domingo, 27 de outubro de 2013

O cristão, a autossuficiência e a indiferença

“Quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado” (Lc 18, 14).

            No evangelho segundo Lucas encontra-se a parábola do fariseu e do cobrador de impostos (cf. Lc 18, 9 – 14). Trata-se de uma parábola contada por Jesus para aquelas pessoas que “confiavam na própria justiça e desprezavam os outros”. Com estas palavras, o evangelista fala claramente dos destinatários da parábola: os que são autossuficientes e os que agem com indiferença em relação ao próximo. O texto fala que o fariseu e o cobrador de impostos subiram ao Templo para rezar. Os detalhes da maneira como ambos se comportam são reveladores. Vamos analisá-los.

A oração do fariseu

            De pé, o fariseu rezava assim no seu íntimo: “Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos. Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda”. A expressão “não sou como os outros homens” expressa a prepotência do fariseu: ele se achava melhor do que as demais pessoas. Além de julgar os ladrões, os desonestos e os adúlteros, apontava para o cobrador de impostos que estava em oração. Na época de Jesus, os cobradores de impostos não eram bem vistos.

            Em seguida, o fariseu expressa os motivos pelos quais se sente melhor do que os outros: “Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda”. Na época de Jesus, os fariseus eram famosos porque aparentavam ser observantes das leis de Deus. Juntamente com os doutores da lei interpretavam a lei para o povo. Ele fala de duas práticas tradicionais prescritas na lei: o jejum e o dízimo. Diante de Deus, queria justificar-se através delas, achando-se melhor do que os outros e desprezando os chamados pecadores públicos. Voltou para casa do mesmo jeito que veio: sem nenhuma justificação.

A oração do cobrador de impostos

            À distância e sem se atrever a levantar os olhos, batendo no peito, assim rezava o cobrador de impostos: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!” Esta oração agradou a Deus. O cobrador de impostos rezou com humildade, dirigiu-se a Deus reconhecendo-se pecador; entregou-se à misericórdia de Deus. A misericórdia é o segredo mais íntimo de Deus. Segundo Jesus, o cobrador de impostos voltou para casa justificado. Diante de Deus, não desprezou ninguém, nem se mostrou superior a quem quer que seja. Simplesmente, se confiou à infinita bondade e misericórdia de Deus, que acolhe e liberta integralmente o ser humano. A oração do cobrador de impostos revela a necessidade da íntima relação com Deus, pois sem Ele o ser humano não é nada, nem consegue nada.

Os fariseus e os cobradores de impostos de hoje

            Nas comunidades cristãs, independentemente da denominação religiosa, há pessoas autossuficientes. São aquelas que buscam as práticas religiosas, mas não confiam em Deus. São pessoas que confiam em si mesmas, julgam-se melhores do que os outros somente porque se esforçam em ser fiéis às práticas religiosas. São fiéis à religião, mas não são fiéis a Deus; adoram a Deus com os lábios, mas seus corações estão longe de Deus. No culto, ocupam os primeiros lugares, possuem boa aparência, algumas até angelicais, mas a mente e o coração só tramam maldade. São pessoas perigosas, cobras venenosas, que não perdem a oportunidade de fazer o mal ao próximo.

            No caso dos católicos, há muitos que comungam constantemente a Eucaristia, são devotos de Maria e dos santos, são dizimistas e amigos dos padres, fazedores de promessas e membros de grupos de oração e de pastorais, mas apesar de tudo isso são orgulhosos, egoístas, frios, autossuficientes e indiferentes. Estas pessoas amam a religião e se utilizam da mesma para a própria satisfação, para enganar o próximo e ainda ousam tentar enganar a Deus. Leem o evangelho, mas não o conhecem. Adoram um deus imaginário, que serve para satisfazer seus desejos. Isso vale tanto para muitos leigos quanto para muitos diáconos, presbíteros e bispos. No caso destes últimos, o apego ao poder e ao dinheiro os afasta de Jesus e os transformam em homens autossuficientes e insensíveis.

            No caso dos protestantes, há muitos que julgam conhecer a Palavra de Deus, fazendo leitura fundamentalista da mesma, utilizando-se dela para julgar e condenar o próximo. Rezam a Deus da mesma forma do fariseu da parábola: colocando-se superior aos outros. Pensam que as pessoas que não praticam a religião estão perdidas e amarradas por Satanás, e nem percebem que elas mesmas são agentes do demônio. Utilizam-se da boca e do escasso entendimento da Palavra de Deus para condenar o próximo e mostrar-lhe o caminho do inferno. Alguns líderes desviam seus fiéis da verdade evangélica, manipulando-os e roubando-lhes o pouco da renda que possuem para viver.

