terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Natal de Jesus


“E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14).

Amigos e amigas, irmãos e imãs em Cristo Jesus,

Graça e paz!

Não poderia deixar de vos escrever por ocasião desta importante data: o Natal do Senhor. Trata-se de uma boa ocasião para pensarmos a respeito de nossa fé na encarnação do Verbo divino em nossa vida e na vida do mundo. Se perdermos o sentido do Natal não vale a pena celebrá-lo, pois o mesmo não tem nenhuma ligação com a propaganda, o comércio, o papai Noel e com o consequente consumismo que tudo isso envolve. Jesus não pode ser substituído por estas coisas. A alegria do Natal não é a alegria proporcionada pela troca de presentes, mas a que é experimentada pela Boa Notícia da encarnação de Jesus na vida do povo de Deus.

O que Jesus veio fazer neste mundo?

Jesus não veio simplesmente fazer alguma coisa. Ele não era representante autorizado do Pai, mas na qualidade de Filho amado foi enviado com a missão de fazer-se presente na vida do povo, despertando a esperança, cumprindo as promessas feitas na antiga aliança. Jesus se tornou companheiro dos pecadores e auxílio dos fracos e oprimidos, vivendo a condição simplesmente humana dos pobres. A encarnação de Deus no mundo acontece na humildade e na pobreza da vida do povo de Deus. Portanto, Jesus assumiu com todos os riscos a vida humilde de seu povo, opondo-se, consequentemente, ao poder opressor que desumaniza o ser humano.

A celebração do Natal é a celebração da esperança e do abraço misericordioso de Deus. O Pai de Jesus, o Deus dos pobres e do povo sofredor, não abandona seu povo, mas vem ao seu encontro. Trata-se de um encontro alegre, radiante, consolador. O povo reconheceu em Jesus a presença amorosa de Deus e Jesus revelou o verdadeiro segredo de Deus: sua infinita misericórdia. Na acolhida, no partir do pão, no perdão e na convivência fraterna, Jesus mostrou que Deus não é uma divindade distante, mas é o Paizinho, que acolhe, perdoa, compreende, ajuda, consola, redime, ama e salva seu povo. Assim, a celebração do Natal nos chama a vivermos esta esperança: a de crermos que outro mundo é possível por meio da prática do amor e da justiça do Reino de Deus.

As pessoas precisam redescobrir o sentido do Natal. Esta data não pode se repetir anualmente sem nenhuma repercussão prática na vida cristã; do contrário, voltará a ser uma festa pagã. Para muitos, o Natal é a celebração da força mercadológica. Jesus é substituído pelo mercado, que oferece muita comida, bebida, presentes e excessos oriundos da mistura de tudo isso. Os cristãos precisam gritar ao mundo a alegria da vinda de Deus, de sua morada definitiva entre nós. Acolher o Emanuel que vem é abrir o coração para a prática do amor e da justiça. Isto, sim, é celebração do Natal. Quando as pessoas abrem o coração para acolher Jesus a vida se transforma, o grande encontro acontece e o outro mundo possível se torna realidade. Isto é conversão. O Natal converte as pessoas em discípulas missionárias do Verbo encarnado na história.

O Natal na Igreja e a Igreja no Natal

Neste ano que aos poucos termina, a Igreja está vivendo um tempo de graça e de alegria. Com muita esperança chegou à Igreja de Roma o bispo Francisco. Na qualidade de responsável pela unidade de todas as Igrejas particulares que formam a Igreja Católica no mundo, Francisco tem despertado a esperança nos corações de muitas pessoas, dentro e fora da Igreja. Em plena sintonia com o santo de seu nome, tem levado a Igreja ao encontro do evangelho de Jesus. Finalmente, após um período de muita perseguição e retrocesso, que marcou os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, apareceu um bispo que está tentando recolocar o evangelho de Jesus no centro da vida eclesial.

