quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A indisciplina do Papa Francisco e a disciplina na Igreja

             
              Tendo escutado por duas vezes o Papa Francisco falar que se reconhece como um indisciplinado, interessou-me escrever sobre o que vem a ser este valioso estado de indisciplina. Com isto, interessa-nos, brevemente, falar sobre a disciplina na Igreja, não no nível meramente histórico, mas no nível de sentido que a mesma possui para a vida eclesial. Antes, é preciso considerar que a ideia de disciplina está ligada, em primeiro lugar, à vida clerical; posteriormente, o povo também é induzido a viver de forma disciplinada na Igreja. Inicialmente, podemos assegurar sem medo algum: o pontificado de Francisco não será marcado pela volta à grande disciplina como o foram os pontificados de seus dois últimos predecessores: João Paulo II e Bento XVI.

            Um jesuíta, formado na espiritualidade cultivada por Santo Inácio de Loyola, costuma prezar o valor do discernimento. Esta parece ser a palavra norteadora da espiritualidade inaciana. Falar de discernimento é reconhecer a centralidade do Espírito de Deus que guia as pessoas no caminho da vida. Neste caminho, segundo Santo Inácio, somos convidados a encontrar a Deus em todas as coisas. O Papa Francisco foi formado nesta espiritualidade do discernimento e, segundo ele, numa recente entrevista às revistas dos jesuítas, foi a realidade do discernimento que o fez ingressar na Companhia de Jesus. Assim, não é de se esperar que um Papa jesuíta, se assim podemos nomeá-lo, venha dar ênfase à disciplina na vida da Igreja; apesar da disciplina também ser um dos pilares da espiritualidade na qual foi formado.

Disciplina e discernimento à luz da experiência de Jesus

            Se olharmos para Jesus, considerando suas palavras e gestos na sua relação com a religião de sua época, não teremos dificuldade alguma para reconhecê-lo como um indisciplinado. Mestres da lei e fariseus acusavam-no constantemente de rebeldia, levando a multidão a vê-lo como um agitador político. Em Jesus, o discernimento não se encontra somente na sua capacidade de enfrentar corajosamente as autoridades religiosas e civis de seu tempo, mas na sua capacidade humilde, sincera e providencial de se posicionar diante das ameaças à vida dos seres humanos, especialmente dos empobrecidos, principais vítimas dos poderes religioso e civil.

            Na escuta permanente ao Pai e sendo-lhe fiel até às últimas consequências, Jesus ensina o verdadeiro significado do discernimento: colocar-se na escuta do Pai, obedecendo-lhe. A obediência de Jesus estava plenamente legitimada pela sua liberdade de espírito, que o fez conhecido em todos os lugares. Os empobrecidos reconheceram nele o Deus que veio visitar seu povo. À luz da vontade divina, era um servo fiel e prudente; à luz da lei, era um revolucionário, capaz de pegar chicotes e expulsar os profanadores do templo. A revolução mencionada não se refere somente ao seu aspecto político, que não pode ser ofuscado, mas, sobretudo, à ação do Deus libertador que fazendo morada no meio de seu povo, se coloca a seu serviço.

            Jesus não era um jovem disciplinado. A disciplina era vivida, hipocritamente, pelos mestres da lei e fariseus, e pelos demais que formavam o conjunto das autoridades religiosas da época: pessoas que, aparentemente, eram consideradas fiéis à ortodoxia da lei, mas que, na verdade, não passavam de sepulcros caiados, cheio de podridão e falsidade. Aparentemente, eram alinhadas no vestir, no andar, no falar, enfim, investiam na aparência que engana. O que faziam, segundo as próprias palavras de Jesus, eram colocar pesados fardos nos ombros dos empobrecidos, sendo que eles mesmos não tinham disposição alguma em cumprir a lei que pregavam.

Uma síntese histórica

            Desde a época do reconhecimento da Igreja como religião oficial do Império Romano, no séc. IV, até o Concílio Vaticano II, principalmente após o Concílio de Trento, no séc. XVI, a Igreja se identificou com a disciplina. Trata-se de um tempo fundamentalmente clerical. Confinados em mosteiros, seminários, conventos e outras formas de isolamento do mundo, religiosos e clérigos se identificaram com uma vida mística e ascética. Combinavam mística, ascese e disciplina: uma espécie de vias da salvação. Os leigos, indisciplinados por natureza, não poderiam ser elevados às honras dos altares, pois viviam no mundo. Este era o lugar da perdição, dos indisciplinados.

