Não
podemos deixar passar despercebida a memória de dois grandes bispos da história
da Igreja no Brasil: Dom Helder e Dom Luciano. Não evocaremos aqui meros traços
biográficos, mas queremos ressaltar a importância destes homens para a vida e a
missão da Igreja. O que eles nos ensinaram? O que fizeram de extraordinário? Em
que acreditavam? Qual modelo de Igreja cultivaram? Estas e outras questões
norteiam esta breve reflexão. O que me motiva a partilhar a presente reflexão,
além da minha identificação pessoal, é uma data comum especial a ambos os
bispos: Dom Helder faleceu no dia 27 de agosto de 1999, Dom Luciano, em 27 de
agosto de 2006. Muito se disse até o momento sobre eles e muito se tem a dizer;
precisamos manter viva a memória de ambos para o bem da Igreja.
Chamados à
profecia
Um bispo profeta continua sendo algo difícil
na Igreja. Difícil porque a missão profética é árdua. Vida de profeta não é
muito confortável. Na Igreja, os profetas são perseguidos e o são por dois
motivos: ou porque não são compreendidos, ou porque não são aceitos.
Compreensão e aceitação, neste caso, são realidades consequentes; ou seja, os
profetas não são aceitos porque não pregam verdades pessoais, mas a Verdade que
liberta todo ser humano, Jesus de Nazaré. O fato de não serem compreendidos, à
primeira vista, parece estar em segundo lugar em relação à aceitação.
Como pode um bispo na Igreja ser
profeta? O motivo desta pergunta se refere ao fato histórico e vergonhoso de
que os bispos, na Igreja, se tornaram príncipes. Jesus não confiou sua missão a
príncipes, mas a pobres homens pecadores. Portanto, eis uma verdade fundamental
para o ministério episcopal: partindo do pressuposto de que os bispos são
sucessores dos apóstolos de Jesus, então devem ser como eles: pobres homens
pecadores. Olhando para muitos bispos da Igreja, infelizmente, não notamos
neles pobres homens pecadores, mas ricos homens com ar de santidade. Esta
precisa ser buscada, mas não nos moldes que os mesmos procuram.
Em Recife – PE e em alguns lugares
antes, Dom Helder foi pastor e profeta. O mesmo pode ser dito de Dom Luciano,
em Mariana – MG. O que significa ser pastor? Segundo Jesus, no evangelho de
João, pastor é aquele que conhece as ovelhas e é capaz de dar a vida por elas.
Para conhecer é necessário se aproximar e para se aproximar é necessário se
tornar próximo. Neste sentido, Dom Helder e Dom Luciano foram dois bons
samaritanos: foram ao encontro das pessoas caídas à beira do caminho, assaltadas
pelos diversos males da vida.
Segundo o mesmo Cristo, no mesmo
evangelho, ser pastor implica a doação da própria vida até o derramamento de
sangue. É verdade que Dom Helder e Dom Luciano não foram mártires ao ponto de
serem assassinados, como o foi Dom Oscar Romero, em El Salvador, mas o foram na
vida que levaram: foram mártires da causa da justiça do Reino, vítimas da
perseguição e da incompreensão por parte até da própria Igreja (hierarquia,
Roma).
Pelo que se percebe a partir da
concepção evangélica de pastor, a vocação episcopal não deveria ser caminho
fácil para aqueles que a abraçam com convicção. Suceder os apóstolos é tarefa
difícil, requer o exercício da profecia. Como bem afirmou o teólogo Leonardo
Boff quando na oportunidade do filme-documentário sobre Dom Helder: “O profeta não tem amor ao próprio pescoço”,
ou seja, não tem medo de morrer porque, segundo a espiritualidade paulina,
neste sentido, morrer é lucro. A morte, portanto, não é inimiga do profeta.
Assim, as ameaças de morte não se tornam coisa grave que o impeça de levar a
missão até as últimas consequências.