Durante muito tempo o evangelho ficou à margem na vida da Igreja. Colocaram no centro os interesses meramente mundanos, representados pela busca do poder, do prestígio e da riqueza. Em nome desta busca se pagou e até hoje se paga um alto preço, o do descrédito e o da descrença. Mesmo assim, a graça de Deus não abandonou os corações humanos e o evangelho de Jesus não perdeu a sua força, pois muitas mulheres e homens, no silêncio e na periferia do mundo, continuaram vivendo conforme os valores evangélicos do amor e da justiça do Reino de Deus. Nesta hora presente e oportuna da história, Francisco, bispo de Roma, tendo aprendido a ler os sinais dos tempos e do Reino, está, insistentemente, chamando a atenção da Igreja para a centralidade do evangelho de Jesus na vida cristã e eclesial.

Não há encarnação de Jesus sem adesão ao seu evangelho. O culto e a religião não compreendem nem experimentam a encarnação de Jesus sem adesão ao evangelho. É este e não a doutrina, o culto e a lei que leva o ser humano à divina e arriscada experiência do amor de Deus. A religião sem o evangelho se transforma em instrumento de conformismo e de acomodação ao espírito do mundo, que aliena e mata as pessoas. O evangelho aponta para a libertação integral, leva as pessoas à ação, que acontece no encontro feliz e generoso, na doação e na promoção da justiça e da paz. A esperança cristã é histórica e escatológica, ou seja, acontece no aqui e agora da história rumo à plenitude do Reino de Deus. Ungidos pelo evangelho de Jesus o novo se torna realidade em nossas vidas e tudo aquilo que é sinônimo de prisão e força do anti-Reino desaparece definitivamente.

O Espírito e a encarnação

Sem o auxílio da graça de Deus caímos facilmente no egoísmo. Com suas próprias forças e inteligência o ser humano consegue fazer muita coisa, mas é incapaz de entrar em sintonia com Deus e experimentar o evangelho da vida e da liberdade. Sabendo disso, o Pai e o Filho enviaram o Espírito Consolador, o Paráclito. Este Espírito age a partir do íntimo de cada pessoa. Não é dado pela religião nem se enquadra em sistema religioso algum. É pura liberdade. É pura ternura de Deus. É o Espírito de Deus que nos torna capazes de Deus. Em outras palavras, a acolhida, a compreensão, a assimilação da mensagem e a vivência humilde e cotidiana do evangelho só são possíveis por meio da ação amorosa do Espírito de Deus.

Este Espírito arranca as impurezas do nosso coração de pedra e transforma este coração em terra boa e frutífera. O mundo e a Igreja precisam urgentemente de pessoas de coração de carne, humildes, amorosas e misericordiosas, que sejam ousadamente generosas e compassivas. É o Espírito que nos converte a Jesus. As doutrinas religiosas nos convencem de algumas verdades da fé, mas é o Espírito que nos concede o dom da fé e nos revela todas as coisas. Este Espírito nos faz conhecedores e participantes do mistério da encarnação de Jesus. Sem o Espírito não há encarnação nem salvação. Só compreenderemos o real sentido do Natal a partir do Espírito do Senhor, abrindo-nos, sem medo nem reservas, à sua ação silenciosamente amorosa e feliz.

Assim, amigos e amigas, irmãos e irmãs em Cristo Jesus, vos desejo um Feliz Natal e um novo ano cheio de alegria e paz. Receba meu fraterno e afetuoso abraço e minha prece. Abramos nosso coração à ação do Espírito, a fim de que nos livre do vazio existencial que tem levado tanto gente ao desespero e à morte. É este Espírito que nos sustenta em nossas tribulações e alimenta nossa esperança na caminhada rumo ao Pai. Que a bênção do Pai, o amor de Jesus e a força do Espírito permaneça sempre conosco!

Fraternalmente, no Irmão Jesus,
Tiago de França da Silva
Desde Belo Horizonte – MG, 16/12/13.


sábado, 21 de dezembro de 2013

Deus conosco

         
            Vivemos em um mundo marcado pelo sofrimento, que é causado por inúmeras injustiças. Há muitas pessoas padecendo em situações desesperadoras. Diante do sofrimento, mesmo as pessoas de fé se encontram abaladas, tentadas a abandonar a fé em Deus, pois se perguntam: “Se Deus existe, por que estou sofrendo tanto?” A pergunta em torno da origem e do significado do sofrimento humano é complexa.

