Tendo
escutado por duas vezes o Papa Francisco falar que se reconhece como um indisciplinado, interessou-me escrever
sobre o que vem a ser este valioso estado de indisciplina. Com isto,
interessa-nos, brevemente, falar sobre a disciplina na Igreja, não no nível
meramente histórico, mas no nível de sentido que a mesma possui para a vida
eclesial. Antes, é preciso considerar que a ideia de disciplina está ligada, em
primeiro lugar, à vida clerical; posteriormente, o povo também é induzido a
viver de forma disciplinada na Igreja. Inicialmente, podemos assegurar sem medo
algum: o pontificado de Francisco não será marcado pela volta à grande
disciplina como o foram os pontificados de seus dois últimos predecessores:
João Paulo II e Bento XVI.
Um jesuíta, formado na
espiritualidade cultivada por Santo Inácio de Loyola, costuma prezar o valor do
discernimento. Esta parece ser a
palavra norteadora da espiritualidade inaciana. Falar de discernimento é reconhecer
a centralidade do Espírito de Deus que guia as pessoas no caminho da vida.
Neste caminho, segundo Santo Inácio, somos convidados a encontrar a Deus em todas as coisas. O Papa Francisco foi formado
nesta espiritualidade do discernimento e, segundo ele, numa recente entrevista
às revistas dos jesuítas, foi a realidade do discernimento que o fez ingressar
na Companhia de Jesus. Assim, não é de se esperar que um Papa jesuíta, se assim
podemos nomeá-lo, venha dar ênfase à disciplina na vida da Igreja; apesar da
disciplina também ser um dos pilares da espiritualidade na qual foi formado.
Disciplina e
discernimento à luz da experiência de Jesus
Se olharmos para Jesus,
considerando suas palavras e gestos na sua relação com a religião de sua época,
não teremos dificuldade alguma para reconhecê-lo como um indisciplinado.
Mestres da lei e fariseus acusavam-no constantemente de rebeldia, levando a
multidão a vê-lo como um agitador político. Em Jesus, o discernimento não se
encontra somente na sua capacidade de enfrentar corajosamente as autoridades
religiosas e civis de seu tempo, mas na sua capacidade humilde, sincera e
providencial de se posicionar diante das ameaças à vida dos seres humanos,
especialmente dos empobrecidos, principais vítimas dos poderes religioso e
civil.
Na escuta permanente ao Pai e
sendo-lhe fiel até às últimas consequências, Jesus ensina o verdadeiro
significado do discernimento: colocar-se na escuta do Pai, obedecendo-lhe.
A obediência de Jesus estava plenamente legitimada pela sua liberdade de
espírito, que o fez conhecido em todos os lugares. Os empobrecidos reconheceram
nele o Deus que veio visitar seu povo. À luz da vontade divina, era um servo
fiel e prudente; à luz da lei, era um revolucionário, capaz de pegar chicotes e
expulsar os profanadores do templo. A revolução mencionada não se refere
somente ao seu aspecto político, que não pode ser ofuscado, mas, sobretudo, à
ação do Deus libertador que fazendo morada no meio de seu povo, se coloca a seu
serviço.
Jesus não era um jovem disciplinado.
A disciplina era vivida, hipocritamente, pelos mestres da lei e fariseus, e
pelos demais que formavam o conjunto das autoridades religiosas da época:
pessoas que, aparentemente, eram consideradas fiéis à ortodoxia da lei, mas
que, na verdade, não passavam de sepulcros caiados, cheio de podridão e
falsidade. Aparentemente, eram alinhadas no vestir, no andar, no falar, enfim,
investiam na aparência que engana. O que faziam, segundo as próprias palavras
de Jesus, eram colocar pesados fardos nos ombros dos empobrecidos, sendo que
eles mesmos não tinham disposição alguma em cumprir a lei que pregavam.
Uma síntese
histórica
Desde a época do reconhecimento da
Igreja como religião oficial do Império Romano, no séc. IV, até o Concílio
Vaticano II, principalmente após o Concílio de Trento, no séc. XVI, a Igreja se
identificou com a disciplina. Trata-se de um tempo fundamentalmente clerical.
Confinados em mosteiros, seminários, conventos e outras formas de isolamento do mundo, religiosos e
clérigos se identificaram com uma vida mística e ascética. Combinavam mística,
ascese e disciplina: uma espécie de vias
da salvação. Os leigos, indisciplinados por natureza, não poderiam ser
elevados às honras dos altares, pois viviam no mundo. Este era o lugar da
perdição, dos indisciplinados.
