terça-feira, 27 de agosto de 2013

Dom Helder Câmara e Dom Luciano Mendes: profetas do Reino de Deus

           
              Não podemos deixar passar despercebida a memória de dois grandes bispos da história da Igreja no Brasil: Dom Helder e Dom Luciano. Não evocaremos aqui meros traços biográficos, mas queremos ressaltar a importância destes homens para a vida e a missão da Igreja. O que eles nos ensinaram? O que fizeram de extraordinário? Em que acreditavam? Qual modelo de Igreja cultivaram? Estas e outras questões norteiam esta breve reflexão. O que me motiva a partilhar a presente reflexão, além da minha identificação pessoal, é uma data comum especial a ambos os bispos: Dom Helder faleceu no dia 27 de agosto de 1999, Dom Luciano, em 27 de agosto de 2006. Muito se disse até o momento sobre eles e muito se tem a dizer; precisamos manter viva a memória de ambos para o bem da Igreja.

Chamados à profecia

             Um bispo profeta continua sendo algo difícil na Igreja. Difícil porque a missão profética é árdua. Vida de profeta não é muito confortável. Na Igreja, os profetas são perseguidos e o são por dois motivos: ou porque não são compreendidos, ou porque não são aceitos. Compreensão e aceitação, neste caso, são realidades consequentes; ou seja, os profetas não são aceitos porque não pregam verdades pessoais, mas a Verdade que liberta todo ser humano, Jesus de Nazaré. O fato de não serem compreendidos, à primeira vista, parece estar em segundo lugar em relação à aceitação.

            Como pode um bispo na Igreja ser profeta? O motivo desta pergunta se refere ao fato histórico e vergonhoso de que os bispos, na Igreja, se tornaram príncipes. Jesus não confiou sua missão a príncipes, mas a pobres homens pecadores. Portanto, eis uma verdade fundamental para o ministério episcopal: partindo do pressuposto de que os bispos são sucessores dos apóstolos de Jesus, então devem ser como eles: pobres homens pecadores. Olhando para muitos bispos da Igreja, infelizmente, não notamos neles pobres homens pecadores, mas ricos homens com ar de santidade. Esta precisa ser buscada, mas não nos moldes que os mesmos procuram.

            Em Recife – PE e em alguns lugares antes, Dom Helder foi pastor e profeta. O mesmo pode ser dito de Dom Luciano, em Mariana – MG. O que significa ser pastor? Segundo Jesus, no evangelho de João, pastor é aquele que conhece as ovelhas e é capaz de dar a vida por elas. Para conhecer é necessário se aproximar e para se aproximar é necessário se tornar próximo. Neste sentido, Dom Helder e Dom Luciano foram dois bons samaritanos: foram ao encontro das pessoas caídas à beira do caminho, assaltadas pelos diversos males da vida.

Segundo o mesmo Cristo, no mesmo evangelho, ser pastor implica a doação da própria vida até o derramamento de sangue. É verdade que Dom Helder e Dom Luciano não foram mártires ao ponto de serem assassinados, como o foi Dom Oscar Romero, em El Salvador, mas o foram na vida que levaram: foram mártires da causa da justiça do Reino, vítimas da perseguição e da incompreensão por parte até da própria Igreja (hierarquia, Roma).

            Pelo que se percebe a partir da concepção evangélica de pastor, a vocação episcopal não deveria ser caminho fácil para aqueles que a abraçam com convicção. Suceder os apóstolos é tarefa difícil, requer o exercício da profecia. Como bem afirmou o teólogo Leonardo Boff quando na oportunidade do filme-documentário sobre Dom Helder: “O profeta não tem amor ao próprio pescoço”, ou seja, não tem medo de morrer porque, segundo a espiritualidade paulina, neste sentido, morrer é lucro. A morte, portanto, não é inimiga do profeta. Assim, as ameaças de morte não se tornam coisa grave que o impeça de levar a missão até as últimas consequências.

            O que o profeta denuncia e anuncia? Dom Helder e Dom Luciano denunciaram as injustiças que ceifaram a vida de muitas pessoas. Ambos lutaram contra o regime militar imposto na década de 60 no Brasil. Durante o período do regime militar, regime que recebeu apoio de muitos bispos da Igreja, se cometeram inúmeros crimes. Defender os indefesos, ser voz dos que procuravam por socorro eram atitudes firmes e corajosas de ambos os bispos. Os pobres e as demais pessoas de boa vontade ficavam admiradas com a coragem deles; os ricos e poderosos, frios e criminosos, tinham medo da força de suas palavras e gestos. Sentiam ódio e medo ao mesmo tempo, pois sabiam que ambos eram homens de Deus. Estes homens não anunciavam a si mesmos, mas proclamavam com vigor e ousadia profética o evangelho de Jesus de Nazaré.

Novos bispos para uma nova Igreja

            Este subtítulo merece a redação criteriosa de um livro. Recentemente, três bispos eméritos (que não mais exercem a função em uma diocese – Igreja particular) escreveram uma carta aberta aos bispos que compõem a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São eles: Dom José Maria Pires, emérito de João Pessoa, PB; Dom Pedro Casaldáliga, emérito de São Félix do Araguaia, MT e Dom Tomás Balduíno, emérito de Goiás, GO. Estes três bispos fazem parte do pequeno número de bispos eméritos que viveram a profética experiência da Igreja imediatamente pós-conciliar. São três profetas da Igreja no Brasil: homens da verdade, da caridade e da liberdade.

            Para que possamos ter uma nova Igreja, mais profética e missionária, necessitamos de novos bispos. Estes novos bispos precisam ser pastores e profetas. Vamos comentar, brevemente, para encerrar nossa reflexão, três características que marcaram a vida de Dom Helder e Dom Luciano e que devem fazer parte da personalidade dos novos bispos para uma nova Igreja.

1. Homens da verdade

            Anunciar Jesus Cristo, verdade que liberta e denunciar a mentira, principalmente a mentira institucionalizada, que mais destrói e mata o ser humano. Dom Helder e Dom Luciano pautaram suas vidas nesta verdade. O novo bispo precisa ser capaz de renunciar à mentira, ao engano e à ilusão para ser um proclamador da verdade evangélica, não de uma verdade qualquer, mas, na autenticidade da própria vida, anunciar ao mundo o evangelho da verdade.

2. Homens da caridade

            A caritas in veritate é outra virtude evangélica que deve permear as palavras e gestos dos novos bispos e que permearam a vida de Dom Helder e Dom Luciano. Ambos praticaram a caridade não por meio da mera doação de donativos para os pobres, mas, sobretudo, através da promoção da justiça em vista do bem comum. O bispo precisa promover a justiça, sendo ele em primeiro lugar, um homem íntegro, denunciando toda espécie de injustiça que danifica a vida humana, especialmente a vida dos pobres. Os pobres devem ser amigos do bispo e este deve ser amigo dos pobres. Amizade requer contato, aproximação, convivência, reciprocidade. Um bispo que não é amigo dos pobres é, consequente e inevitavelmente, amigo dos ricos e poderosos.

