significa clamar por justiça, levar os poderosos deste mundo a enxergarem a verdade evangélica de que Deus quer a vida de todos, deseja que todos possam viver dignamente: ninguém deve morrer em decorrência da falta do necessário. O desejo de Deus é que o ser humano tenha vida e a tenha em abundância: isto está na centralidade da mensagem evangélica.

            Ao longo da história, a Igreja foi se esquecendo e marginalizando esta mensagem de salvação, optando pelos ricos: adquiriu poder, prestígio e riqueza, muitas riquezas... Em relação aos pobres não se viveu a virtude da justiça, mas a prática da esmola. Os pobres sempre foram dignos somente de esmolas. Estas serviam como tentativa de amenizar a dor da consciência, que sempre acusou a hierarquia em sua subserviência para com os ricos e omissão para com os pobres. Pensava-se deste modo: é necessário ajudar os pobres para ser salvo. Portanto, é preciso manter os pobres em seu estado de decadência, pois eram objetos da caridade dos ricos piedosos que frequentavam os sacramentos.

            Ao longo da história Deus foi acompanhando o lamento dos pobres em seus sofrimentos e chamou mulheres e homens para socorrê-los em suas aflições. No séc. XVII apareceu São Vicente de Paulo: homem de origem humilde, que depois de convertido, tornou-se presbítero para os pobres. Tornando-se discípulo de Jesus de Nazaré descobriu nos pobres o verdadeiro sentido de seu ministério: o amor a Deus e aos pobres. Empenhou todas as suas energias e dedicação na evangelização dos pobres, através da pregação da palavra de Deus e do socorro material aos abandonados.

            Na oração e no serviço aos pobres São Vicente de Paulo descobriu também o significado do chamado à santidade. Para ele, a santidade passa necessariamente pelo amor incondicional ao próximo, especialmente os pobres. Esta maneira de entender a santidade era uma novidade, pois naquela época aquela era buscada no interior dos conventos e mosteiros, na vida de clausura e de ascese.

São Vicente de Paulo não encontrou Jesus de Nazaré na vida enclausurada, mas abandonado nas ruas e povoados, sofrendo na pessoa dos pobres. Convidou padres, mulheres e homens leigos para fazer a mesma coisa e os congregou em grupos de servidores e servidoras dos pobres. Suas duas maiores fundações foram a Congregação da Missão (Padres e Irmãos) e a Companhia das Filhas da Caridade. Ele não estava sozinho na missão, mas acompanhado por um grande número de pessoas dispostas a aliviar o sofrimento dos pobres e a evangelizá-los.

Recordar o testemunho de São Vicente de Paulo na liturgia do dia 27 de setembro de cada ano é importante, mas o mais importante é compreendê-lo no seu contexto e se perguntar sobre o significado de seu testemunho para a Igreja de hoje. A grande pergunta que o testemunho deste grande santo do séc. XVII faz à Igreja de hoje é a seguinte: Onde estão os pobres? Seria uma seríssima revisão de vida se toda a Família Vicentina e a Igreja se fizessem honesta e sinceramente esta pergunta. Rever a caminhada é atitude de poucos na Igreja.

Basta sair pelas ruas e nas periferias das cidades, assim como nos pequenos povoados que ainda restam para constatar o incontável número de pobres, dentre os quais se encontram os que nada têm para viver. No mundo, são centenas de milhões os que passam fome todos os dias. Há milhares de jovens pobres viciados em drogas e sendo brutalmente assassinados dentro e fora do sistema carcerário brasileiro. Há outras urgências que levam ao desespero muita gente: pessoas desrespeitadas e agredidas em sua dignidade. O que a Igreja tem feito por este povo? Como tem se manifestado a caridade evangélica profundamente caracterizada pela promoção da justiça em relação aos pobres?...