            No mundo secular, a situação é semelhante. Há mulheres e homens orgulhosos e autossuficientes somente porque possuem riquezas, ocupam cargos importantes que rendem muito dinheiro e prestígio. Outros se acham superiores aos outros somente porque são mestres, doutores e pós-doutores em alguma área do conhecimento humano, desprezando aqueles que não tiveram oportunidade ou porque não quiseram estudar. Outros, ainda, se julgam melhor dos que os demais porque gozam de privilégios, oriundos das estruturas injustas. Assim, o desrespeito e a humilhação do outro se tornam práticas comuns.

            Em outra ocasião, Jesus falou que se conhece a árvore pelos frutos que a mesma consegue dar, pois uma árvore boa não dá fruto ruim e vice-versa. A partir daí se conhece quem são os fariseus e os cobradores de impostos de hoje. É preciso rezar a Deus reconhecendo as próprias fraquezas e limitações, entregando-se a Ele, amando-o na humildade. É a graça de Deus que justifica o ser humano. Ninguém se justifica diante de Deus por ser religioso ou religiosa. As práticas religiosas tem sua utilidade, mas não justificam as pessoas diante de Deus.

Acima das práticas religiosas está a íntima relação com Deus, que se traduz numa oração sincera e humilde, e na prática amorosa do acolhimento do outro. A pessoa que reza humildemente a Deus recebe dele a graça de viver no amor e para o amor, pois o amor é o fim último da oração e da união com Deus. Deus é amor e a oração é um diálogo com o Amor que deseja fazer morada no orante, transformando-o numa pessoa amorosa e feliz. Quem verdadeiramente está unido ao Amor não sabe fazer outra coisa senão amar, incondicional e infinitamente.


Tiago de França

sábado, 19 de outubro de 2013

A oração e a justiça do Reino de Deus

“E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar?” (Lc 18,7).

            O evangelho segundo Lucas fala de uma parábola que Jesus contou aos discípulos “para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre, e nunca desistir”: estas palavras de Lucas explicam os motivos pelos quais a parábola é contada. Rezar sempre e nunca desistir: duas atitudes fundamentais na vida cristã. Na parábola (cf. Lc 18, 1 – 8) aparecem dois personagens: um juiz impiedoso, que não teme a Deus e não respeita homem algum e uma pobre viúva que, insistentemente, procura o mesmo juiz para fazer-lhe justiça. Cansado de ser procurado pela viúva, o juiz, depois de muito tempo, resolve fazer justiça. Jesus chama a atenção dos discípulos para o fato de que Deus, que não é um juiz injusto, faz justiça aos seus escolhidos e escuta o clamor dos desesperados e finaliza, perguntando: “o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?”

O juiz injusto

            De modo geral, os poderosos deste mundo são impiedosos, não ligam para a justiça, não temem a Deus e, por isso mesmo, fazem inúmeras pessoas sofrer. A ausência do temor a Deus torna-os autossuficientes ao ponto de se considerarem deuses, donos da própria vida e da vida dos outros. Nas três esferas do poder público (executivo, legislativo e judiciário) encontramos mulheres e homens que recebem altos salários, oriundos dos cofres públicos, sabem muito bem que não passam de funcionários públicos, portanto, deveriam estar a serviço do povo, mas comportam-se vergonhosamente, fazendo o povo sofrer, esperar e, em muitos casos, morrer.

            O Judiciário é lento e é estruturado para continuar sendo. Inúmeros operadores do direito fazem de tudo para que a justiça continue do jeito que está: absurdamente ineficaz. É também tendencioso, julga de acordo com as pessoas, tratando os ricos de forma diferenciada, acobertando seus crimes e perpetuando, assim, a impunidade. O executivo é omisso ao deixar a população desassistida em seus direitos e garantias fundamentais. Infelizmente, o povo sofre porque os direitos básicos não são assegurados (direito à saúde, educação, moradia, alimentação, segurança, transporte etc.). Estes e outros serviços são oferecidos de forma que para gozá-los as pessoas sofrem, demasiadamente. 
      