O que a experiência de Jesus nos assegura é que Deus não é a origem nem a causa do sofrimento que assola a humanidade. O fato de Jesus ter abraçado o caminho da cruz não justifica a ideia de um Deus oferece o sofrimento como caminho da perfeição. Assim se pensava na Idade Média, mas de uns tempos para cá estamos redescobrindo que Deus é amor, Pai amoroso que não se compraz com o sofrimento humano.

            Jesus não fez uma opção pelo sofrimento, pois não era masoquista. O sofrimento fez parte de sua vida por causa de sua opção pelo Reino de Deus. Jesus foi vítima das incompreensões, perseguições e da malícia daqueles que se opuseram à mensagem central do evangelho: a realidade do Reino de Deus. Não se trata do mero conflito entre a força de Deus e a de Satanás, como muitos pensam e pregam, mas da inauguração conflituosa do Reino de Deus. O anúncio desta Boa Notícia gera conflitos entre os que acolhem e os que rejeitam Jesus e sua mensagem. O conflito é inevitável. Mais do que isto, o mesmo é necessário.

            Antes de Jesus, Deus era concebido como o Altíssimo, o Todo-poderoso que estava nas alturas dos céus. Seu nome era impronunciável e sua ira era terrível e demolidora. Geralmente, as pessoas tinham medo do Altíssimo, o Senhor dos Exércitos. Chegada a plenitude dos tempos, o tempo escolhido e marcado por Deus desde a criação do mundo, o Altíssimo desce, vem ao encontro, encarna-se, torna-se homem, plenamente humano, pequeno, pobre, indefeso e pobre. Deus se tornou perfeitamente humano. Encarnado na história humana, Deus assume, plena e definitivamente, a condição humana.

            Depois de Jesus, Deus é com a gente, presente, consolador de seu povo. Os pobres, os injustiçados, os esquecidos e marginalizados, as vítimas do sistema capitalista selvagem, os condenados pela religião, os pecadores públicos, enfim, todos os sofredores deste mundo, independentemente de sua cultura, crença, sexo e condição social são abraçados pela bondade, pela ternura e pela misericórdia do Deus que quis salvar a humanidade inteira, sem se esquecer nem excluir ninguém.

Na relação conflituosa e dolorosa entre opressor e oprimido, em Cristo Jesus, Deus escolhe libertar o oprimido e, assim, também liberta o opressor. Os oprimidos de todo tempo e lugar encontram em Deus o seu refúgio e sua segurança, a liberdade, a felicidade e a vida plena. Enraizados nesta esperança, os pobres e oprimidos não caem no desespero e caminham com firmeza rumo à liberdade e à vida. E a força divina, misteriosa e amorosa, jamais abandona seu povo, tornando-o forte e vitorioso.  

A celebração do Natal de Jesus na liturgia da Igreja é a celebração do memorial da encarnação do Deus fiel, que jamais abandona seus filhos e filhas, de um Deus que é Pai e Mãe de bondade, que consola, acalenta, anima e concede a sua graça a seu povo, a fim de que este continue firme em meio às adversidades da vida presente, rumo à plenitude de seu Reino. Esta é a alegria do Natal. Este é seu significado. Caminhamos com Deus e Deus caminha conosco. Nada poderá nos tirar esta alegria e salvação. Estamos mais que seguros no abraço acolhedor de Deus, estamos revigorados, mergulhados Nele e salvos.

Tiago de França

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A essência do Cristianismo

           
             A ideia de essência nos remete ao núcleo de alguma coisa, aquilo de mais profundo e verdadeiro que existe, ao centro. A pergunta pela centralidade da vida cristã e, consequentemente, do Cristianismo deveria ser levada mais a sério pelos cristãos, pois com muita facilidade se marginaliza o essencial e se centraliza o secundário. Vamos entender o essencial e o secundário na vida cristã e no Cristianismo a partir da experiência de Jesus de Nazaré.