A opção pelos pobres, defendida explicitamente em Medellín, após o Vaticano II, foi a grande oportunidade que a Igreja teve de tomar consciência de sua missão fundamental no mundo. Na Igreja atual falar de opção pelos pobres é remeter-se ao passado, pois se vigora na Igreja o neopentecostalismo: catolicismo marcado pelo devocionismo, pelos excessos na liturgia, pelas construções de santuários, pela midiatização da fé, pela volta de usos e costumes da Igreja pré-Vaticano II e algumas esquisitices no comportamento de alguns católicos alienados e tomados pela confusão. E o testemunho de São Vicente de Paulo, lá no séc. XVII, grita sem cessar: Onde estão os pobres?...

Tiago de França 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Ecumenismo: unidade e paz no Cristianismo


           Há muitas reflexões sobre o diálogo ecumênico. Com mais esta reflexão queremos aprofundar ou tornar explícita uma realidade preocupante: a crescente divisão entre os cristãos. Trata-se de um contratestemunho que envergonha a todos. Torna-se incontável o número de grupos religiosos que se multiplicam em todo o mundo e torna o Cristianismo uma religião cada vez mais plural.

Para sermos didáticos e para que nossa reflexão não se estenda muito, abordaremos três aspectos que são entraves e três que facilitam o diálogo entre as Igrejas cristãs. Posteriormente, falaremos brevemente do desejo de Jesus a respeito da unidade. O que pensava Jesus quando falava de unidade entre seus seguidores?

            Entre os diversos entraves ao diálogo ecumênico podemos mencionar, em primeiro lugar, o espírito de superioridade que há em todas as Igrejas. Como entender este espírito? A falta de humildade, o sentir-se superior ao outro, a prepotência que leva a ver o outro de cima para baixo, esperar que o outro venha ao encontro, pensar-se detentor da verdade absoluta etc.: tudo isto caracteriza tal espírito. Muitas posturas tomadas pelas Igrejas têm este espírito como alicerce. Assim, é impossível dialogar com quem se sente superior ou dono da verdade. Não há a mínima predisposição em acolher o que o outro tem a dizer de sua experiência religiosa. Parte-se do princípio de que o outro não tem nada a ensinar, mas somente a aprender.

            Um segundo entrave é o proselitismo que está presente em todas as Igrejas. É um dos males mais praticados atualmente no seio do Cristianismo. Apela-se para os mais absurdos discursos e práticas para “converter” as pessoas. Aqui, a conversão significa sair de uma Igreja para ingressar em outra. Este trânsito religioso é marcado pelo proselitismo. Tudo se converte em um mercado religioso, no qual o fiel encontra tudo o quanto deseja para satisfazer suas necessidades materiais e espirituais.

Neste sentido, o Cristianismo não passa de uma religião de satisfação dos desejos. O proselitismo é caracterizado fundamentalmente pela falta de respeito à boa fé das pessoas. Quanto mais ingênua for a pessoa mais vítima se torna dos que se utilizam do proselitismo para aumentar o número de fiéis de sua respectiva Igreja. A preocupação com o número sempre foi uma constante na vida das Igrejas.

            Um terceiro e último entrave que podemos mencionar é o fundamentalismo bíblico que gera o mal do conservadorismo nas Igrejas. Ler a Bíblia ao pé da letra é um dos piores males que existem. Neste caso, a Bíblia se torna um livro nocivo: instrumento propício para condenar as pessoas e causar divisões. Quem o pratica se torna conservador, fechado ao diálogo e ao novo que o Espírito faz surgir.

A leitura fundamentalista da Bíblia costuma ser marcada pelos interesses pessoais e corporativistas, ou seja, inventam-se doutrinas e práticas religiosas e busca-se legitimá-las com citações bíblicas deslocadas do seu contexto original. Efetivam-se absurdas deturpações do texto bíblico em função dos mencionados interesses. É possível ver nas Igrejas os mais diversos absurdos “legitimados” nas Escrituras Sagradas: um gravíssimo entrave à genuína vivência cristã e ao diálogo ecumênico.