            Até que o Espírito resolveu soprar e tornar a indisciplina a palavra de referência na vida de um Papa, que levado pelo mesmo Espírito, tomou a feliz e providencial iniciativa de realizar o Concílio Ecumênico Vaticano II, no século passado. João XXIII era um indisciplinado. Não gostava muito da vida cômoda e luxuosa de Pontífice. Vez e outra era pego vestindo-se e comportando-se como um fiel comum da Igreja: despojado das insígnias pontifícias, oriundas do paganismo dos imperadores da Roma antiga. O Papa bom, de olho nos sinais dos tempos, assumiu o risco de conduzir a Igreja ao aggionamento, à necessária atualização.

            Após Paulo VI e João Paulo I, as forças contrárias ao Concílio voltaram com toda a violência: um polonês chegou ao trono e um alemão foi eleito prefeito de um dos tribunais mais temidos de Roma: o antigo tribunal do Santo Ofício. Foi nomeado um alemão culto, educado, perspicaz, impiedoso e convenientemente omisso em muitos casos. Após mais de vinte e cinco anos de pontificado, morre o polonês numa exposição pública e midiática do sofrimento humano. Consequentemente, “santo súbito!”

Subiu ao trono o cardeal alemão. Fiel à política eclesiástica e ao plano de governo de seu predecessor, de repente, para a surpresa de todos, não dando mais conta do estado de tensão em que se encontrava a Cúria Romana, constituída por alguns santos e inúmeros pecadores perigosos, o alemão resolveu renunciar. Foi exaltado por quase todos. Ficou, contraditoriamente, com a fama de homem despojado do poder, ao qual sempre viveu apegado desde os velhos tempos da Baviera.  

Após longos anos de apelo à grande disciplina, como oportunamente escreveu o teólogo João Batista Libânio, SJ, em seu famoso livro A volta à grande disciplina (Edições Loyola, São Paulo, 1983), subiu ao trono, simplesmente, Francisco. Todos o observavam sem saber o que dizer, dada a simplicidade das palavras e gestos de um latinoamericano que após poucas palavras pede a bênção ao povo de Deus para seu pontificado. Os latinoamericanos, segundo os europeus, são uns indisciplinados. Nos seminários sempre se mencionava a dificuldade dos seminaristas latinoamericanos, diferentes dos europeus, considerados mais capazes à erudição e à disciplina. Visivelmente, em poucos dias, quebrando protocolos e inaugurando um novo jeito de ser Papa, Francisco tem mostrado que não é de disciplina que a Igreja precisa, mas de discernimento à luz do Espírito de Deus.

O Espírito e a disciplina eclesiástica

            Precisamos concluir esta reflexão com algumas provocações mais pontuais, à luz da pneumatologia pós-conciliar, que reconheceu a necessidade de se considerar a ação do Espírito Santo, esquecida até o Vaticano II. Meu velho mestre, Pe. José Comblin (in memoriam) dizia, profeticamente, que a Igreja se esqueceu dos pobres e do Espírito Santo, e se apegou ao poder. O Papa Francisco tem apontado o caminho do despojamento, tem convidado insistentemente a Igreja a ir às periferias do mundo, pois lá está Jesus. Ninguém será salvo pondo em prática a severa disciplina eclesiástica. A história mostra que esta serviu mais para afastar a hierarquia do povo do que cultivar na mesma hierarquia o espírito da verdadeira santidade. Guiados pelo Espírito, as santas e santos de Deus são indisciplinados: só obedecem a Deus, no Filho e na luz do Espírito.

            Visivelmente, os que se entregam à ação amorosa do Espírito não estão preocupados com o cumprimento da lei nem com a mera conservação das tradições, mas estão disponíveis, abertos, vivendo aquilo que o teólogo alemão Johann Baptist Metz, denomina de mística de olhos abertos (este é o nome de seu livro, recentemente traduzido e publicado pela Paulus. Vale a pena ler!). A Igreja de nossos dias carece de místicos de olhos abertos, de pessoas capazes de se deixar guiar pela misteriosa ação do Espírito de Deus. Os que vivem apegados à velha e ultrapassada disciplina devem saber que jamais darão conta de podar e controlar estes místicos.

Estes místicos, a exemplo de Dom Helder Câmara e tantos outros, são pessoas disciplinadas pelo Espírito: não dormem nem cochilam, estão no meio do mundo, encarnando o evangelho da vida e da liberdade. A experiência é indescritível. Somente quem ousa abandonar a velha disciplina é capaz de experimentar a ação do Espírito. Ser místico é nascer de novo, é não saber de onde veio nem para onde se vai. É um mistério de amor, ternura, liberdade e paz.


Tiago de França

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