O que o profeta denuncia e anuncia? Dom
Helder e Dom Luciano denunciaram as injustiças que ceifaram a vida de muitas
pessoas. Ambos lutaram contra o regime militar imposto na década de 60 no
Brasil. Durante o período do regime militar, regime que recebeu apoio de muitos
bispos da Igreja, se cometeram inúmeros crimes. Defender os indefesos, ser voz
dos que procuravam por socorro eram atitudes firmes e corajosas de ambos os
bispos. Os pobres e as demais pessoas de boa vontade ficavam admiradas com a
coragem deles; os ricos e poderosos, frios e criminosos, tinham medo da força
de suas palavras e gestos. Sentiam ódio e medo ao mesmo tempo, pois sabiam que
ambos eram homens de Deus. Estes homens não anunciavam a si mesmos, mas
proclamavam com vigor e ousadia profética o evangelho de Jesus de Nazaré.
Novos bispos
para uma nova Igreja
Este subtítulo merece a redação
criteriosa de um livro. Recentemente, três bispos eméritos (que não mais
exercem a função em uma diocese – Igreja particular) escreveram uma carta
aberta aos bispos que compõem a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São
eles: Dom José Maria Pires, emérito de João Pessoa, PB; Dom Pedro Casaldáliga,
emérito de São Félix do Araguaia, MT e Dom Tomás Balduíno, emérito de Goiás,
GO. Estes três bispos fazem parte do pequeno número de bispos eméritos que
viveram a profética experiência da Igreja imediatamente pós-conciliar. São três
profetas da Igreja no Brasil: homens da verdade, da caridade e da liberdade.
Para que possamos ter uma nova
Igreja, mais profética e missionária, necessitamos de novos bispos. Estes novos
bispos precisam ser pastores e profetas. Vamos comentar, brevemente, para
encerrar nossa reflexão, três características que marcaram a vida de Dom Helder
e Dom Luciano e que devem fazer parte da personalidade dos novos bispos para
uma nova Igreja.
1. Homens da
verdade
Anunciar Jesus Cristo, verdade
que liberta e denunciar a mentira, principalmente a mentira institucionalizada,
que mais destrói e mata o ser humano. Dom Helder e Dom Luciano pautaram suas
vidas nesta verdade. O novo bispo precisa ser capaz de renunciar à mentira, ao
engano e à ilusão para ser um proclamador da verdade evangélica, não de uma
verdade qualquer, mas, na autenticidade da própria vida, anunciar ao mundo o
evangelho da verdade.
2. Homens da
caridade
A caritas in veritate é outra virtude evangélica que deve permear as
palavras e gestos dos novos bispos e que permearam a vida de Dom Helder e Dom
Luciano. Ambos praticaram a caridade não por meio da mera doação de donativos
para os pobres, mas, sobretudo, através da promoção da justiça em vista do bem
comum. O bispo precisa promover a justiça, sendo ele em primeiro lugar, um
homem íntegro, denunciando toda espécie de injustiça que danifica a vida
humana, especialmente a vida dos pobres. Os pobres devem ser amigos do bispo e
este deve ser amigo dos pobres. Amizade requer contato, aproximação,
convivência, reciprocidade. Um bispo que não é amigo dos pobres é, consequente
e inevitavelmente, amigo dos ricos e poderosos.
3. Homens da
liberdade
Homens que pautam suas vidas na
verdade e na justiça são livres. Dom Helder e Dom Luciano tinham uma liberdade
de espírito impressionante. Nada os prendia, nem os impedia de realizar a
missão que Deus lhes tinha confiado. Libertos do medo da morte e de outros
medos paralisantes foram homens despojados para a missão. Esta exige liberdade,
pois fora da liberdade não há seguimento de Jesus. O apóstolo Paulo, quando
escreveu aos gálatas, falou uma verdade claríssima: “Foi para a liberdade que
Cristo nos libertou”. Assim, o bispo é chamado a trabalhar em função da
liberdade do ser humano, a partir de palavras e gestos libertadores.
A Igreja atual carece de homens e
mulheres que sejam íntegros, caridosos e livres como Dom Helder e Dom Luciano. Ambos
foram testemunhas da ressurreição do Senhor e, por isso mesmo, viveram conforme
a vontade de Deus. São, portanto, santos. Eles não precisam ser canonizados,
pois já são considerados santos pelo povo de Deus. Quem os conheceu sabe muito
bem disso. Sabe que foram homens dedicados às grandes causas do Reino de Deus. Eles
não tinham “psicologia de príncipes” porque eram pobres missionários do
evangelho, promotores da justiça e da paz, guiados pelo Espírito do Senhor. Que
eles intercedam a Deus por nós.
Tiago de França