O que possibilita o diálogo ecumênico e a unidade cristã é aquilo que as Igrejas têm em comum: a fé em Jesus de Nazaré, a Sagrada Escritura e a caridade evangélica para com o próximo. Há outros elementos comuns, mas nossa reflexão quer frisar estes três, devido sua singular importância na vida de todo crente. As Igrejas são chamadas a refletir sobre o valor daquilo que lhes é comum, somente assim o diálogo é possível. Assiste-se o contrário: acentuam-se os aspectos negativos e ignora-se o essencial. Infelizmente, é preciso admitir que a situação se agrava cada vez mais e o Cristianismo cai em um constante descrédito perante o mundo e à sociedade pós-moderna.  

A fé em Jesus de Nazaré torna possível o diálogo. Partilhar as diversas experiências em vista da mútua edificação é essencial para a unidade cristã e para a paz entre as Igrejas. No diálogo é preciso reconhecer a validade das experiências do outro, pois a fé é uma só, mas a mesma se manifesta de diversos modos. Por isso, ignorar a diversidade das manifestações da fé cristã vivenciadas na pluralidade das Igrejas é ir contra o verdadeiro espírito de unidade. É preciso reconhecer ainda a presença amorosa de Jesus em todas as Igrejas: o Filho de Deus é livre e libertador, nenhuma Igreja o transforma numa propriedade particular. Jesus está muito além das fronteiras entre Igrejas e religiões: ele é o Irmão universal, que veio salvar a todos.

A Sagrada Escritura é comum a todas as Igrejas: a fé na palavra de Deus é tesouro comum que faz surgir e enriquece a fé cristã. A pregação do Evangelho de Jesus de Nazaré faz parte da missão de todas as Igrejas, todas devem ter o único interesse de anunciar ao mundo o Evangelho de Deus: Jesus de Nazaré. Neste sentido, este Evangelho não pode ser motivo de brigas e divisões entre os cristãos. Quando isto acontece, constata-se claramente que o Evangelho não está sendo compreendido.

Infelizmente, a Bíblia tem sido vítima das más intenções de muitas pessoas que a utilizam para fins desonestos e desumanos: é um mal que precisa ser constantemente denunciado, pois afeta gravemente a fé cristã e o anúncio da Boa Nova de Jesus. Os cristãos devem ver na Bíblia a oportunidade de compreenderem-se e aceitarem-se no respeito às diferenças. Nela encontramos a história da revelação divina no mundo e compreendemos a ação misericordiosa de Deus ao longo dos séculos até os dias de hoje. Não há diálogo possível sem que esteja alicerçado na palavra de Deus.

Por fim, é preciso considerar a caridade evangélica como fonte de unidade e diálogo entre as Igrejas cristãs. A fé em Jesus e na palavra de Deus é inválida se não for verificada na prática cotidiana do amor ao próximo. Nada está acima do amor. Este é o fundamento da vida cristã, é a seiva sem a qual tudo perece. Todos os cristãos em todas as Igrejas devem aprender o mandamento novo ensinado por Jesus: amor que se faz solidariedade com o próximo. A caridade evangélica deve ser a marca indelével, aquela que identifica o cristão em todo lugar em que esteja. Somente a caridade evangélica nos faz irmãos uns dos outros e nos permite superar os limites que impedem a verdadeira fraternidade.

Pensar em ecumenismo não significa falar em Igreja verdadeira em detrimento de Igreja falsa: não há verdadeira e falsa Igreja, mas deve haver comunhão fraterna entre todas. Também não se pode pensar em unificar todas as Igrejas numa só. Quando falava da necessidade de unidade de seus seguidores, Jesus não estava pensando em unificação de Igreja enquanto corpo institucional. O que Jesus estava dizendo e continua a nos dizer é que todos os que desejam segui-lo devem fazê-lo no espírito de fraternidade. Lutar para que haja fraternidade entre as pessoas e cesse a violência: eis a missão das Igrejas cristãs. Este deve ser seu projeto comum: tornar possível o Reino de Deus neste mundo. Isto foi o que Jesus pediu para ser vivido. Fora deste projeto comum não há ecumenismo possível.