O legislativo também peca por omissão, principalmente porque tem a tendência de legislar em causa própria, beneficiando-se da prerrogativa da criação das leis, sendo que a maioria quando não é injusta, infelizmente não é posta em prática, servindo apenas para compor o denso ordenamento jurídico. No mundo da iniciativa privada encontramos os empresários com suas corporações empresariais, sedentos de lucro e tendenciosos quanto aos direitos de seus trabalhadores. As pessoas são lesadas em seus direitos trabalhistas e também no que tange à prestação de serviços. Tudo concorre para legitimar a exploração do homem pelo homem. Estas e tantas outras situações e contextos estão bem representadas pelo juiz injusto da parábola contada por Jesus.

A viúva insistente

            Em todos os tempos e lugares os pobres enfrentam a má vontade e a ambição dos poderosos. A luta cotidiana pela sobrevivência marca suas vidas. A esperança dos pobres é a mesma que guiou Jesus na sua caminhada neste mundo. Unidos a Jesus, os pobres constroem o Reino de Deus. Apesar do sofrimento, continuam firmes na caminhada. O Espírito do Senhor é a força que não os abandona jamais. Por isso, são fortes e ousados. Este auxílio divino se manifesta na simplicidade da vida que levam, nas palavras e gestos de solidariedade. Somente eles sabem o que realmente significa a solidariedade, pois os poderosos só conhecem e só podem conhecer o assistencialismo viciado pelos interesses. A solidariedade praticada pelos pobres é gratuita e verdadeira.

            A união faz a força e as lutas dos pobres para que a justiça prevaleça sobre a injustiça são provas claras dessa verdade fundamental. Os ricos se unem para garantir seus privilégios e os pobres se unem para lutar por justiça. Nunca se viu na história da humanidade uma reunião de poderosos em prol da justiça. Toda reunião que congrega os poderosos só tem um objetivo: pensar estratégias para evitar a própria ruína porque o maior medo deles é chegar a ser pobres. Tais estratégias não respeitam nem as pessoas, nem a natureza. Não há valor ético ou moral que impeça os poderosos de agir em prol dos próprios interesses. Os EUA são a maior prova disso: em nome de uma pseudodemocracia ceifam milhares de vidas humanas no Oriente Médio e em outras partes do mundo. Na verdade, o que desejam são as riquezas dos outros países, assim como a manutenção da hegemonia política. Querem dominar o mundo!

A importância da oração na luta por justiça

            Na vida eclesial há várias formas de oração, mas, de modo geral, ou a oração leva as pessoas a se afastarem do mundo e, portanto, a alimentarem uma fé intimista, ou ocorre o contrário, a oração é alimento para uma vida inserida no mundo. Inserir-se no mundo e viver o seguimento de Jesus não é coisa fácil. Somente quem está unido a Jesus é capaz de segui-lo. Isto parece óbvio, mas não é o que acontece em muitos casos. Não chega a lugar nenhum o discípulo de Jesus que deseja segui-lo sem a experiência da oração, pois é por meio desta que o seguimento torna-se possível.

            O seguidor de Jesus não é um discípulo de Aristóteles ou de Karl Rahner (grandes pensadores do mundo da Filosofia e Teologia, respectivamente), mas do Deus que se encarnou no mundo em Jesus de Nazaré. Seguir Jesus não é sucedê-lo na mera compreensão e exposição de suas ideias. Este é um desafio para estudiosos e curiosos, que não desejam aderir ao seu projeto. Seguir Jesus é, antes de tudo, encontrar-se com ele, fazer a experiência do encontro que muda definitivamente a pessoa e a transforma em missionária da palavra de Deus. Assim, a pessoa vai anunciar Jesus ao mundo a partir do encontro que teve com ele, levando outras pessoas a vivenciar a mesma experiência.

            A oração do missionário deve ser um reavivamento do encontro realizado com Jesus. Todo momento de oração é momento de encontro com ele, momento de confirmação, esclarecimento, reavivamento, reabastecimento das energias e convicções, momento fundamental para a missão. Não há missionário sem oração. A missão necessita de momentos de intimidade com Deus no alto da montanha, mas é preciso ter cuidado para não cair na tentação de permanecer na montanha, armando a tenda longe dos problemas da vida.