O essencial

            A partir da experiência de Jesus, o pobre de Nazaré, podemos assegurar que ele mesmo é o centro da vida cristã: ele é o caminho, a verdade e a vida. A princípio, todo cristão sabe disso, mas, geralmente, não aceita nem vive conforme esta verdade. Quais as implicações existenciais da afirmação de que Jesus é o centro da vida cristã? Inicialmente, é preciso considerar a imutabilidade da centralidade de Jesus. Em outras palavras, independentemente de qualquer coisa, Jesus foi, é e continuará sendo o centro da vida cristã. É uma realidade que não muda, apesar da resistência de muitos. E quem é Jesus? É a encarnação do próprio Deus no mundo, Deus que é amor.

            Afirmar que Jesus é o centro da vida cristã significa que o secundário não pode ocupar o seu lugar. Então, se Jesus é o centro, o que é o secundário? Tudo aquilo que radicalmente se opõe a Jesus, que busca impedir sua centralidade, que desfavorece a vida humana, que é oposto ao seu projeto salvador. Falar em projeto é falar de algo essencial da centralidade de Jesus, pois há o grave risco de se aceitar a Jesus sem nenhuma referência ao seu projeto, que é o Reino de Deus. Quem aceita Jesus e se recusa a crer e se colocar a serviço do Reino de Deus está cometendo uma profunda contradição. Jesus e o projeto do Reino formam o essencial da vida cristã e são inseparáveis.

            Os primeiros cristãos souberam entender esta realidade, pois colocaram Jesus no centro de suas vidas e se tornaram, de fato, sal e luz do mundo. Converteram-se porque se colocaram no caminho de Jesus e nele perseveraram até as últimas consequências. Não se deixaram desviar pela busca do poder, do prestígio e da riqueza, mas viveram a alegria do Evangelho, testemunhando-o no mundo. Esta fidelidade à mensagem de Jesus foi e continua sendo causa de muitas perseguições e mortes. Unidos a Jesus e doando suas vidas por causa do Evangelho alcançaram a liberdade, a felicidade e a vida plena.

O secundário

            Com o passar do tempo e a evolução da cultura, o Cristianismo foi se transformando em uma religião complexa e poderosa: complexa no aspecto doutrinal e litúrgico (dogmas, leis, rituais etc.) e poderosa porque acumulou muita riqueza, prestígio e poder. Todo o período da Idade Média é a maior prova disso: a Igreja assassinava pessoas para manter seus privilégios e riquezas. Hoje ela não mata, pois não é mais possível fazer como fazia. Hoje seus meios são outros.

            O secundário é tudo aquilo que é criação humana, que é fruto da cultura e que o ser humano tende a absolutizar: doutrinas, dogmas, leis, normas, rituais, riqueza, prestígio, poder, estruturas etc. Tudo isto é criação humana. Jesus não criou nada disso nem o Espírito pode ser é a causa da criação destas coisas. Todas são passíveis de mudanças e podem acabar; são finitas, imperfeitas e, às vezes, desnecessárias. O poder, o prestígio e a riqueza são o joio no meio do trigo. Doutrinas, leis e rituais podem ser tolerados, mas jamais absolutizados, pois Deus é o Absoluto.

            A história do Cristianismo mostra com clareza a tendência do homem religioso em absolutizar ideias, doutrinas, leis e rituais. Jesus e o Evangelho foram postos de lado, cedendo o lugar para a busca do poder, do prestígio e da riqueza. Em torno dessa busca, criaram-se doutrinas, dogmas, leis e rituais de toda sorte, sem nenhuma fundamentação evangélica. O Espírito do Senhor, que age na liberdade e para a liberdade, foi esquecido e passou a ser invocado somente para legitimar tudo o que se foi criando para a manutenção do poder na Igreja.