Tiago de França

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Carlo Maria Martini: homem da palavra de Deus e do diálogo


          Carlo Maria Martini nasceu em Turim, na Itália, em 1927. Foi ordenado padre jesuíta em 1952. Em 1979, foi eleito Arcebispo de Milão e ordenado Bispo em 1980. Em 1983, foi criado cardeal da Igreja, pelo Papa João Paulo II. Era doutor em teologia fundamental pela UGR –Universidade Gregoriana de Roma e em Sagrada Escritura pelo PIB – Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Foi nomeado reitor tanto do PIB (1969) quanto da UGR (1978). Em várias circunstâncias foi nomeado pelo Vaticano para participar de eventos importantes da vida da Igreja como, por exemplo, o Sínodo dos Bispos. Escreveu vários livros, entre outras publicações. Após longos anos de sofrimento, pois foi acometido pela doença de Parkinson, no dia 31 de agosto do corrente ano, em Gallarete, Itália, falece o Cardeal Arcebispo Emérito de Milão, Carlo Maria Martini.

            O que falar deste homem extraordinário? Afirmar que era inteligente e dotado de uma capacidade rara de assimilação e transmissão do conhecimento ainda é pouco. Sua expressividade não estava no fato de ter sido Bispo de Milão, Cardeal da Igreja, reitor do PIB e da UGR, mas na sua coragem em ser um pregador da Boa Notícia de Jesus de Nazaré. Era um profundo conhecedor das Sagradas Escrituras e isto o fez um homem íntegro e corajoso.

            A integridade do Cardeal Martini estava na sua liberdade interior: era um bispo marcado pelo único interesse de levar as pessoas a entrarem em comunhão com Deus por meio de sua palavra, palavra que não se esgota nas Sagradas Escrituras. A leitura e meditação que fazia da Bíblia o transformaram interiormente e o converteram em um bispo diferente, predominantemente marcado pela capacidade de dialogar com o mundo pós-moderno e, consequentemente, plural.

            O Cardeal Martini era um bispo corajoso. Sua coragem se manifestava na sua espontaneidade, transparência e ousadia no tratamento de temas e/ou questões complexas. Não tinha dificuldade alguma em se opor ao romano pontífice, o Bispo de Roma. Como poucos na Igreja, ousou pensar por si mesmo e manifestar seu pensamento. Por causa dessa sua liberdade, muitos na Igreja não gostavam de seus posicionamentos, principalmente os membros da Cúria Romana. O Cardeal Martini sonhava com uma Igreja mais aberta, enquanto os membros da Cúria Romana trabalham por uma Igreja cada vez mais fechada e voltada para o passado.

            Em sua última entrevista, concedida a um coirmão jesuíta, em 8 de agosto do corrente ano, o Cardeal Martini levanta algumas questões pertinentes que merecem nossa atenção. Ele afirma que a Igreja está cansada na Europa do bem-estar e na América. Fala do envelhecimento da cultura eclesiástica. Indica um caminho possível: ... Poderemos buscar pessoas que sejam livres e mais próximas do próximo, como foram o bispo Romero e os mártires jesuítas de El Salvador. Onde estão entre nós os nossos heróis para nos inspirar? Por nenhuma razão devemos limitá-los com os vínculos da instituição.

            De fato, é perceptível o cansaço da Igreja. Tem-se a impressão de que tudo se repete, numa mesmice e mecanicidade tediosas. Não estão permitindo que a novidade do Espírito se manifeste com força e vitalidade no seio do Povo de Deus. A preocupação com o ter, com o prestígio e com o poder sufoca a missão da Igreja. Certamente há as mencionadas pessoas livres e mais próximas do próximo. Elas estão no anonimato, testemunhando o Cristo ressuscitado no meio do mundo. Na hierarquia da Igreja restam poucas testemunhas, algumas como o próprio Martini estão desaparecendo.