3. Homens da liberdade

            Homens que pautam suas vidas na verdade e na justiça são livres. Dom Helder e Dom Luciano tinham uma liberdade de espírito impressionante. Nada os prendia, nem os impedia de realizar a missão que Deus lhes tinha confiado. Libertos do medo da morte e de outros medos paralisantes foram homens despojados para a missão. Esta exige liberdade, pois fora da liberdade não há seguimento de Jesus. O apóstolo Paulo, quando escreveu aos gálatas, falou uma verdade claríssima: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou”. Assim, o bispo é chamado a trabalhar em função da liberdade do ser humano, a partir de palavras e gestos libertadores.

            A Igreja atual carece de homens e mulheres que sejam íntegros, caridosos e livres como Dom Helder e Dom Luciano. Ambos foram testemunhas da ressurreição do Senhor e, por isso mesmo, viveram conforme a vontade de Deus. São, portanto, santos. Eles não precisam ser canonizados, pois já são considerados santos pelo povo de Deus. Quem os conheceu sabe muito bem disso. Sabe que foram homens dedicados às grandes causas do Reino de Deus. Eles não tinham “psicologia de príncipes” porque eram pobres missionários do evangelho, promotores da justiça e da paz, guiados pelo Espírito do Senhor. Que eles intercedam a Deus por nós.


Tiago de França

domingo, 25 de agosto de 2013

A salvação e a porta estreita

“Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão” (Lc 13, 24).

            Desde o tempo de Jesus até nossos dias, muitas pessoas se preocupam com a questão do número dos que se salvarão. O número em detrimento da qualidade sempre representou um gravíssimo problema na vida humana, inclusive em matéria religiosa. O fato é que alguns falam que são poucos, outros falam que são muitos e há outros ainda que falam que todos se salvarão. Vamos pensar a respeito da universalidade da salvação oferecida por Deus em Jesus Cristo a partir daquilo que o próximo Cristo falou. Olhemos o texto evangélico de Lucas 13, 22 – 30.

            “Jesus atravessava cidades e povoados, ensinando e prosseguindo o caminho para Jerusalém”. Até chegar a Jerusalém, onde se encontra o Templo, lugar da morada divina, segundo a concepção judaica, Jesus passa por cidades e povoados, prosseguindo seu caminho. O texto já vai indicando o lugar onde se encontram os que são salvos: na periferia do mundo.

Quem mora na periferia? Os ricos, os privilegiados, os poderosos, os que mandam? De modo algum. Na periferia se encontram os despossuídos, os que foram empobrecidos, os excluídos. Quais as condições de vida dos que vivem na periferia? Eis o que disse Dom Helder Câmara ao encontrar-se com os pobres na periferia: “O Senhor é meu pastor e nada me faltará, mas quando olho tá faltando é tudo!” Na periferia falta de tudo, mas superabunda a graça e a verdade. Somente lá é possível participar do festivo encontro com o Senhor que optou pela pequenez.

            Muitos pensam que a graça está nos templos religiosos, na pureza dos panos do altar, no brilho das alfaias. Escandalosamente, Jesus aponta o contrário. Os excluídos das periferias dificilmente vão aos templos, e quando vão, ficam perdidos. Muitos saem dos mesmos sem entender quase nada. Sabem somente que cumpriram uma obrigação, benzeram-se e saíram benzidos.

E o pessoal do templo avisa: “Domingo sem missa é semana sem a graça de Deus!” Quanta chantagem emocional. Não se trata de convite, mas de chantagem apelativa porque o pessoal do templo não se conforma com o crescente esvaziamento do templo. No evangelho Jesus está dizendo: Saiam do templo, vão à periferia! Atender a este chamado divino é complicado porque ir à periferia é altamente arriscado e desconfortável. Em Roma, Francisco vive inquieto porque como Papa é complicado ir à periferia de Roma.

            “Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão”: eis a resposta de Jesus para o “alguém” que perguntou sobre se é verdade que são poucos os que se salvam. Jesus não responde diretamente a pergunta. Por que não responde? Porque o número dos que se salvam não lhe interessa. Qual o interesse de Jesus? Que as pessoas possam fazer todo o esforço possível para entrar pela porta estreita. Que porta é essa?

A porta larga é a porta da multidão, da vida fácil e confortável, do imediatismo doentio e da ilusão. A porta estreita é o caminho do discipulado, espinhoso, que se encontra na periferia do mundo. Poucos conseguem passar por esta porta estreita. O que as pessoas procuram é a largueza, é o gozo desmedido da existência em detrimento dos que quase nada tem para sobreviver.

            Os que buscam entrar pela porta estreita procuram viver a caridade na verdade, a justiça e a solidariedade, o perdão e a comunhão. Os que procuram a porta larga, que não conduz ao banquete do Reino, são aqueles que são egoístas, intimistas, apegados ao bem-estar sem nenhuma preocupação com o bem-estar do próximo.

O curioso é que nas comunidades cristãs encontramos muitos destes: pessoas que “amam a Deus”, mas que não ama o próximo. Trata-se de um pseudoamor, que engana e divide, pura hipocrisia. Estes baterão a porta, dizendo: “Senhor, abre-nos a porta!” E o Senhor responderá: “Não sei de onde sois!”

            “Afastai-vos de mim todos vós que praticais a injustiça!” Na Igreja é muito comum a excessiva preocupação com os pecados pessoais. Fala-se da gravidade de tais pecados: desejar a mulher do próximo, não ir à missa, pensar mal do padre, fofocar, fazer sexo antes do casamento, usar anticoncepcionais etc. Certamente, tais coisas não são boas, mas também é muito pior centralizar a reflexão em torno delas. Há coisas que correspondem a um mal menor.

Há males muito piores que correspondem a graves pecados e que precisam ser denunciados: a corrupção, que na maioria dos casos se traduz em tirar o pão da boca dos pobres, e tantos outros pecados estruturais. Nos templos são poucos os que denunciam tais práticas. A preocupação sempre se volta para o secundário e o essencial sempre fica esquecido. Jesus é categórico: não participarão do banquete do Reino os que praticam injustiça contra o próximo. Não existe meio termo. Nem “pagando” o dízimo se justificarão diante de Deus! O dízimo não está para Deus, mas para a religião.  