Neste sentido, a oração não é verdadeira quando afasta as pessoas do mundo, alienando-as. Quando isso ocorre, não temos oração, mas reunião de pessoas que buscam alimentar seus medos e egoísmos, desabafar as angústias e livrar-se do estresse. Não passa de pura sessão terapêutica! Portanto, a verdadeira oração impulsiona o missionário ao anúncio da palavra de Deus, palavra que liberta integralmente o ser humano e o coloca no caminho de Jesus, caminho da justiça do Reino de Deus.

Tiago de França

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Ser professor

           
               O dia 15 de outubro é dia do professor. É uma data que não pode ser esquecida. O papel do professor na educação, no desenvolvimento do ser humano e da sociedade é de grande valor, mas o que significa ser professor? Por que é tão desvalorizado em nosso país? Quais os desafios da profissão? Qual a maior virtude do professor? Vamos pensar estas e outras questões neste breve artigo em homenagem ao dia do professor.

Ser professor é uma questão de vocação

            Quem deseja ser professor sem pensar se tem vocação para desenvolver tão sublime missão está buscando sérios problemas para a própria vida. Mais do que isto, não conseguirá realizar-se na vida. A vocação do professor é belíssima porque se trata de alguém que se identifica com a troca de saberes e com o despertar para o conhecimento. Nenhum professor pode ousar dizer que conhece todas as coisas. A sabedoria do professor se encontra na arte de colocar-se ao lado do aprendiz, para juntos descobrirem e assimilarem o conhecimento. Assim, o professor não é aquele que sabe tudo, mas aquele que se antecipou no conhecimento de algumas coisas.

            Despertar nos estudantes a sede de conhecer: eis a missão do professor e sua virtude por excelência. Neste sentido, é bonito ver estudantes capazes de superar seus mestres, sem jamais esquecê-los. Em uma sala de aula, o professor desperta o interesse de seus estudantes e estes contagiados pelo ânimo e empenho de seus mestres são capazes de superar a si mesmos e se tornarem outros grandes mestres. O processo de ensino-aprendizagem é recíproco, processual, plural, orgânico e necessariamente dinâmico. A relação estudante-professor é imprescindível neste processo e deve ser pautada no respeito, na ajuda e na compreensão mútuas.

            O autêntico professor é aquele que gosta de ser professor, que se identifica com aquilo que faz, que realiza com empenho, gosto e satisfação. Quando tal profissão é vivenciada com amor tudo se torna menos pesado e mais feliz. A alegria do professor é sentir o interesse do estudante pelo conhecimento. A postura do professor influencia diretamente neste interesse. Com palavras e gestos, o professor é capaz de converter muitos estudantes em grandes figuras na sociedade. Portanto, os grandes profissionais, as mulheres e os homens de renome e aqueles que chegaram à realização de seus sonhos, certamente reconhecem o lugar fundamental do professor em suas vidas.

Críticas à realidade brasileira

            Infelizmente, temos que reconhecer que a educação nunca foi prioridade em nenhum governo da história brasileira. Desde as origens, a educação sempre foi marginalizada. É verdade que de uns tempos para cá, principalmente a partir do Governo Lula, assiste-se a certo aumento nos investimentos em educação. Apareceram também várias iniciativas, dentre as quais podemos destacar: aumento nos salários, novas escolas e universidades, investimentos na formação continuada dos professores, intercâmbio com universidades estrangeiras, maior acesso à universidade pública (Prouni, Sisu, Enem) etc.; mas tudo isto ainda é quase que insignificante diante dos inúmeros problemas que desafiam a educação.

            A violência nas escolas, a falta de respeito com o professor, as condições degradáveis de trabalho em algumas situações, o insignificante aumento de salário, a ausência de políticas públicas que sejam eficientes, os desvios de verba pública da educação, a carência de professores, a mercantilização da educação e tantos outros problemas nos indicam a gravidade da situação da educação no país. E o mais vergonhoso é assistirmos a violência com que o Estado se utiliza para conter as manifestações dos professores das escolas públicas, como foi o recente caso do Rio de Janeiro. Se a educação fosse prioridade, jamais haveria tantas greves de professores para reivindicação de melhorias e benefícios.