            As testemunhas do Cristo ressuscitado são pessoas livres, que procuram viver mais próximas do próximo. As leis e orientações da Igreja não conseguem controlar nem manipular tais testemunhas. Elas vivem segundo o Espírito, guiadas e alimentadas por Ele. Acreditam e anunciam o Evangelho de Jesus, mensagem de liberdade para a liberdade do gênero humano.  Todas as que possuem certo vínculo institucional, graças ao Espírito de Deus, transcendem plenamente, portanto, estão muito além: são um mistério para si mesmas porque se deixam envolver pelo mistério divino.  

            Na entrevista, o sábio Cardeal Martini também fala do valor fundamental da proximidade com os pobres e com os jovens. Para se libertar do seu cansaço, Martini recomenda à Igreja três instrumentos muito fortes: a conversão, a Palavra de Deus e os sacramentos. A Igreja precisa se converter cada vez mais. Tal conversão passa necessariamente pelo reconhecimento dos próprios erros e pela coragem de se percorrer um caminho de mudança, começando pelo papa e pelos bispos. Questiona a credibilidade da Igreja ao explicitar opinião sobre questões de matéria sexual e moral: A Igreja ainda é uma autoridade de referência nesse campo ou somente uma caricatura na mídia?

            A entrevista chega a seu término com o Cardeal Martini mencionando o remédio por excelência, capaz de curar o cansaço da Igreja. Eis o que ele, finalmente, afirma: A Igreja ficou 200 anos para trás. Como é possível que ela não se sacuda? Temos medo? Medo ao invés de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. Eu sou velho e doente e dependo da ajuda dos outros. As pessoas boas ao meu redor me fazem sentir o amor. Esse amor é mais forte do que o sentimento de desconfiança que, às vezes, percebo com relação à Igreja na Europa. Só o amor vence o cansaço. Deus é Amor. Eu ainda tenho uma pergunta para você: o que você pode fazer pela Igreja?

            Estas indagações e/ou provocações deste grande homem que entrou para a história da Igreja não podem ser esquecidas. Antes, precisam ser pensadas e rezadas à luz do chamado divino ao serviço libertador que a Igreja é chamada a prestar à humanidade. O testemunho de Carlo Maria Martini é um apelo à conversão da Igreja, a fim de que se torne, verdadeiramente, uma Igreja cada vez mais humilde, missionária, samaritana, acolhedora, promotora e defensora da vida e da liberdade do ser humano em todo o mundo. À luz do Concílio Vaticano II, o que todos somos chamados a fazer é trabalhar para que a Igreja seja, afetiva e efetivamente, instrumento de salvação da humanidade.

Tiago de França

domingo, 2 de setembro de 2012

O seguimento de Jesus e a liberdade


“Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens” (Mc 7, 6 – 8).

            O texto evangélico deste XXII Domingo Comum (cf. Mc 7, 1-8.14-15.21-23) traz o confronto de Jesus com os fariseus e alguns mestres da leis, seus opositores declarados, a respeito da incompatibilidade dentre a vivência do mandamento de Deus, o amor, e o apego à tradição dos homens. Para entender o que Jesus quis dizer, é preciso considerar algumas afirmações.

            A partir da revelação divina na história humana, o ser humano criou a religião. Esta não é criação divina, mas humana. Em toda religião há a manifestação e a comunhão com o sagrado, que é considerado e nomeado de diversos modos. Todas as religiões possuem crenças, preceitos e ritos. Estes contêm suas normas e regras: tudo criação humana. Cada religião nasceu num contexto histórico, a partir de mulheres e homens limitados. E Deus, mistério indizível e insondável, não fica preso a nenhuma religião e socorre os que o buscam de coração sincero e humilde.

            Não há religião verdadeira, nem falsa; há mulheres e homens que procuram a Deus nas religiões. Toda procura de Deus é legítima, desde que seja livre e sincera. A procura de Deus anda bem conturbada, isto acontece porque o ser humano é um ser de angústias e conflitos. A procura em si é angustiante, seu valor é incomensurável. Não há um caminho certo em detrimento de outros, que possam ser considerados errados; há o mundo criado por Deus e nele, em toda parte, o ser humano pode encontrar-se com seu Criador e Pai.