            “Virão homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no reino de Deus. E assim há últimos que serão primeiros e primeiros que serão últimos”: eis a fundamentação evangélica da universalidade da salvação oferecida por Deus em Cristo Jesus. Os que praticam injustiça contra seu próximo e os que são autossuficientes desprezam a salvação. Espera-se que se convertam; do contrário, ficarão de fora. Não adianta queremos inventar outra interpretação para estas palavras de Jesus, com o intuito de agradar os que simplesmente olham com simpatia e admiração o caminho de Jesus. Jesus não precisa de simpatizantes nem de admiradores.

Aderir a Jesus: eis o desafio possível. Adere-se ou não se adere, não há meia adesão. Trata-se de uma atitude radicalmente evangélica. O fato até hoje inaceitável para muitos é que a salvação oferecida por Deus em Cristo Jesus é universal, ou seja, aberta a todos, para todos; salvação oferecida na liberdade e para a liberdade. Aceitá-la implica aderir ao caminho de Jesus, porta estreita e perigosa. É uma escolha difícil, mas feliz; possível, com a ajuda do infinito amor de Deus. Atualmente, o Bispo de Roma, Francisco, tem convidado a Igreja para entrar pela porta estreita, mas a disposição dos que são chamados ainda é pequena. Jesus está à porta, é preciso entrar em seu caminho para que ele possa abri-la, pois uma vez aberta a porta, a acolhida será generosa e a festa será linda de ver!...


Tiago de França

sábado, 17 de agosto de 2013

Maria, modelo dos servidores do Evangelho de Jesus

“Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia” (Lc 1, 39).

            Para onde vai esta mulher de passos apressados, sozinha por uma região montanhosa? O texto de Lc 1, 39 – 56 fala que Maria vai à casa de sua prima, Isabel. Durante três meses, estas duas mulheres grávidas permanecem juntas. Maria, grávida de Jesus, o Messias prometido. Isabel, grávida de João, o profeta do deserto que foi batizar no rio Jordão. São duas mulheres importantes, humildes servas do Senhor. O Deus e Pai de Jesus parece ter certa predileção pelas mulheres humildes e disponíveis, sensíveis ao chamado e dispostas ao serviço.

Maria partiu

            Partir é sinônimo de deslocar-se. Maria é a mulher do movimento, do caminho, da região montanhosa. Para partir é preciso ter coragem. É um movimento existencial que obriga a sair de si mesmo para estar disponível para o outro. Quem parte tem a plena consciência de que há o outro à espera. A recepção de Isabel fala de uma espera ansiosa, de um encontro alegre, de uma convivência fraterna e feliz. Maria saiu para servir, guiada pelo Espírito daquele que carregava em seu seio. Tornou-se conhecedora do belíssimo mistério do serviço fraterno. Aquela pobrezinha de Nazaré, criada na observância da Lei passa a conhecer a dinâmica do Espírito que a faz transcender o rigor da Lei. Sozinha, vai ao encontro para servir, cuidar, para permanecer.

Partiu, apressadamente

            A espera é atitude de quem precisa. Quem está necessitado não apresenta condições para tanta espera. Sabendo disso, Maria tem pressa. Parte, apressadamente. Sendo mulher, sabe que estando grávida, o cuidado é essencial. Sua sensibilidade é aguçadíssima. A pressa, neste caso, é o gesto de quem não somente conhece a necessidade do outro, como também de quem se coloca no lugar do outro. No caso de Maria, acompanhada da sua prima, ambas vivem a experiência feliz do cuidado recíproco. Cuidar da vida do outro é cuidar da própria vida, é atitude humana e espiritual de quem compreende e se dispõe a viver a experiência humanizadora do amor de Deus, que se expressa na comunhão fraterna. Maria e Isabel são primas, mas também são, em Cristo Jesus, irmãs que aceitaram a missão de serem testemunhas da justiça divina.

Maria permaneceu

            Ela não fez uma visitinha, mas permaneceu durante três meses com Isabel. A experiência da permanência no serviço é bela e profunda. A fidelidade exige tempo para amadurecer. Colocar-se a serviço do outro exige a disposição de querer ir e permanecer. Com o passar do tempo e no bom uso deste tempo oferecido pelo Senhor, as pessoas se conhecem, partilham a vida, vivem em comunhão. A pressa é de se chegar. Quando se chega, a atitude muda, passa-se a conviver. Convivência generosa exige tempo, o tempo de Deus. Não se trata de ir somente ver, mas de servir o tempo que for necessário, a fim de que a vida surja, seja possível. Para o conforto de Isabel e o bem do profeta do Senhor, Maria quis permanecer.

O Cântico

            O evangelista põe na boca de Maria um belíssimo cântico. Trata-se de um hino de louvor e reconhecimento a Deus, que não se esqueceu de seu povo, enviando Jesus, o Messias. Deus é o Pai providente e amoroso, que quer bem e socorre seus filhos, preferencialmente os mais fracos e indefesos, os que não tem vez nem voz. Agindo com misericórdia, em Cristo vem ao encontro de seu povo, não para uma visita rápida, mas como o Servo que deseja permanecer, cuidar, alimentar, oferecer o amor, amando. É isto que diz o cântico: fala da presença amorosa deste Deus revelado no amor, que jamais abandona seu povo. Em Cristo, seu amado Filho, o Pai está com seu povo e com este permanece para sempre.

A glória de Maria

            O Pai não concede privilégios a ninguém. Em Cristo, sabemos que Deus escolhe os humildes e com eles transforma a história. Maria não é melhor nem pior do que as demais mulheres, portanto, não é nenhuma privilegiada. Não é nenhuma deusa, mas humilde servidora do Senhor. Sua glória está na sua humildade e na sua capacidade de servir. A celebração de sua assunção ao céu serve para indicar a glória dos filhos de Deus, daqueles que ousam fazer como ela fez, no hoje da história humana. É prefiguração daquilo que há de vir, daquilo que Deus quer para toda pessoa: a participação no Reino. A assunção de Maria, neste sentido, difere de toda pretensão meramente devocional, que tende à divinização de sua pessoa. Por isso, sem excessos, afirmamos: a participação de Maria no plano de Deus lhe confere um lugar imprescindível, o lugar de discípula missionária da Palavra de Deus. Ela foi bem-aventurada por isto e por isto mesmo participa da glória de Deus, glória que não lhe é exclusiva.

Uma Igreja usando avental

            Venerar Maria é abraçar seu gesto por excelência: servir ao próximo no amor. A Igreja precisa partir, sair de si mesma. Desburocratizar e tentar extinguir a corrupção na Cúria Romana são atitudes necessárias, mas a Igreja necessita de ir mais além. A Igreja não é a Cúria Romana, mas Povo de Deus na história. A missão que o evangelho confere aos crentes não está em função da salvação de instituições, mas da salvação de seres humanos. Aceitando ou não, as instituições não são eternas, mas passíveis de mudanças e podem se extinguir.