Uma utopia

            Apesar de tudo isso, é preciso sonhar. Outro Brasil só é possível através da educação. É por meio dela que nos despojaremos do famoso “jeitinho brasileiro”, que legitima todas as formas de corrupção; que o brasileiro vai aprender a votar conscientemente, elegendo mulheres e homens idôneos; que teremos profissionais mais capacitados para o exercício de suas funções, com honestidade e prudência; enfim, que os brasileiros aprenderão o que significa ser cidadão e, assim, a cidadania será uma realidade plausível e palpável.

O professor precisa continuar acreditando nas capacidades de seus estudantes e estes precisam acreditar em seus mestres. Onde não há credibilidade, o processo ensino-aprendizagem dificilmente se realiza com êxito. A educação precisa ser humanizada e transformada em ferramenta de transformação da sociedade; deve oferecer ao país mulheres e homens comprometidos com a justiça social e, portanto, com o bem comum. Educação não deve ser mera mercadoria, mas proposta de humanização das pessoas em vista de outro mundo possível. Por isso, neste dia 12 de outubro, viva a profissão mãe de todas as outras! Viva o professor!


Prof. Tiago de França

sábado, 12 de outubro de 2013

Maria e as crianças

“Fazei o que ele vos disser” (Jo 2, 5).

            O dia 12 de outubro é dia de Nossa Senhora Aparecida (para os católicos) e dia das crianças. É uma data muito significativa e que merece algumas reflexões. Vamos pensar a relação que há entre o significado da pessoa da mãe de Jesus e o das crianças, em vista de um mundo melhor. O dia de hoje nos traz uma grande lição: a de buscarmos ser cada vez mais atentos ao próximo, nosso irmão, em uma sociedade marcada pela indiferença e pelo esquecimento. Maria e as crianças nos remetem ao próximo, à importância do cuidado e do amor sincero e recíproco.

O que Maria nos ensina?

            No relato bíblico das bodas de Caná (cf. Jo 2, 1 – 11) Jesus se fez presente e Maria percebe que faltou vinho na festa. Então, recorre a Jesus e em seguida aos que serviam, falando o seguinte: “Fazei o que ele vos disser”. Conhecendo o filho que tinha, estas palavras de Maria soam como se ela quisesse dizer: “prestem atenção em Jesus e façam o que ele vos disser, pois o vinho novo vai aparecer”. A ação atenta e generosa de Maria fez com que Jesus oferecesse o vinho da solidariedade assegurando, assim, a realização da festa. Numa festa de casamento não pode falta o vinho, que alegra o coração, que promove a fraternidade, animando as pessoas.

            A partir das bodas de Caná da Galiléia podemos aprender com Maria a virtude da atenção. Pode parecer estranho, mas estar atento é virtude de poucos! O mundo atual é marcado pela dispersão e pela desatenção. De modo geral, as pessoas não prestam atenção umas às outras. Muitas pessoas e situações passam despercebidas. Por que isto ocorre? Qual a raiz deste mal? A raiz deste mal se chama egoísmo. Quando concentramos nosso olhar e nossa atenção em nós mesmos, facilmente nos esquecemos dos outros. Maria pediu para Jesus resolver o problema da falta de vinho porque ela pensou nos noivos e na festa. Ela pensou na alegria dos outros. O egoísta não pensa no outro e quando se recorda do outro é para buscar beneficiar-se em alguma coisa pensando, assim, em satisfazer suas próprias necessidades.

            Maria ensina-nos a voltarmo-nos para o outro, pois no encontro com o outro acontece o encontro com Deus. O mundo carece de relações verdadeiras, transparentes, humildes, desinteressadas, harmoniosas, felizes. As pessoas precisam aprender e recuperar o espírito da gratuidade. Onde estão os relacionamentos pautados na gratuidade? Por que as pessoas, mesmo sabendo que se trata de um mal, insistem em querer transformar o outro em mero objeto de satisfação de seus desejos? Isso é o egoísmo arraigado até as entranhas. Por que só lembrar-se do outro quando precisamos de algo? Basta de relações interesseiras! Quem pensa que segue Jesus, mas entrega-se ao egoísmo é mentiroso e não conhece o sentido e o alcance do amor generoso de Deus.

O que nos ensinam as crianças?