            Na hierarquia da Igreja há pessoas para tudo: uns se consagram em função do poder, enquanto outros optam pelo serviço evangélico. No momento da consagração, todos falam de serviço, mas é mentira. Os que se consagram para servirem ao poder se tornam os funcionários do sagrado e da religião, e se ocupam do secundário. Estes desconhecem o Evangelho. Só entendem da letra, mas desconhecem o espírito que está por trás da letra. Não possuem nenhuma experiência de Deus. Suas bocas falam de Deus, mas seus corações estão distantes; possuem aparência angelical, mas são lobos ferozes, demônios encarnados.

            Os que se consagram verdadeiramente ao serviço do Senhor e do seu povo são os discípulos missionários de Jesus, pastores e profetas do Reino de Deus. Estes possuem uma profunda comunhão com Deus e esta unidade com a Trindade é que os sustenta na missão. Alguns estão na hierarquia, mas a maioria está no laicato. Quer estejam na hierarquia ou no laicato sofrem muitas perseguições, muitos são brutalmente assassinados. Alguns são assassinados dentro das comunidades cristãs por pessoas que aparentam muita piedade. Os consagrados ao serviço do Senhor e seu povo são testemunhas da ressurreição de Jesus, pessoas livres que vivem em função da liberdade do gênero humano.

Restaura a Igreja, Francisco!

            Não poderia concluir estas provocações sem fazer referência ao tempo de graça e salvação vivido nesta hora oportuna da história da Igreja. O Espírito do Senhor ungiu um bispo e o fez chegar à cobiçada cadeira de Pedro, o pescador de homens. Seu nome é Francisco e como o de Assis, do séc. XIII, ele não está perdendo tempo. Antes que seus coirmãos rasguem a regra de vida e tentem impedir a transformação necessária, Francisco fala da alegria do Evangelho porque está consciente da força transformadora desta alegria. Rodeado por pessoas tristes e ambiciosas, Francisco grita ao mundo a palavra de Jesus contida no Evangelho da vida e da liberdade.

            As pessoas riem, choram, admiram e se preocupam. Conhecendo a história da Igreja, muitos perguntam-se: “Quando será a hora que vão tirar a sua vida?”... Francisco, orante e sereno, não está preocupado com a própria vida, mas está com os olhos fixos em Jesus, está acordado, alegria e disposto. Os fariseus hipócritas, desde as bases até a cúpula, estão preocupados, pois são inimigos da cruz de Cristo, mas nada podem fazer porque ninguém e força alguma neste mundo conseguem dar conta de segurar a ação amorosa, forte e transformadora de Deus, que opera neste mundo em favor de seus pobres, por meio da voz e da força dos braços de seus ungidos. Restaura a Igreja, Francisco!


Tiago de França

sábado, 7 de dezembro de 2013

Maria: serva do Senhor

“Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38).

            Neste domingo a Igreja celebra, dentro do tempo do advento, a Solenidade da Imaculada Conceição de Maria. Trata-se de um dogma proclamado pelo papa Pio IX, em 8 de dezembro de 1854. Muito antes desta data, muitos católicos já veneravam a mãe de Jesus como a imaculada conceição, ou seja, concebida sem a mancha do pecado original.

A partir de uma mariologia pós-conciliar, a reflexão em torno deste dogma passa pela imagem de Maria contida no evangelho, pois tal dogma não tem nenhuma fundamentação bíblica. Portanto, o mais interessante não é querer saber se Maria foi ou não concebida sem a mancha do pecado original, mas em aprendermos com ela a sermos discípulos missionários de Jesus.

Movimento inverso

            O dogma da imaculada conceição não leva em consideração a serva do Senhor, mas cria no imaginário popular a ideia de que Maria foi escolhida e, por isto, é maior do que as demais mulheres, possuindo, assim, um privilégio especial. A partir das Escrituras, podemos assegurar que não há privilégio algum. Afirmar isso não diminui em nada a figura de Maria e sua participação no projeto de Deus.