A corrupção tem força de colocar um fim nas instituições e isto é inevitável. O máximo que se pode fazer é adiar o fim das instituições que resistem às devidas rupturas. Reformas não mudam estruturas, apenas as adéqua ou não a novas situações. O problema permanece. O desafio maior da Igreja é colocar o evangelho de Jesus no centro de sua vida e missão. Isto significa o seguinte: converter-se aos pequenos e pobres e, definitivamente, renunciar a tudo o que não condiz com o evangelho de Jesus de Nazaré. Na Solenidade da Assunção, Maria aparece como aquela que ensina o verdadeiro significado do Evangelho de Jesus: serviço aos irmãos e irmãs, preferencialmente, os pobres.


Tiago de França

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A vida e missão dos Bispos na Igreja

Introdução

            Na Igreja, o mês de agosto é denominado como mês vocacional, pois nele se reflete o tema da vocação. Por ocasião do Dia do Padre, 04 de agosto, escrevi uma reflexão sobre a vocação do padre, agora ofereço uma breve reflexão sobre a vocação episcopal, ou vocação do Bispo na Igreja. Há uma vasta bibliografia a respeito do tema, especialmente nos documentos oficiais da Igreja, mas não quero entrar nos pormenores teológicos, mas apenas frisar a vocação episcopal a partir do Documento de Aparecida, do discurso do Papa Francisco ao comitê que coordena o Conselho Episcopal Latino-americano, assim como a partir da realidade da Igreja, dando ênfase ao testemunho de alguns Bispos. São apenas algumas provocações.

1. Servidores do Povo de Deus

            O Documento de Aparecida (DA), no capítulo V, dedica os números 186 a 190 ao tema da vocação dos Bispos na Igreja. Eles são chamados a serem discípulos missionários de Jesus Sumo Sacerdote. Eis, sinteticamente, o que fala o DA a respeito da vocação episcopal, nos números mencionados acima. A respeito dos Bispos, afirma-se que:

- São sucessores dos apóstolos, junto com o Papa; discípulos e membros do Povo de Deus; mestres da fé e responsáveis por velar e promover a fé católica;

- Chamados a viver o amor a Jesus na oração, na doação de si mesmos, na promoção da caridade e na santificação dos fieis; a ser testemunhas próximas e alegres de Jesus Cristo, Bom Pastor; a fazer da Igreja “casa e escola de comunhão”; a ser pastores e guias das comunidades; animadores da comunhão; pais e centros de unidade; a servir o Povo de Deus, conforme o coração de Cristo Bom Pastor, e a seguir Jesus na comunhão da Igreja; a ser pais, amigos, irmãos, abertos ao diálogo; a ter uma união constante com Jesus; a promover os vínculos de colegialidade que os unem ao Colégio Episcopal; a ser testemunhas da esperança, pais dos fieis, especialmente dos pobres; a ser princípios e construtores da unidade na Igreja particular e santificadores do povo.

            Os documentos oficiais explicitam pormenorizadamente cada um destes aspectos, que constituem a vocação do Bispo na Igreja. Como se vê, trata-se de aspectos simples, compreensíveis a qualquer pessoa de bom senso. A insistência no Cristo Bom Pastor é o que chama a atenção, além do aspecto do serviço que se expressa na doação. Um terceiro aspecto que merece algumas considerações se refere à questão da unidade. Vamos comentá-los, brevemente.

2. O Bispo como discípulo missionário de Jesus, Bom Pastor

            Antes de tratarmos do Cristo, Bom Pastor, é preciso considerar que na história, principalmente no período da Idade Média até o Concílio Vaticano II, o Bispo perdeu sua configuração com o Cristo, Bom Pastor. Em outras palavras, o Bispo na Igreja se tornou um príncipe, não um pastor. Príncipes são caracterizados pelo poder, pelo prestígio e pela riqueza. Por isso, como alguns até hoje residem, durante todo este período, os Bispos residiam nos palácios episcopais e, portanto, viviam vida luxuosa, salvo raríssimas exceções. Assim sendo, foram tomados pela psicologia dos príncipes, ou seja, passaram a ter mentalidade, a se enxergar e a se comportar como príncipes.

            Isto significa que os Bispos não tinham as mínimas condições de se tornarem discípulos missionários de Jesus, Bom Pastor. Configurar-se a Jesus é, necessariamente, ter a coragem de ser como Jesus: pobre, livre, missionário e doador da própria vida. Até hoje, muitos Bispos estão longe de serem pobres, livres, missionários e capazes de doar a própria vida como fez Jesus. O Cristo Bom Pastor, segundo o evangelho de João, é bom não porque somente é dócil, mas porque conhece suas ovelhas, cuida delas e é capaz de dar a vida por elas. Configurar-se a este Cristo significa fazer a mesma coisa. Não há meio termo. Não há outra interpretação autêntica senão essa.

            Isto é o que ensina a genuína teologia do ministério episcopal. E na prática, como a mesma se expressa? Para identificar-se e configurar-se com o Cristo, Bom Pastor, o Bispo precisa ir ao encontro do rebanho. Sair de si mesmo e ir ao encontro das pessoas, sem medo de se expor. Não há pastoreio sem que o pastor saia à procura das ovelhas, principalmente das ovelhas perdidas da casa de Israel, como fez Jesus (cf. Mt 15, 24).

O lugar do Bispo não é no palácio, ficando a espera das pessoas em um confortável gabinete, mas seu lugar é no meio do povo, lá onde o povo se encontra, na periferia do mundo. O povo precisa contar com a presença do Bispo em seu meio, como alguém próximo, não como uma autoridade distante, que somente aparece nas grandes cerimônias rodeadas por padres e demais autoridades civis. É no meio do povo que o Bispo fará a experiência de Jesus. Desde sempre e principalmente hoje, é incompatível com o evangelho de Jesus um Bispo residir em um palácio, tendo vida luxuosa.

3. O Bispo como servidor do povo de Deus

            A Igreja é chamada a ser Povo de Deus. Portanto, servindo ao Povo de Deus, o Bispo está servindo à Igreja, edificando-a na verdade e na caridade. A legitimidade do ministério episcopal, assim como dos demais ministérios na Igreja, encontra-se no serviço ao povo de Deus. É um desserviço à Igreja a atuação de um Bispo que não procura pautar seu ministério no amor às pessoas, especialmente aos pobres. O oposto do serviço se encontra no apego ao poder, que se expressa, na maioria das vezes, nas alianças com os ricos, tendo em vista os interesses pessoais e corporativistas.