Até que o Espírito resolveu soprar e
tornar a indisciplina a palavra de referência na vida de um Papa, que levado
pelo mesmo Espírito, tomou a feliz e providencial iniciativa de realizar o
Concílio Ecumênico Vaticano II, no século passado. João XXIII era um
indisciplinado. Não gostava muito da vida cômoda e luxuosa de Pontífice. Vez e
outra era pego vestindo-se e comportando-se como um fiel comum da Igreja:
despojado das insígnias pontifícias, oriundas do paganismo dos imperadores da
Roma antiga. O Papa bom, de olho nos sinais dos tempos, assumiu o risco de
conduzir a Igreja ao aggionamento, à
necessária atualização.
Após Paulo VI e João Paulo I, as
forças contrárias ao Concílio voltaram com toda a violência: um polonês chegou
ao trono e um alemão foi eleito prefeito de um dos tribunais mais temidos de
Roma: o antigo tribunal do Santo Ofício. Foi nomeado um alemão culto, educado,
perspicaz, impiedoso e convenientemente omisso em muitos casos. Após mais de
vinte e cinco anos de pontificado, morre o polonês numa exposição pública e
midiática do sofrimento humano. Consequentemente, “santo súbito!”
Subiu ao trono o cardeal alemão. Fiel à
política eclesiástica e ao plano de governo de seu predecessor, de repente,
para a surpresa de todos, não dando mais conta do estado de tensão em que se
encontrava a Cúria Romana, constituída por alguns santos e inúmeros pecadores
perigosos, o alemão resolveu renunciar. Foi exaltado por quase todos. Ficou,
contraditoriamente, com a fama de homem despojado do poder, ao qual sempre
viveu apegado desde os velhos tempos da Baviera.
Após longos anos de apelo à grande
disciplina, como oportunamente escreveu o teólogo João Batista Libânio, SJ, em
seu famoso livro A volta à grande
disciplina (Edições Loyola, São Paulo, 1983), subiu ao trono, simplesmente,
Francisco. Todos o observavam sem saber o que dizer, dada a simplicidade das
palavras e gestos de um latinoamericano que após poucas palavras pede a bênção
ao povo de Deus para seu pontificado. Os latinoamericanos, segundo os europeus,
são uns indisciplinados. Nos seminários sempre se mencionava a dificuldade dos
seminaristas latinoamericanos, diferentes dos europeus, considerados mais
capazes à erudição e à disciplina. Visivelmente, em poucos dias, quebrando protocolos
e inaugurando um novo jeito de ser Papa, Francisco tem mostrado que não é de
disciplina que a Igreja precisa, mas de discernimento à luz do Espírito de
Deus.
O Espírito e a
disciplina eclesiástica
Precisamos concluir esta reflexão
com algumas provocações mais pontuais, à luz da pneumatologia pós-conciliar,
que reconheceu a necessidade de se considerar a ação do Espírito Santo,
esquecida até o Vaticano II. Meu velho mestre, Pe. José Comblin (in memoriam) dizia, profeticamente, que a
Igreja se esqueceu dos pobres e do Espírito Santo, e se apegou ao poder. O Papa
Francisco tem apontado o caminho do despojamento, tem convidado insistentemente
a Igreja a ir às periferias do mundo, pois lá está Jesus. Ninguém será salvo
pondo em prática a severa disciplina eclesiástica. A história mostra que esta
serviu mais para afastar a hierarquia do povo do que cultivar na mesma
hierarquia o espírito da verdadeira santidade. Guiados pelo Espírito, as santas
e santos de Deus são indisciplinados: só obedecem a Deus, no Filho e na luz do
Espírito.
Visivelmente, os que se entregam à
ação amorosa do Espírito não estão preocupados com o cumprimento da lei nem com
a mera conservação das tradições, mas estão disponíveis, abertos, vivendo
aquilo que o teólogo alemão Johann Baptist Metz, denomina de mística de olhos abertos (este é o nome
de seu livro, recentemente traduzido e publicado pela Paulus. Vale a pena
ler!). A Igreja de nossos dias carece de místicos de olhos abertos, de pessoas
capazes de se deixar guiar pela misteriosa ação do Espírito de Deus. Os que
vivem apegados à velha e ultrapassada disciplina devem saber que jamais darão
conta de podar e controlar estes místicos.
Estes místicos, a exemplo de Dom Helder
Câmara e tantos outros, são pessoas disciplinadas pelo Espírito: não dormem nem
cochilam, estão no meio do mundo, encarnando o evangelho da vida e da
liberdade. A experiência é indescritível. Somente quem ousa abandonar a velha
disciplina é capaz de experimentar a ação do Espírito. Ser místico é nascer de novo, é
não saber de onde veio nem para onde se vai. É um mistério de amor, ternura,
liberdade e paz.
Tiago de França
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