terça-feira, 7 de maio de 2013

A excomunhão do Pe. Beto


         
            Recentemente, na Diocese de Bauru, foi publicada a excomunhão do Pe. Roberto Francisco Daniel, conhecido como Pe. Beto. Este acontecimento não pode passar despercebido e merece nossa atenção e reflexão. O que pensar deste fato que chamou a atenção dos brasileiros e da Igreja no Brasil? Para sermos didáticos, vamos pensar três questões: 1) A excomunhão e o Evangelho; 2) O exercício do pensar no ministério dos presbíteros e 3) A liberdade na Igreja. É verdade que cada uma destas questões, que são intimamente inter-relacionadas, merece a redação de um livro, por serem complexas e, portanto, abrangentes. Por enquanto, vale algumas provocações sintéticas.

1. A excomunhão e o Evangelho

            Quando pensaram em criar a excomunhão e colocá-la como norma no direito canônico, o evangelho foi posto de lado. Pensaram que a melhor forma de punir os “filhos rebeldes” – utilizando a expressão do bispo diocesano de Bauru -, é excomungando-os da comunhão eclesial. Aqui está a contradição com o evangelho. Este acolhe, anima, orienta, bendiz, cria verdadeira comunhão e concede vida e liberdade às pessoas. A excomunhão é, em si mesma, antievangélica.

            Utilizando-se da excomunhão, a Igreja foge dos problemas que o excomungado tão corajosamente apontou. Por isso, as esperanças de mudanças no que concerne às questões morais na vida da Igreja são poucas, quase inexistentes. Com a excomunhão, a instituição deu seu recado ao excomungado e a todos os que desejam trilhar o mesmo caminho: A Igreja recusa-se a pensar aberta e dialogicamente as questões por ele apontadas; questões que merecem o devido respeito e atenção, pois não são marginais, mas imprescindíveis para a própria comunhão eclesial.

            A partir do evangelho podemos dizer ao Pe. Beto que Jesus não o excomungou porque o Filho de Deus não foi enviado ao mundo para julgar nem condenar o mundo nem as pessoas, mas para redimi-las e colocá-las a serviço do Reino de Deus. Este mesmo Jesus não conferiu a ninguém o poder de condenar nem de julgar as pessoas. O Pe. Beto está desvinculado da comunhão com a Igreja-institucional, mas está em plena comunhão com a Igreja-povo, que não está submetida aos ditames institucionais, mas à voz do Espírito que sopra onde quer.

2. O exercício do pensar no ministério dos presbíteros

            No íntimo da consciência todo ser humano é livre para pensar. Este é um dom natural e divino que pode e deve ser exercido por todos. A racionalidade é uma das características fundamentais do ser humano. Ninguém pode ser impedido disso. Desde quando o homem criou as instituições públicas e privadas e até pouco antes disso, a liberdade de expressão sempre foi violada. Na vida da Igreja não é diferente. A Igreja sempre teve sérias dificuldades de lidar com pessoas que ousam pensar diferente. Contra isto não há argumento que convença o contrário. A história mostra que no interior da mesma, muitos já perderam a vida por ousarem pensar diferente.

            Pensar diferente é uma qualidade dos seres humanos, que, por natureza, são diferentes. Divergir do que está estabelecido deveria ser algo natural, mas, na verdade, isto sempre se mostrou algo perigoso. Portanto, todo pensador ousado deve ter a plena consciência de que a perseguição e, às vezes, a morte fazem parte de sua sorte. No caso do Cristianismo, encontramos Jesus de Nazaré como um dos maiores pensadores da história. Em matéria religiosa, Jesus não concordava com muitos dos aspectos daquilo que era considerado sagrado para a religião judaica. Consequentemente, foi perseguido, julgado injustamente, condenado e assassinado na cruz. Era acusado de ser desobediente, um “filho rebelde”, utilizando-me da expressão do bispo diocesano.