            Servir acarreta sacrifícios e riscos. Não é muito cômodo se colocar a serviço do próximo. Trata-se de uma atitude que exige paciência, compreensão, ousadia, coragem e perseverança. Os riscos inerentes à missão podem levar à doação da própria vida. Uma vez entregue sem reservas ao serviço do povo santo e fiel, o Bispo é chamado a levar sua missão até as últimas consequências, confiando no auxílio da graça divina. Trata-se de uma entrega livre e gratuita, fecunda e santificadora. É doando a própria vida que o Bispo santifica o povo de Deus. O exercício da profecia integra o ministério do Bispo na Igreja e esta carece, mais do nunca, de Bispos profetas.

4. O Bispo como promotor da unidade da Igreja

            O discurso da unidade na Igreja esconde alguns perigos. O primeiro deles se refere ao fato do Bispo se comportar como comandante e não como guia de sua Igreja particular. O ministério episcopal não é função de mando, mas missão eclesial. O Bispo não é um superintendente de uma empresa, na qual todos devem se submeter a ele. A submissão é, essencialmente, antievangélica. Nenhum Bispo deveria recorrer à submissão para ser respeitado, pois os que assim procedem não o são. Bispos autoritários são temidos, não respeitados.

            O segundo perigo, que é consequência do primeiro, se refere ao fato de que, ao invés de unidade o que ocorre, na maioria dos casos, é uniformidade. Na vida eclesial, o perigo da uniformidade sempre se fez presente. Recentemente, este perigo se transformou em um dos maiores males da Igreja. Os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI foram marcados por fortes apelos à uniformidade. Esta consiste na tendência de uniformizar a Igreja, ou seja, determinar padrões rígidos de comportamentos que tendem a eliminar todo esforço de se reconhecer a legitimidade da diversidade e da pluralidade na vida eclesial. Todo Bispo precisa ter em mente a eclesiologia pós-Vaticano II, que reconhece a pluralidade na Igreja como obra do Espírito que a guia na história. A uniformidade tende a definhar a Igreja, desfigurando-a e tornando-a ineficaz.

            A uniformidade é consequência do uso do controle sobre as pessoas e organismos eclesiais. O Bispo missionário evita cair na tentação do controle e da manipulação. Neste sentido, seu ministério está a serviço da liberdade dos filhos de Deus, que se expressa na manifestação da diversidade dos carismas que edificam a Igreja. Não há verdadeiro serviço eclesial sob sanções controladoras.

A missão eclesial acontece na liberdade e é a serviço desta que o Bispo é chamado a ser colocar. Somente Bispos inseguros e frustrados se deixam levar pela tentação do controle e da manipulação, pois carecem de demonstrar seu poder através da força que seu encargo oferece, juridicamente falando. De modo geral, estes Bispos só são queridos por aqueles que são beneficiados pelo seu poder controlador e manipulador. O povo repudia e despreza aqueles que fazem usos de tais recursos.

5. O perfil do Bispo segundo o Papa Francisco

            Por ocasião da Jornada Mundial da Juventude 2013, o Papa Francisco aproveitou para dirigir a palavra aos Bispos que compõem o comitê coordenador do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM). No final de sua fala, fez questão de expressar o que pensa a respeito da vocação episcopal. Segundo Francisco, na Igreja os Bispos são chamados a ser:

- guias, não comandantes; homens que amem a pobreza interior (liberdade diante do Senhor) e exterior (simplicidade e austeridade de vida); que não tenham “psicologia de príncipes”; que não sejam ambiciosos; que sejam esposos de uma Igreja sem viver na expectativa de outra; capazes de vigiar sobre o rebanho; atentos aos perigosos que ameaçam o rebanho; capazes de sustentar com amor e paciência os passos de Deus em seu povo; que ocupem seu triplo lugar (atrás do povo, no meio do povo e à frente do povo).

            Literalmente, estas foram as afirmações que expressam as convicções de Francisco a respeito da missão do Bispo na Igreja. Pelo que se vê, são afirmações que estão em plena sintonia com a teologia do ministério episcopal e que apontam para a necessidade de Bispos mais próximos do povo de Deus, mais preocupados com as lutas cotidianas deste povo. Antes de concluir sua fala, Francisco apresentou uma grave constatação: “Não quero juntar mais detalhes sobre a pessoa do Bispo, mas simplesmente acrescentar, incluindo-me a mim mesmo nesta afirmação, que estamos um pouco atrasados no que a Conversão Pastoral indica”. Com esta afirmação, Francisco reconhece que os Bispos andam bem atrasados em matéria de conversão pastoral.

            Antes de concluir o discurso, o Papa ainda insistiu: “Desculpem a desordem do discurso e lhes peço, por favor, para tomarmos a sério a nossa vocação de servidores do povo santo e fiel de Deus, porque é nisso que se exerce e mostra a autoridade: na capacidade de serviço”. O que chama a atenção é este “lhes peço, por favor” do Papa, que demonstra séria preocupação com a atual situação do ministério dos Bispos na Igreja. De fato, se exerce e se mostra a autoridade na capacidade de serviço do ministro. Fora do serviço ao povo santo e fiel não há autoridade legítima. É hora dos Bispos levarem mais a sério esta advertência papal, especialmente aqueles que não andam muito preocupados com o sofrimento dos pobres.

6. Dom Oscar Romero, pastor e mártir

            Antes de apresentar as considerações finais desta breve reflexão sobre o ministério episcopal, quero, brevemente, falar da importância do testemunho profético de Dom Oscar Romero. Este grande Bispo da Igreja foi profeta em El Salvador na América Central. Nasceu em 1917 e foi assassinado em 24 de março de 1980. Inicialmente, conservador e por este motivo, naquela ocasião, foi eleito Bispo. Diante das atrocidades cometidas pela ditadura militar que tomou o país, Dom Oscar Romero se deixou guiar pelo Espírito do Senhor e ouviu o clamor das vítimas, colocando-se a serviço da libertação do povo de Deus.

            A Igreja necessita de Bispos profetas. O profeta é um homem guiado somente pelo Espírito do Senhor, portanto, despojado de hipocrisia e de toda espécie de apego ao poder. O profeta anuncia vigorosamente a Palavra de Deus para a vida e liberdade de seu povo. Não está em função da instituição, mas da vida e da liberdade do povo de Deus. Oscar Romero não tinha medo da morte porque acreditava na ressurreição. De fato, foi morto e está vivo na vida do povo salvadorenho.

Oscar Romero doou sua vida pelo anúncio do evangelho de Jesus e pelas grandes causas do Reino de Deus. É um profeta do Reino de Deus. Tornou-se, assim, modelo de Bispo de que a Igreja tanto necessita; modelo de homem que não procurou salvar a própria vida, mas entregá-la por causa de Jesus e seu evangelho. Por isso, Oscar Romero encontrou-se com Jesus e com Jesus permaneceu unido até sua participação no sangue derramado na cruz. Com Cristo morreu e com Cristo ressuscitou. Foi um operário da messe do Senhor. Tornou-se amigo de Deus. Na Igreja, o Bispo, mestre da verdade que liberta, deve ser um amigo de Deus.

