“Vai
e faze a mesma coisa”
(Lc 10, 37).
Na vida eclesial sempre se lê na
liturgia o texto que narra a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25 – 37). Neste
XV Domingo Comum esta parábola se encontra no centro da Liturgia da Palavra da
celebração eucarística. Vamos partilhar uma meditação breve a respeito desta
importante parábola para sabermos a respeito do que ela tem a nos ensinar hoje.
Os mestres da
lei
A parábola é precedida pela
provocação de um mestre da lei: “Mestre,
que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” Seu objetivo era
colocar Jesus em dificuldade. Seu interesse não era a vida eterna, nem tão
pouco saber o que se devia fazer para alcançá-la. Apesar disso, a pergunta é
interessante e nos faz pensar o sentido do verbo fazer. Antes, é preciso
considerar que os mestres da lei não se davam bem com Jesus porque não passavam
de especialistas em lei. A conduta da maioria deles era abominável aos olhos de
Deus, como é até hoje.
Assim como no tempo de Jesus, a
Igreja possui seus mestres da lei, mulheres e homens (mais homens que
mulheres!), que versados na Escritura e na legislação eclesiástica pensam e
organizam as crenças e o sistema religioso. A maioria deles, como não é difícil
perceber, é formada de pessoas destituídas de amor ao próximo, pois vivem longe
do comum dos mortais e não ousam praticar o que sistematicamente ensinam. São meros
profissionais da religião, que dedicam toda a vida em estudar, sistematizar e
expor o conteúdo da fé, mas sem praticá-la na comunidade cristã, no amor e na
liberdade que esta mesma fé exige.
O fazer e a vida
eterna
A pergunta do mestre da lei induz
o leitor a pensar que é preciso fazer alguma coisa para herdar a vida eterna. Infelizmente,
até hoje e não se sabe até quando, há pessoas que pensam que seja necessário
fazer muitas coisas para alcançar a salvação. Estas mesmas pessoas, pensando
dessa forma, desconhecem a verdade de que a salvação é universal e gratuita. A partir
do evangelho podemos assegurar, de uma vez por todas e sem medo algum: em
Cristo somos gratuita e universalmente salvos. O que isto significa?
Isto significa que nada do que
fazemos deve utilizado como garantia para a nossa salvação. Ou seja, nossas
boas ações e nossas práticas religiosas não devem ser realizadas tendo em vista
a conquista da salvação, porque esta já nos foi dada, gratuita e
definitivamente por Deus em Cristo e no Espírito. Assim, porque vivemos em
sintonia com Deus e unidos a Ele é que agimos conforme seu mandamento, que nos
ensina a sermos pessoas amorosas. Em outras palavras, é porque cremos em Deus
que é amor e que nos ama, infinitamente, que transbordamos de amor pelo
próximo, nosso irmão em Cristo.
O culto que prestamos a Deus nada
acrescenta aquilo que Ele é. O culto, as tradições e as práticas religiosas
estão em função da compreensão e do louvor de Deus. Ele não as exige de nós nem
devemos encará-las como fundamentais para a comunhão com Deus. Aqui não
anulamos nem afirmamos que tais coisas não sejam importantes, mas apenas
alertamos para o perigo constante de as colocarmos no centro. É Deus mesmo o
centro da vida cristã e nosso fim último, as demais coisas são meios e
justamente por serem meios são também mutáveis e finitas.
O caído
Na parábola aparece um homem, que
descia de Jerusalém a Jericó e que caiu nas mãos de assaltantes. Como era de se
esperar, o resultado foi doloroso. Caído no chão e coberto de feridas, quase
perdeu a vida, juntamente com seus pertences que foram levados pelos ladrões. Eis
um homem aniquilado, indefeso, sem forças, impotente, quase morto, a espera de
socorro. Vítima da estrada deserta e das inseguranças do caminho, tal homem
representa tantos outros que estavam caídos nos caminhos desertos da vida.
Hoje, estes caídos continuam
expostos nas ruas, praças, becos, ruelas, avenidas, viadutos, aglomerados, no
lixo, na sarjeta. São mulheres e homens que ninguém quer ver, se aproximar,
tocar. A maioria das pessoas quando passam por tais pessoas fazem de conta que
elas não existem. Por isso, é uma multidão de pessoas abandonadas, ignoradas
porque são fedidas, mal vistas, incômodas. No abandono tentam sobreviver,
adoecem, suportam e morrem, anonimamente. Ninguém sabe, ninguém viu,
consequentemente, ninguém é responsável. É mais um indigente.