            Os discípulos de Jesus e os mártires da Igreja primitiva ousaram seguir as pegadas do Mestre, todos participaram da mesma sorte de Jesus: perseguidos e mortos. Com o passar do tempo, apareceram duas evoluções na vida eclesial: a institucionalização da Igreja e a elaboração da doutrina. Mais do que na Igreja primitiva, aumentaram os conflitos por causa destas duas evoluções: perseguição aos considerados hereges e briga pelo poder. Se o leitor não sabia, agora vai ficar sabendo de um dado importante: a questão do poder está por trás da invenção da excomunhão no direito universal da Igreja.

            Com a criação dos seminários para a formação dos presbíteros, o estudo da Filosofia e da Teologia se tornou, canonicamente, obrigatório para o exercício do ministério presbiteral. Ambas as ciências são rigorosamente elaboradas segundo os interesses da Igreja. Somente após o Vaticano II, o estudo filosófico dos pensadores suspeitos foi liberado, mas a desconfiança permanece.

Nos seminários, os seminaristas que se dedicam demais aos estudos filosóficos encontram sérios problemas, com exceção de alguns ambientes pouco piedosos. Talvez alguns seminários jesuítas, de algumas outras congregações religiosas e algumas dioceses pouco romanizadas. No clero, os doutores em Teologia são muitos, em Filosofia, poucos; mas até os teólogos que ousam repensar a fé sofrem perseguição e excomunhão.  

            A defesa e a promoção da doutrina católica parece ser a missão do presbítero. Fala-se que o anúncio do evangelho precede o ensinamento da doutrina, mas a realidade mostra o oposto. A preocupação maior é com a doutrina e com a manutenção da ordem. Pensar diferente cria desordem! Por isso, todo desordeiro tem que ser punido. Anunciar o evangelho é bem mais perigoso para a instituição, pois causa desordem. O evangelho de Jesus não estabelece ordem nem se sujeita à ordem alguma, pois é caminho de liberdade.  

            O presbítero que se identifica com o anúncio genuíno do evangelho de Jesus encontra sérias dificuldades para manter-se na Igreja. O presbítero que assim procede, não coloca a defesa e o ensino da doutrina no centro de sua missão, porque sabe que Deus não o chamou para isto, mas para anunciar Jesus ao mundo. Com isto, não estamos afirmando que a doutrina não tem seu valor e utilidade, mas a mesma não deveria está no centro da missão da Igreja. É tão verdade o que acabamos de afirmar que a mesma doutrina é considerada intocável, só podendo ser ensinada, jamais repensada. Na Igreja, o presbítero é orientado para ensinar e defender a doutrina, quando ousa pensá-la, infelizmente, encontra sérios problemas.

3. A liberdade na Igreja

            A liberdade é dom de Deus, gratuito e inalienável. Na sociedade civil, a luta pela liberdade também é respaldada pela lei. Esta reconhece aquela como um direito fundamental inviolável. A partir do Vaticano II, a duras penas, a Igreja também resolveu abraçar a bandeira da liberdade. Apesar de apresentar-se como promotora da liberdade integral do gênero humano, no seu interior não há tanta liberdade. Esta sempre foi considerada uma ameaça.

 A Igreja sempre considerou a liberdade como caminho para a libertinagem; por isso que o bispo diocesano de Bauru, quando entrevistado, chamou o Pe. Beto de “filho rebelde”. Na concepção da maioria dos bispos, o padre que pensa por si mesmo é um libertino, um agitador e, portanto, digno de ser penalizado. Neste sentido, o pensamento do padre deve ser o da Igreja, ou seja, pensar como a Igreja pensa, sem maiores questionamentos. Estes são intoleráveis.

Por fim, é preciso reafirmar que a liberdade é um valor evangélico. O verdadeiro discípulo missionário de Jesus deve ser livre e trabalhar em função da liberdade humana. Por isso, toda forma de manipulação e controle da consciência é pecado grave diante de Deus. Toda pessoa deve ser respeitada na sua forma de pensar. É graças à arte do pensar livre que o ser humano cria e recria a si mesmo e ao mundo. Sem a liberdade do pensamento e da expressão do mesmo não há verdadeiro anúncio do evangelho; não há caminho que leva a Deus e, consequentemente, não há salvação. Deus concedeu ao homem a capacidade de pensar e o dom da liberdade, ninguém tem o direito de violar tais valores fundamentais.