A modo de conclusão

            Os conceitos, a realidade e os testemunhos de alguns Bispos da Igreja revelam a urgente necessidade de termos novos Bispos. Novos Bispos na linha do evangelho, como o foram Oscar Romero, Helder Câmara, Luciano Mendes, Aloísio Lorscheider, Enrique Angelelli, Antônio Fragoso, entre outros que já morreram ou foram assassinados por causa da justiça do Reino. Dos antigos, ainda restam alguns vivos, como Pedro Casaldáliga, Paulo Evaristo Arns, Tomás Balduíno, José Maria Pires e outros. No quadro atual do episcopado brasileiro, alguns se destacam na luta pela justiça, como Erwin Kräutler, Flávio Cappio, Edson Damian e alguns outros.

            Estes Bispos são homens de convicções profundas e enraizados no evangelho de Jesus; não temem a morte nem aqueles que estão a serviço do esquadrão da morte. Vivem sob a guia do Espírito do Senhor, que os mantém na fidelidade ao evangelho que anunciam. O testemunho deles é uma prova de que, de fato, é possível termos Bispos sem a chamada “psicologia de príncipes”, apontada pelo Papa Francisco.

            Em outra ocasião, tratarei de um importante acordo feito por quarenta Bispos após a realização do Concílio Vaticano II, denominado Pacto das Catacumbas, celebrado no dia 16 de novembro de 1965, junto à catacumba de santa Domitila, em Roma. Dom Helder Câmara, juntamente com outros Bispos brasileiros, participou desta importante celebração.

O Pacto das Catacumbas é de suma importância para entendermos o espírito evangélico com o qual alguns Bispos doaram sua vida pelas grandes causas do Reino de Deus. Resta-nos pedir a Deus que envie bons Pastores à sua Igreja e que Francisco, Bispo de Roma e cabeça do Colégio Episcopal, possa rever a forma como são nomeados os Bispos na Igreja, a fim que o Espírito do Senhor possa agir com mais liberdade.
Tiago de França da Silva
Desde Belo Horizonte – MG, 15 de agosto de 2013.

No dia da Assunção de Nossa Senhora.

domingo, 11 de agosto de 2013

Vigiar e servir

“Felizes os empregados que o senhor encontrar acordados quando chegar. Em verdade vos digo, ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá” (Lc 12, 37).

            O tempo atual é marcado pelo imediatismo e pela pressa. De modo geral, as pessoas estão apressadas, não esperam umas pelas outras. A excessiva preocupação pelo cuidado consigo mesmas leva ao esquecimento do próximo. A pressa nos faz esquecer as pessoas. Amigos são esquecidos, crianças esquecidas, idosos postos de lado e todos aqueles indefesos que não entram na dinâmica da pressa são deixados para trás. Muitas vezes, as tragédias nos fazem recordar que os esquecidos estão vivos, precisam ser considerados.

            Como falar de vigilância com pessoas contaminadas pelo vírus da pressa? Antes de refletirmos esta questão, precisamos pensar sobre a falta de atenção como consequência principal da pressa. Por que as pessoas se apressam? O que procuram? O que as aflige? O capitalismo selvagem criou um estilo apressado de vida. Nele, as pessoas precisam produzir, progredir, consumir, lucrar. Para fazer tudo isto, a pressa é companheira de todas as horas. O segredo do sucesso está ligado à agilidade. Esperar se tornou uma postura insuportável, coisa de outra época.

            Quando apressadas, as pessoas focam sua atenção naquilo que procuram, deixando de lado, muitas vezes, o essencial da vida. As procuras do homem pós-moderno são superficiais, relativas, líquidas, passageiras. Apega-se facilmente a tudo aquilo que é desgastante e gravemente descartável. Encontramos poucas pessoas realmente conferindo sentido e qualidade à própria vida. A maioria está perdendo tempo, está dormindo, esperando serem despertadas para os valores sublimes e para a Realidade definitiva.

            À luz de Lc 12, 32 – 48, texto lido na liturgia da Igreja deste Domingo, vamos pensar o sentido da vigilância que está ligado ao serviço aos irmãos, tendo em vista o que acima já consideramos. O que Jesus quis dizer quando recomendou a vigilância aos seus discípulos? Algumas expressões que aparecem em suas palavras são cheias de significado. Vamos olhar algumas delas.

            Jesus fala de um pequenino rebanho, que não deve ter medo, pois foi do agrado do Pai dar a vós o reino. O Reino de Deus é dos pequeninos. Isto é profundamente importante e é um alerta para todas as pessoas que procuram grandezas. Quem quiser fazer parte do Reino de Deus precisa participar do pequenino rebanho do Senhor, tornando-se pequeno, humilde, simples. Deus se agrada do pequeno. Aqui se encontra a felicidade dos pequenos: pertencem a Deus, são do seu agrado.

            Onde está o vosso tesouro aí está o vosso coração. Esta afirmação de Jesus sugere uma pergunta: Qual o tesouro da nossa vida? Na Celebração, quando o ministro diz: “Corações ao alto!” A assembleia responde: “O nosso coração está em Deus!” O que significa dizer que o nosso coração está em Deus? Deus é realmente o tesouro de nossa vida? Onde estão os nossos afetos? O que estamos procurando na vida? Convido o leitor a pensar para si mesmo estas questões.

            Sede como homens que estão esperando o senhor voltar. Esperar pelo Senhor é esperar no Senhor; do contrário, tal espera não se realiza, torna-se impossível. O mesmo Senhor que nos chama à vigilância também nos concede a graça para nos mantermos firmes na espera. Não se trata de qualquer espera, não se trata de uma espera passiva, alienada, de pessoas que cruzam os braços e esperam o tempo passar. Estas pessoas não se encontrarão com o Senhor. Somente quem vive a espera ativa, que se traduz numa vida pautada no amor a Deus e ao próximo é que vai se encontrar com o Senhor da vida.

            Quem vive a vida pautada no amor a vive em pleno movimento. O amor é aquela força capaz de colocar as pessoas no caminho de Jesus, transformando radicalmente suas vidas, orientando-as e conferindo-lhes sentido. O amor nos faz conhecer o caminho que conduz ao encontro definitivo com Deus, nos faz imersos na santidade de Deus, nos faz viver com e em Deus. Portanto, a vigilância é uma espera no amor e para o amor, é o encontro com a beleza que dura para sempre.

            O amor nos mantém acordados diante dos homens e de Deus. Estar acordado significa permanecer unido ao Deus presente na vida das pessoas, em um esforço constante de nos manter despojados de tudo aquilo que impede a comunhão com Deus e com o próximo. Livres da indiferença e do desamor, o cristão se encontra mergulhado no amor de Deus que o sustenta na caminhada; amor que é como que o combustível das lâmpadas que precisam permanecer acesas para iluminar o caminho.