            No Cristianismo, os cristãos criaram e criam as Igrejas e brigam entre si, cada um reivindicando Jesus como o fundador de sua denominação religiosa. Considerando Jesus e sua mensagem, podemos afirmar sem medo de equívoco algum: não passava na cabeça de Jesus a criação nem de religião nem de denominação religiosa alguma. Ele não foi enviado para isto. Portanto, é sinal de pura ignorância perder tempo defendendo que Jesus fundou religião ou a Igreja.

            Considerando estas afirmações, vamos ao texto evangélico. Diante dos fariseus e mestres da lei, Jesus é questionado: Por que teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos? Se pensarmos bem esta pergunta, veremos que diante do mandamento de Deus ela questiona algo que não tem importância alguma. Deus estaria preocupado com o lavar as mãos antes de comer, com a maneira de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre, e outras tradições meramente humanas e supérfluas?...

            Recordando a profecia de Isaías, Jesus chama a atenção para o essencial, e entre outras palavras, afirma: Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens. Segundo Jesus, os fariseus e mestres da lei abandonaram o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens. Isto é muito grave. De fato, era o que acontecia, pois viver segundo a tradição dos homens assegurava-lhes uma vida tranquila. As tradições eram pesados fardos que eles colocavam nas costas dos pobres, que não tinham as mínimas condições de observá-las. Por isso, a maioria dos pobres é considerada impura.

            Jesus não vivia preocupado com a observância das tradições dos homens, nem pautava sua vida a partir delas. O que lhe interessava era o cumprimento da vontade do Pai. Cumprir a vontade do Pai: eis o essencial de sua vida. Isto significa que ele procurou em tudo permanecer unido ao Pai realizando, assim, a sua missão. Ele ensinou a seus discípulos a fazerem o mesmo: viverem atentos ao essencial, que consiste no anúncio da Boa Notícia aos pobres.

            Com o surgimento das comunidades cristãs e, consequentemente, da Igreja, os cristãos criaram o culto. Eis o que disse o profeta Isaías, a quem Jesus fez questão de recordar: Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos. Honrar com os lábios e manter o coração longe de Deus, ensinar a observância de preceitos humanos ao invés de anunciar a Palavra encarnada de Deus: eis os graves pecados que podem ser cometidos pelos que cultuam a Deus.

            Atualmente, é perceptível na vida da Igreja uma excessiva preocupação pelo culto. Busca-se uma liturgia cada vez mais perfeita, porém desencarnada da vida do povo. A preocupação com as rubricas, que assegura o cumprimento fiel das regras estabelecidas, assegura um culto esteticamente plausível, porém mecanicista. Os ministros estão mais preocupados com as rubricas do que com o que estão rezando!

Multiplicam-se as casulas, as batinas, as sobrepelizes; enfim, sofisticam-se os paramentos litúrgicos. Tudo serve mais para desconcentrar as pessoas, que ficam admirando tais vestes, do que para conferir beleza e sentido à liturgia. Além do rubricismo litúrgico, há outras questões nas quais a Igreja termina perdendo muito tempo, em detrimento de sua missão fundamental, que consiste no anúncio do Evangelho de Jesus.

 São inúmeros os preceitos humanos e tradições existentes que sufocam o surgimento do novo na vida da Igreja. No interior desta, há uma luta constante entre o apego à tradição dos homens e a prática do mandamento de Deus. Os que procuram viver o mandamento de Deus são aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito do Senhor, enquanto os que se apegam à tradição dos homens procuram nela a sua segurança.

Só se vive o mandamento de Deus na liberdade. Somente quem é livre pode praticar a religião pura e sem mancha de que fala o apóstolo Tiago: Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo (Tg 1, 27). Os órfãos e as viúvas no povo de Israel eram os mais indefesos. Com isto, o apóstolo está falando do mandamento de Deus, que consiste na solidariedade para com os mais pobres. O anúncio do Evangelho de Cristo implica a opção pelos pobres: eis a missão fundamental da Igreja neste mundo, missão que só acontece na liberdade.

Tiago de França