O sacerdote e o
levita
A religião tem seus sacerdotes e
levitas: homens conhecedores da lei de Deus e ministros da palavra, designados para
oferecer o culto e os sacrifícios a Deus. Na parábola, eles veem o caído e
seguem adiante, pelo outro lado do
caminho. O curioso é que o texto faz questão de dizer que ambos veem o homem caído, necessitado de
socorro. Portanto, não basta ver a necessidade do outro. A Igreja é perita em
humanidades, conhecedora do sofrimento humano. Nela, há especialistas que
estudam demasiadamente e que são capazes de descrever, com detalhes, a
realidade; mas, infelizmente, é doloroso reconhecer que esta mesma Igreja, no
seu cotidiano, tem se mostrado insensível à realidade constatada.
Falo a partir do que vejo e conheço
e o digo sem medo algum: boa parte dos homens mais insensíveis da Igreja são os
que constituem a sua hierarquia. Para não cometer injustiça nem faltar com a
verdade, é preciso reconhecer que há bons padres e bons bispos, que são testemunhas
fiéis da ressurreição de Jesus, pois doam a vida a serviço do próximo. Infelizmente,
o número destes é bem pequeno.
A maioria procura o sacerdócio porque
este ainda oferece vida cômoda e tranquila, cercada de todas as seguranças
possíveis (residência espaçosa, alimentação cara, bons carros, planos de saúde,
bons salários, entre outras regalias). Estes padres e bispos da Igreja são
iguais ao sacerdote e ao levita da parábola, incapazes de se aproximar, tocar e
socorrer as inúmeras pessoas caídas de suas comunidades; não passam de
mercenários e profissionais do altar.
O bom samaritano
Segundo a parábola, eis o que fez
o samaritano que passava pelo caminho: chegou perto, viu e sentiu compaixão,
aproximou-se e fez curativos, colocou o ferido em seu próprio animal, levou-o a
uma pensão, onde cuidou dele. Por fim,
o samaritano pagou a hospedagem recomendando que cuidasse do homem ferido,
assegurando ainda pagar aquilo que o mesmo tivesse gasto a mais. O caído era um
judeu, membro de um povo que não se dava bem com os samaritanos. Portanto,
trata-se da solidariedade entre pessoas que pertenciam a povos que se
estranhavam e viviam em permanente conflito.
Os gestos do samaritano são gestos
de amor ao próximo, são gestos de quem compreende o valor do outro e o sentido
do cuidado que se deve ter com o próximo. Eis o que significa amar
verdadeiramente: cuidar do próximo. Dentro de nossas famílias, em nossas
comunidades ditas cristãs e em nosso ambiente de trabalho, estamos cuidando uns dos outros?
Que fique bem claro que o mandamento de Jesus passa pelo cuidado que deve ter
com o outro.
Para os cristãos católicos é preciso
dizer com todas as letras: não adianta
ir à missa e comungar, ser dizimista, ser devoto dos santos e de Nossa Senhora,
receber todos os sacramentos possíveis, afirmar-se católico e gritar que ama a
Deus se a pessoa que faz tudo isto é indiferente ao sofrimento do próximo,
omitindo-se na primeira oportunidade. Repito: não adianta! Fora do amor que se expressa no cuidado que se deve ter com o próximo
toda e qualquer prática religiosa é inútil diante de Deus.
Uma Igreja
samaritana
Para que exista uma Igreja
verdadeiramente samaritana é necessário que se entre na dinâmica do evangelho
de Jesus, que aponta para o caído, o necessitado. O samaritano se colocou a
serviço do homem caído. Portanto, não há outro caminho possível para que a Igreja
seja, de fato, samaritana, senão pela via do serviço ao próximo, seja
ele quem for. Enquanto a obediência às prescrições religiosas for a palavra de
ordem da vida eclesial, o serviço, que se expressa no cuidado com o próximo
continuará em segundo plano. Na Igreja, o serviço ainda está na ordem dos discursos,
salvo raras exceções. Ainda falta muito para o mesmo chegue à ordem prática da
vida cotidiana.
Tiago de França
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