            Todo o texto gira em torno da necessidade do estar acordado, de rins cingidos e lâmpadas acesas. Na parábola contada por Jesus, que fala do empregado fiel que espera o retorno do seu patrão e daquele infiel que não soube esperar, Jesus exalta a virtude da fidelidade. Assim, o amor de Deus é a força que possibilita a fidelidade no caminho. É impossível ser fiel sem o amor, pois sozinho, com as próprias forças, o homem não consegue chegar a lugar nenhum. Se não quisermos participar do destino dos infiéis precisamos participar da aventura do amor, que de modo ousado e diverso, nos conduz seguramente ao encontro com Aquele que é a origem e o fim último do ser humano.

            A Igreja de nossos dias carece de pessoas acordadas, dispostas a correrem o risco de se aventurar no caminho de Jesus, alicerçado na justiça e no amor; de pessoas que renunciem ao conforto de uma vida medíocre para fazerem resplandecer neste mundo a luz de Jesus, para que o mundo veja e creia Naquele que nos foi dado como o Libertador, capaz de conferir o verdadeiro sentido de nossa existência. Escatologicamente falando, por mais bela e prazerosa que seja a nossa breve passagem nesta terra marcada pelo sofrimento, nossa verdadeira vida se encontra escondida com Cristo em Deus (cf. Cl 3, 3).


Tiago de França

domingo, 4 de agosto de 2013

Ser padre hoje

“O sacerdote não pode cair na tentação de se considerar somente mero delegado ou apenas representante da comunidade, mas sim um dom para ela, pela unção do Espírito e por sua especial união com Cristo” (Documento de Aparecida, n. 193).

Anualmente, na memória de São João Maria Vianney, o cura de Ars, celebrada no dia 4 de agosto, a Igreja também celebra o Dia do Padre. Esta breve reflexão, à luz do Documento de Aparecida – DA, do evangelho e daquilo que compreendo ser o sacerdócio ministerial, é endereçada especialmente aos padres, com os quais tenho certo contato. Ela quer ser uma palavra de apoio e, em nome da amizade, uma advertência fraterna àqueles que aparentam certa desorientação no caminho que abraçaram. Isto não impede que leigos e leigas também leiam esta reflexão. 

Não sou bispo para advertir quem quer que seja, mas na qualidade de leitor dos documentos oficiais e das Escrituras, assim como na qualidade de amigo e irmão em Cristo ouso apresentar-lhes algumas provocações. A citação acima descrita, retirada do n. 193 do DA é como que o fio condutor de nossa reflexão.

A diferença entre presbítero e mercenário

            No evangelho segundo João, Jesus se apresenta como o bom pastor, como aquele que conhece e ama suas ovelhas ao ponto de dar a vida por elas (cf. Jo 10, 11ss). A Igreja ensina que todo padre deve se configurar a Cristo bom pastor. O que isto significa? Assim como Jesus, os padres são chamados a ser como Ele: conhecedores das ovelhas do rebanho do Senhor, ter profundo amor por elas ao ponto de também dar a vida.

Na prática, isto implica que:

1. Para conhecer, os padres precisam se aproximar das pessoas, pois o conhecimento no sentido pastoral não acontece sem a devida aproximação;

2. Amar, indistintamente, as pessoas, especialmente as que são pobres e excluídas, despojando-se, assim, das amizades com as pessoas elitizadas que exploram os pobres;

3. Ser capaz de dar a vida, desapegando-se, assim, da tentação de preservar a própria vida, indo ao encontro das pessoas nas situações perigosas em que as mesmas se encontram, correndo os riscos inerentes à missão.  

Os que assim procedem são reconhecidamente pastores do povo de Deus; do contrário, são mercenários. Estes possuem algumas características visíveis, que podemos sintetizá-las desse modo:

1. Procuram, em primeiro lugar, seus próprios interesses. Ingressam no seminário e, posteriormente, são admitidos ao ministério perguntando-se a si mesmos: O que este ministério pode me dar? Encontram a resposta no prestígio, na riqueza e no poder, principalmente neste último;

2. Por pensarem demasiadamente em si mesmos, não se importam com a vida sofrida do povo. Portanto, não aparecem na vida do povo, são homens das belíssimas celebrações (quando sabem fazê-las bem!) e das conversas cordiais nas sacristias e nos atendimentos marcados em seus gabinetes;

3. Não tendo compromisso claro e efetivo com as vítimas das inúmeras injustiças que se cometem neste mundo, tais padres, dissimuladamente, usam do ministério para crescerem na vida. Alguns procuram as riquezas e se tornam, de fato, homens bem sucedidos. Quando morrem, deixam fortunas para parentes e amigos. Particularmente, conheci alguns que assim procederam. Outros, porém, almejam subir na hierarquia da Igreja, desejando ser bispos, cardeais e serem membros dos organismos mais renomados e poderosos da Igreja. Os que não conseguem, terminam se satisfazendo com os “títulos de consolação”, sendo cônegos, monsenhores etc.

O fato é que tanto o prestígio quanto a riqueza trazem consigo o fascínio do poder. Adquirindo-os, o padre ganha renome. Consequentemente, fica desfigurado, ou seja, pode ser tudo, menos um servidor do evangelho de Jesus. O padre mercenário é alguém indiferente à dor do próximo, é um lobo oportunista, homem perigoso, que se aproveita da ingenuidade e da boa vontade das pessoas que desconhecem suas reais intenções. Trata-se de um ministro de si mesmo, que usurpa a palavra e o ministério adquirido, que poderá até escapar da justiça dos homens, mas terá que prestar contas a Deus daquilo que fez do dom recebido no momento de sua ordenação e durante toda a sua vida.

Aqui me recordo da metáfora utilizada pelo Pe. Cícero de Juazeiro, em um de seus fervorosos sermões, referindo-se aos ministros infiéis da Igreja: “Meus amiguinhos, a calçada que dá para a porta do inferno é feita de cabeças de padre!” É uma imagem um pouco forte, mas que fala da gravidade dos que, conscientemente, abusam do ministério ordenado, fazendo sofrer inúmeras pessoas e levando a tantas outras a perderem a fé no Cristo ressuscitado.

Unidos a Cristo e servidores do povo de Deus

            Cada padre é chamado a servir ao povo de Deus de acordo com a realidade na qual está inserido. Neste sentido, sua identidade teológica precisa estar em plena consonância com sua inserção cultural. A necessária relação entre identidade teológica do padre e sua inserção na cultura é uma questão fundamental do ministério ordenado pensada pelo Concílio Vaticano II e que aqui só merece só tocada de passagem, visto ser uma questão que exige maiores aprofundamentos. O que se pode, resumidamente dizer, é que o padre precisa de ajuda, pois não pode caminhar sozinho. Não existe padre no vácuo, sua vocação é essencialmente comunitária e, portanto, coletiva.