Qualquer excesso na devoção precisa ser corrigido, a fim de que Maria não deixe de ser a serva do Senhor. Ela não é uma deusa nem mediadora entre Deus e as pessoas, mas, tendo aceitado a missão de ser a mãe de Jesus, participou ativamente da ação misericordiosa de Deus que veio salvar o seu povo. Ela se tornou missionária da Palavra de Deus, pois acreditou nesta Palavra e por meio dela foi salva, juntamente com o povo de Deus.

Crer e colocar-se a serviço

            A partir do evangelho constatamos que em Maria há uma íntima ligação entre crer e servir. Para crer é preciso encontrar-se com a Boa Notícia. Esta desperta para o amor. Convivendo com Jesus e educando-o na fé de seu povo, Maria aprendeu a ser a humilde serva do Senhor. A salvação acontece por meio da humildade e do serviço. Transformada pela Palavra de Deus, Maria se abriu à ação amorosa da graça de Deus e se tornou portadora da Boa Notícia do Reino.

            Seu exemplo é o de mulher servidora, que tendo compreendido o sentido e o alcance da ação de Deus em sua vida e na vida de seu povo, tornou-se modelo de doação ao próximo. Ela quis fazer a vontade de Deus, que foi aos poucos sendo compreendida, na medida de sua fidelidade à missão recebida. Crer é fazer a vontade daquele que chama e envia.

Crer é mais do que ouvir e proclamar com a boca a bondade e a misericórdia de Deus; além disso, é preciso fazer a experiência da escuta e da proclamação da Palavra. Experiência é vida, é sentir no cotidiano Deus agindo segundo seus desígnios. Maria era “cheia de graça” e “bem-aventurada” porque experimentou a bondade e a misericórdia de Deus no encontro feliz e generoso com o próximo.

Celebrar a imaculada conceição não é recordar a nefasta herança do pecado original. Não podemos perder mais tempo pensando neste evento inicial, mas é preciso, urgentemente, tendo Maria como modelo, procurarmos servir às vítimas dos gravíssimos pecados estruturais que assolam a humanidade, ajudando-as em seu processo de libertação. Recordando outro grande exemplo, o de Nelson Mandela (1918 – 2013), que não passou seus 95 anos pensando em si mesmo, mas sendo protagonista da libertação de seu povo, a Igreja precisa, definitivamente, ser como Maria, como Nelson Mandela e tantas outras testemunhas da libertação integral do ser humano, serva dos servos de Deus.


Tiago de França

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A reforma da Igreja

         
         Com muito entusiasmo, as pessoas tomam conhecimento da persistência do Papa Francisco na tentativa incansável de reformar a Igreja. Recentemente, o Papa publicou sua primeira exortação apostólica, intitulada Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho). Ainda não tive tempo para me debruçar sobre ela, mas as primeiras palavras da mesma merecem nossa atenção: “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida daqueles que se encontram com Jesus”. Vamos ousar algumas ideias a partir destas palavras do Papa.

A alegria do Evangelho

            Desde o início do seu pontificado o Papa vem chamado a atenção da Igreja e do mundo para a importância da alegria. De fato, diante de tanto sofrimento, a alegria merece o seu lugar na vida humana; mas a alegria da qual fala o pontífice não é a alegria meramente mundana, oriunda do mero desfrute dos prazeres, mas se refere à perfeita alegria, da qual também falava São Francisco de Assis. A perfeita alegria o mundo não consegue dar, pois ela não é passageira, e traz consigo a paz. Quem goza da perfeita alegria não perde o bom humor e sempre está em paz consigo mesmo, com os outros e com Deus.

            O cristão precisa ser uma pessoa alegre. Por meio de palavras e gestos é chamado a transmitir a alegria da ressurreição de Jesus. Como tão bem tem lembrado o Papa, Jesus era um homem alegre. A tristeza leva ao desânimo e este engessa a pessoa, tirando-lhe a alegria de viver. Mesmo que a vida nos pareça difícil e pesada, é preciso permanecer no espírito da verdadeira alegria, aquela alegria que animou Jesus na missão, no encontro com as pessoas. Pessoas alegres tornam o mundo melhor, pois a alegria interfere positivamente nas relações interpessoais.