            Quem acredita em Jesus e conhece seu evangelho sabe muito bem o significado das crianças para a espiritualidade cristã. Vamos recordar para jamais cairmos na tentação da mania de grandeza, da soberba e do espírito de superioridade. A humildade e a pequenez da criança nos ensinam a sermos humildes e pequenos. A criança precisa da atenção e do cuidado dos adultos, sem os quais elas não conseguem sobreviver, pois são frágeis e pequenas. A criança necessita do cuidado e concede ao adulto a oportunidade de aprender a ser humilde por meio da prática da virtude do cuidado. Aprendemos com as crianças a cuidar do próximo. Sem discurso e sem moralismo, as crianças ensinam os adultos a se voltarem para o próximo. Por isso que Jesus falou que para participar do Reino de Deus é necessário ser como elas: humildes, abertas, disponíveis, alegres, pequenas.

            O mundo atual é marcado por um número incontável de pessoas que procuram a fama, o sucesso, o prestígio e o poder. De modo geral, as pessoas querem ser grandes, famosas, poderosas; desejam ser o centro das atenções, querem ser vistas, reconhecidas, aplaudidas. Nas universidades, os jovens sonham em se formar para alcançar os grandes postos, visando ganhar os maiores salários. No mundo empresarial, os empresários não se satisfazem com o que tem, mas almejam mais lucro, mais dinheiro, querem a hegemonia no mercado. Na religião, encontramos religiosos ambiciosos e sedentos de poder, fazendo de tudo para não perdê-lo. Iguais aos homens seculares, estes religiosos querem se manter no poder opondo-se, assim, ao evangelho de Jesus, que ensinou o oposto, o caminho do serviço.

            Muitos outros espaços poderiam ser mencionados. O que se percebe é que em todos eles o ser humano é cego, portanto, ignorante. O evangelho de Jesus é totalmente ignorado pela maioria, que só almeja a grandeza e o poder. Não adianta essas pessoas pensarem que enganam a Deus mantendo-se em seus desejos e ambições e, ao mesmo tempo, praticando atos de piedade na religião. Isso se chama farisaísmo. Os mestres da lei e fariseus assim viviam: procuravam o prestígio e o poder e, assim, exploravam as pessoas para garantir seus privilégios, e para não serem desmascarados em seus projetos ambiciosos se escondiam por trás de uma linguagem e estética religiosas. Atualmente, eles continuam agindo da mesma forma e, por incrível que pareça, conseguem enganar muita gente.

            Colocando a criança no meio e chamando a atenção de seus discípulos (cf. Mt 18, 2 – 5) para a importância da pequenez, Jesus mostra o verdadeiro lugar de seu discípulo. Ser pequeno não é sinônimo de anulação da personalidade ou desinteresse em construir uma personalidade autêntica e capaz; pelo contrário, ser pequeno é não alimentar em si mesmo a mania de grandeza, é procurar em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça. No caminho de Jesus, revelado pelas crianças, as pessoas assumem a pequenez, a humildade, o despojamento, a espontaneidade e a justiça; aprendem que Deus se encarnou na pobreza de Nazaré e se fez pequeno para confundir os grandes e para mostrar que seu Reino é dos pequenos.

Toda pessoa que almeja ser grande e poderoso não participará do Reino de Deus, pois neste não há lugar para os poderosos. Por que não há? Porque o poderoso só procura o poder e para conquistá-lo e manter-se nele, inevitavelmente, explora e mata os pequenos. No Reino de Deus não há lugar para os poderosos assassinos e exploradores, exceto para os que abandonam o poder, o prestígio e a riqueza e se tornam, assim, na verdade e na liberdade, como as crianças: pequeno, humilde, despojado, disponível, aberto e justo.  Não há meio termo, mas adesão a uma das duas alternativas propostas por Jesus: ou permanece no caminho do poder e, portanto, do egoísmo, ou abraça a conversão à pequenez das crianças tornando-se, dessa forma, membro ativo do povo de Deus e de seu Reino. Fora desta conversão não há salvação possível.


Tiago de França

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O testemunho de Santa Terezinha do Menino Jesus

“Eu não me arrependo de ter me abandonado ao amor” (Santa Terezinha).

            Não é meu forte escrever sobre a vida das santas e santos de Deus, mas alguns deles merecem nossa atenção. Neste dia 1º de outubro, a Igreja celebra a memória de Santa Terezinha do Menino Jesus. Não quero falar dos traços biográficos da vida desta grande mulher, apenas acenar para o essencial de sua vida: seu abandono ao amor. A vida de Santa Terezinha responde a seguinte indagação: O que significa abandonar-se ao amor? Para situá-la na história, seu nome era Marie Françoise Thérèse Martin. Nasceu em Alençon, em 02 de janeiro de 1873 e faleceu em Lisieux (França), no dia 30 de setembro de 1897. Pelas datas percebemos que viveu muito pouco, faleceu aos 24 anos, acometida pela tuberculose.