            Para manter-se fiel ao propósito feito na ordenação, além do fundamental auxílio da graça de Deus, que o faz perseverar no seguimento de Jesus, o padre precisa estar consciente do seguinte:

1. Sua formação não termina no seminário. Neste, o padre estuda Filosofia e Teologia, aprende o valor da comunidade e é iniciado na vida celibatária. Isto significa que a formação permanente é parte integral da formação presbiteral. Em outras palavras, o padre que pensar que está devidamente formado e pronto para responder à altura do tempo presente, recusando-se à formação permanente, encontra-se profundamente equivocado, pois a formação recebida no seminário, quando não transformada em deformação, é insuficiente para o exercício de sua missão;

2. Não existe sacerdócio ministerial autêntico na Igreja sem vida de oração, estudo e comunhão eucarística. Padres que somente presidem a Eucaristia e que somente rezam quando delas participam são facilmente levados à infidelidade no sacerdócio que abraçaram. Portanto, o padre deve ser homem de oração; do contrário, não persevera na vocação. Poderá até morrer no exercício do sacerdócio, mas este se lhe tornará um fardo insuportável. Aqui não preciso discorrer a respeito de como se comportam os padres que não se habituaram à oração constante, humilde e perseverante. O padre precisa estudar, estar em sintonia com os problemas do mundo, inteirando-se dele; do contrário, reproduzirá uma pregação alienada e insuportável aos ouvidos dos que tem o mínimo de bom senso.

O padre deve celebrar, juntamente com o povo, a Eucaristia. Presidir a assembleia orante não é meramente ler o missal nem fazer teatro, mas rezar juntamente com o povo, pois no altar é o presidente, não mero representante de uma reunião ordinária da paróquia. O povo, com a sensibilidade que lhe é peculiar, logo percebe se o padre está em comunhão com Deus ou se está, mecanicamente, exercendo uma função que, interiormente, lhe causa incômodo e, em alguns casos, repugnância. É escandaloso afirmar, mas temos que admitir que, infelizmente, há padres que não gostam de presidir a Eucaristia, mesmo sabendo que esta é uma de suas principais atribuições.

3. Saiba todo padre que seu ministério está a serviço do sacerdócio comum dos fieis (cf. o n. 193 do DA). Isto significa que nenhum padre pode se sentir superior a qualquer leigo; que não pode transformar o sacerdócio comum dos fieis como um pedestal para o seu, pois ambos os sacerdócios participam igualmente da missão de Cristo Jesus. Portanto, é preciso afirmar categoricamente que os leigos não são auxiliares dos padres, nem são seus servidores; pelo contrário, cada padre deve se colocar a serviço do povo de Deus. Em relação aos padres, os leigos são chamados a serem colaboradores, pois na Igreja a missão destes tem caráter e estatuto próprios.

            Por fim, precisamos ainda considerar outras três questões pertinentes, a saber:

1. O celibato obrigatório continua sendo um fardo na vida de muitos padres. É preciso afirmar que nem todo aquele que se sente chamado ao sacerdócio ministerial tem vocação para viver o celibato. O ministério é uma coisa, o celibato outra. É inaceitável a afirmação de que todo aquele que não é fiel ao celibato, consequentemente, seja infiel ao sacerdócio abraçado. São duas questões que precisam ser tratadas de modo diferenciado, mesmo estando interligadas. É verdade que o celibato tem sua razão de ser, mas somente para aqueles que o abraçam livremente e o vivem numa total entrega de si mesmos pelo Reino de Deus (cf. o n. 196 do DA).

Enquanto tal situação não for sinceramente repensada na Igreja, continuaremos rezando por muitas e santas vocações, mas o problema irá persistir. A Igreja estaria bem melhor se admitisse ao ministério presbiteral mulheres e casais empenhados na missão. Infelizmente, o sacerdócio ministerial, em pleno séc. XXI, continua sendo reservado às pessoas do sexo masculino e que se predispõem a viver sem o auxílio, a companhia e o aconchego da mulher na qualidade de esposa;

2. O celibato gera um segundo problema que a Igreja tenta resolver, mas não consegue. Estamos falando da escassez de padre e, consequentemente, das inúmeras comunidades cristãs sem Eucaristia. Fala-se do problema, mas busca-se solucionar rezando a Deus para que envie operários para a messe. Rezar pelas vocações é, sem dúvida alguma, algo necessário; mas é verdade também que somente as orações não solucionarão o problema.

Além do celibato obrigatório, o problema da escassez está ligado também à má distribuição dos padres na Igreja e à falta de atenção e valor para com os padres que deixaram o exercício ministerial. Infelizmente, os que deixam o exercício do ministério são relegados ao esquecimento e muitas vezes discriminados por aqueles que desconhecem os reais motivos que levam muitos a deixarem de atuar como padres. A Igreja ainda não acordou neste sentido, continua desatenta e até tratando com frieza e desumanidade os que deixam o exercício do ministério. Somente em poucos casos, quando bispos e provinciais são compreensivos, então há certo tratamento digno da questão;

3. O padre é chamado a ser discípulo missionário de Jesus Cristo. Para isto, precisa dedicar toda a sua vida, com sua força, inteligência e vontade, ao cuidado das vítimas das inúmeras injustiças que se cometem neste mundo. Somente assim, seu ministério terá sentido e nenhuma espécie de crise ou depressão o atingirá. O padre que se dedica ao serviço humilde do povo de Deus não perde tempo com questões ínfimas e insignificantes da existência humana, porque uma vez iluminado pelo Espírito, encontrando-se permanentemente assistindo pela graça divina e inserido na vida do povo, certamente será capaz de manter-se unido ao Deus que o chamou até as últimas consequências.

            Estas e outras questões relacionadas à vida e ao ministério dos presbíteros merecem nossa atenção, pois se trata de um serviço importante à vida e à missão da Igreja no mundo. De fato, a Igreja de hoje carece de padres cada vez mais livres, abertos e disponíveis, padres generosos, dóceis e atentos, amigos dos humildes e corajosos, profetas e ousadamente firmes, de profundas convicções, sensatos, sábios e santos. Fica aqui a minha palavra, o meu abraço e a minha oração a todos os padres da Igreja, especialmente àqueles com os quais mantenho certo contato, sendo alguns deles verdadeiros sinais da presença amorosa de Deus no mundo. Que o Pe. Cícero de Juazeiro, a quem estimo muito e o tenho como intercessor, assim como tantos outros santos padres da Igreja no nordeste, intercedam a Deus pelos padres da Igreja Católica, para que possam ser humildes servos do povo de Deus na concretização do Reino.


Tiago de França