            A Boa Notícia de Jesus possui em si mesma uma alegria radiante porque liberta as pessoas de toda espécie de prisão. Quem está preso está triste, desolado, sem estímulo para viver. Chamado à liberdade, o ser humano reencontra a alegria quando livre das forças que provocam a morte. Esta liberdade somente é obtida por meio do anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus. Portanto, a reforma da Igreja desejada pelo Papa e por tantos cristãos está intimamente ligada à alegria do Evangelho. Cristãos tomados por esta alegria são verdadeiramente capazes de aderir ao projeto do Reino de Deus anunciado por Jesus.

A conversão do coração

            Nestes dias estive lendo algumas homilias do Papa. Ele fala com convicção e com alegria. Suas palavras vem de seu coração. Então, me recordei de um pensamento do famoso jesuíta Anthony de Mello: “A religião não é uma questão de rituais ou estudos acadêmicos. Não é um tipo de culto ou de boas ações. Religião é uma questão de arrancar as impurezas do coração. Este é o caminho para encontrar a Deus”. Rituais, estudos acadêmicos, culto e boas ações: desde sempre o ser humano reduziu a religião a isso. Portanto, o essencial foi esquecido. Passaram-se séculos de apego ao secundário.

            Quem realmente se interessa em arrancar as impurezas do próprio coração? Por que as pessoas resistem a isso? O que fazer para alcançar esta graça? Anthony de Mello, SJ, em sua vasta obra espiritual aponta o desapego como caminho para a libertação interior, para que seja possível arrancar as impurezas do coração. De fato, compreendendo o que significa o desapego, este parecer ser o único caminho que conduz à verdadeira liberdade. Jesus ensina no Evangelho que o que torna o homem impuro não é o que entra no ser humano, mas o que sai dele. Assim sendo, toda pessoa possui impurezas que precisam ser arrancadas. Eis a questão da religião.

            Essas impurezas do coração nos tornam agentes das forças de morte que operam no mundo. Elas nos conduzem ao mal, à ofensa a nós mesmos e ao outro; transformam-nos em pessoas calculistas, oportunistas, egoístas, falsas, desonestas, mentirosas, arrogantes e dissimuladas. Há uma tendência de maquinar o mal contra o outro e uma falsa alegria em vê-lo destruído. A situação pecaminosa do ser humano é tão lastimosa que há pessoas que sentem prazer em ver seu semelhante destruído, humilhado, desorientado, aflito, desesperado e morto. Isso precisa ser arrancado de dentro de nós.

Precisamos nos libertar desta cruel tendência em levar o próximo à desgraça. Esta e tantas outras impurezas somente desaparecem quando nos desapegamos de nós mesmos e de tudo o que existe neste mundo. A raiz da ofensa ao outro está na busca de nossos interesses mesquinhos. Isso se chama egoísmo. Quando procuramos prejudicar nosso semelhante estamos, na verdade, procurando alguma satisfação, estamos querendo ganhar alguma coisa em troca. Sempre foi assim e enquanto o desapego não for o caminho a ser trilhado, a situação, infelizmente, vai continuar sendo a mesma.

A Igreja precisa de mulheres e homens que ousem fazer a reforma do coração, pois sem esta não é possível reformar nenhuma espécie de estrutura. A reforma da Igreja passa pela reforma do coração, e reformar o coração significa arrancar as suas impurezas. Neste sentido, o que o Papa está propondo é o que Jesus exortou no seu Evangelho: convertam-se e creiam no evangelho! Sem esta conversão, que passa pelo coração, não é possível reforma alguma. Aliás, precisamos mais de que uma reforma, precisamos de rupturas! Estas exigem coragem e determinação para serem realizadas, mas antes é preciso alegria e desapego para que haja libertação do medo, do egoísmo e das diversas formas de apegos que nos aprisionam. Que o Espírito do Senhor nos ajude com sua força.


Tiago de França