            Desde pequena era uma menina frágil, necessitada de cuidados. Após ter conseguido a devida licença, devido à idade, conseguiu ingressar no Carmelo (Ordem Carmelita). A pequena Terezinha teve audiência até com o Papa Leão XIII, dada sua vontade de ingressar na vida de clausura. Ingressou na clausura aos 15 anos de idade. A história mostra que ela ingressou no tempo certo. Na clausura, Teresinha encontrou muitas dificuldades, as famosas dificuldades da vida religiosa em comunidade. Com o passar do tempo foi conquistando o respeito e a admiração de suas coirmãs e de todos quantos tinham acesso à sua amável pessoa. Gostava de pensar, rezar, pintar, escrever, contemplar.

            Após estes breves comentários sobre sua vida, que podem ser verificados nas inúmeras biografias disponíveis, vamos pensar sobre o sentido da indagação que fizemos acima: O que significa abandonar-se ao amor? Abandonar-se é sinônimo de entregar-se. Isso exige disponibilidade. Para entregar-se, a pessoa precisa estar livre, disponível. Impulsionada pelo chamado que Jesus lhe fez, Terezinha se entregou por inteira, sem reservas, ao amor. Entregue a Jesus, ela experimentou o sentido e o alcance da amizade com Deus. Terezinha se tornou uma amiga de Deus, tornou-se íntima do Amado, uniu-se definitivamente a Ele. Nela, a Trindade fez sua morada. Assim, Terezinha descobriu o sentido da vida, tornou-se participante da vida divina. Estava com Deus e Deus estava nela.

            Isto é ser místico, é ser contemplativo. Trata-se de uma experiência pessoal, indescritível. Os escritos de Terezinha mostram seu esforço em tentar traduzir o que sentia, o que via, o que experimentava (cf. Histórias de uma alma). Ela experimentou a verdadeira alegria e paz concedidas pelo Espírito. Terezinha sentiu verdadeiramente a presença de Deus em seus membros, em seu ser, no mais profundo de si; descobriu o que significa ser inundada pela graça amorosa de Deus. Jesus mostrou para ela, com toda clareza e certeza, a capacidade e a profundidade do amor de Deus, amor restaurador, libertador, santificador. Totalmente entregue a Deus, Terezinha vivia tranquila, serena, em paz. Sua alma era radiante de alegria, de doçura e de amor. As pessoas que tinham acesso a ela ficavam admiradas e tomadas por aqueles sentimentos de serenidade e pureza.

            O amor é a palavra que explicita a espiritualidade de Terezinha. Vivia tomada pelo amor. “Eu não me arrependo de ter me abandonado ao amor”, foi o que disse poucos momentos antes de morrer. Neste sentido, foi autenticamente evangélica. Tornou-se uma discípula de Jesus, pois o amor, que está acima de todas as prescrições religiosas, é o centro da espiritualidade cristã. Este amor santificou Terezinha e a transformou em um exemplo de mulher livre, serena e entregue ao Amado. Segundo ela, tudo passa, somente o amor permanece para sempre. Não podemos acrescentar nada à vida de Terezinha. Em tudo está o amor e dele ninguém escapa, porque somos chamados para viver no amor.

            Para o mundo e para a Igreja de nossos dias, marcados pela indiferença e pelo desamor, recordar o testemunho de Terezinha é recordar que o amor deve ser o centro da vida cristã. Isto significa que para ser salvo o cristão precisa experimentar esta entrega ao amor, uma entrega sem reservas, sem medo de ser feliz. Como o mundo seria diferente se as pessoas colocassem o amor no centro de suas vidas! O egoísmo e a indiferença não mais existiriam. Como a Igreja seria diferente se seus membros colocassem o amor no centro de suas vidas e de suas práticas religiosas! A hipocrisia e o farisaísmo não mais existiriam. Feliz a pessoa que se deixar conduzir pelo amor! Somente assim conhecerá o que significam a liberdade e a salvação, participando da intimidade com Deus, vivendo com Ele e n’Ele agora e por toda a eternidade.


Tiago de França