Ao invés do Pe. Beto ser obrigado a “arrepender-se” do que falou, a Igreja precisa repensar o mal da excomunhão. Trata-se de um verdadeiro atentado à vida e à integridade das pessoas, e isto é antievangélico, é coisa do demônio, que não promove a unidade, mas a separação, a dispersão e o escândalo. Mais do que uma opinião divergente, a excomunhão é que escandaliza e envergonha, porque não é do desejo de Deus, que acolhe, perdoa e ama, indistintamente, a todos. Uma vez ordenado, eternamente presbítero do Senhor. Assim, que o Espírito de Jesus, Espírito de vida e de liberdade, torne cada vez mais fecundo o ministério do Pe. Beto para a vida do mundo. Oremos para que tantos outros se manifestem, em nome de Jesus para a conversão da Igreja.

Tiago de França

3 comentários:

Marco Antonio Osório da Costa disse...

Além dos aspectos tão bem apresentados por você, Tiago, tenho destacado um outro às pessoas com quem tenho trocado impressões sobre essa excrescência cristã que é a excomunhão.
No caso particular do Pe. Beto, além de se não dispor ao diálogo/debate de suas idéias e também de outras questões morais, há algo que me impressiona ainda mais.
É que, se de um lado, se excomunga alguém que abertamente professa a liberdade e o amor, de outro, num contratestemunho, se acoberta um crime e um pecado imensamente maior, praticado na calada da noite e no recolhimento das penumbras de sacristias e casas paroquiais.
Falo da ignominiosa pedofilia, uma covardia praticada contra seres desprovidos de plena capacidade de compreensão e autodefesa e que foram, em muitos casos, abandonados à própria sorte e preteridos pela hierarquia,em nome da preservação da instituição.
É revoltante!

Marco Antonio Osório da Costa disse...

Mas, há algo ainda mais acerca dessa postura autoritária e sectária da hierarquia eclesial. É que, contrariamente aos fins a que se destina e que o autor aponta, trata-se de atitude e medida inócua.
Uma "excomunhão", nos dias atuais, só tem conseqüências limitadíssimas e restritas ao ambiente eclesial.
Além disso, em vez de silenciar os debates e cercear comportamentos, o que daí resulta é exatamente um frisson ainda maior em relação a esses temas.

Anônimo disse...

Entendo que a questão seja um pouco mais simples do que parece. Se mudarmos o foco da "igreja" para o "clero", vamos ver coisas interessantes. "O clero" (não a igreja, que é um coisa maior) acatou as mudanças sugeridas por Constantino para tornar o cristianismo a religião popular. muitos temas polêmicos para o status quo sumiram "misteriosamente" da liturgia. Depois Galileu, cujo legado foi revisto no seculo passado. Com Lutero, a contra-reforma virou as ideias fixas de um clero clientelista e corporativista, viraram de cabeça para baixo. Mudaram também com Francisco, mais recentemente com Boff. Beto só foi o catalisador de outro episódio da inabilidade do clero em oferecer respostas coerentes com o evangelho àqueles que procuraram esse bispo para reclamar das ideias de Beto. Se tivesse pelo menos 1 neuronio ou um pingo de humildade, quanto à sua ignorância, o bispo chamava o beto e se aconselharia sobre como responder os queixumes. Mas a arrogância prevaleceu, e no fundo foi só um jogo de poder, que mais demonstrou a incompetencia de bispos que são a maioria na igreja, mas uma minoria silenciosa sabe que nem o clero é capaz de manter a opinião quanto aos fatos. fatos são fatos. preconceitos são preconceitos. não foi primeira, nem a ultima, e não é privilegio dessa ou daquela igreja, associação, partido. É a natureza humana. O principal, são que as idéias mudam o mundo. Nem calando Boff, nem excomungando Beto, essa gente vai parar a história.