“Porque
eu vos digo, se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da lei
e dos fariseus, vós não entrareis no reino dos céus”
(Mt 5, 20).
A discussão em torno da importância da lei em consonância
com o cumprimento da vontade de Deus é muito interessante no evangelho segundo
Mateus, assim como em toda a Sagrada Escritura. Vamos pensar tal relação a
partir do que Jesus falou em Mateus 5, 17 – 37, texto lido neste domingo na
liturgia da Igreja Católica. É preciso frisar que Mateus escreve seu evangelho
tendo como referência não somente sua convivência com Jesus como também a lei
dada por Moisés, explicitada no antigo testamento das Escrituras, especialmente
na Torá judaica; portanto, é o evangelista que mais faz referência à lei.
A lei dada a Moisés
Em um
determinado momento da vida do povo de Deus, o patriarca Moisés percebeu que a
convivência entre as pessoas estava ficando complicada, ou seja, estava havendo
muitos conflitos e, assim, apareceu a necessidade da lei. Assim sendo, a lei
foi dada por Deus a Moisés para que o povo pudesse, observando-a, viver em paz.
O decálogo (dez mandamentos) é constituído de “normas” claras, sendo a maioria
delas iniciadas com a palavra “Não”, ou seja, de cunho proibitivo. O povo
precisou aprender o que seria proibido. A lei era simples e direta, e com o desenvolvimento
da vida do povo foram aparecendo outras leis, até se chegar ao complexo sistema
de leis, que se tornou um fardo pesado para ser colocado nas costas do povo.
Doutores da lei e fariseus eram os intérpretes da lei, as
figuras competentes (autorizadas) para fazer a interpretação correta
(ortodoxa). O povo simples, principalmente os pecadores públicos não entendiam
da lei e eram condenados pela intepretação que se fazia da mesma. A ignorância
(desconhecimento) em relação à lei dava margem a toda forma de exploração por
parte dos intérpretes, que somente interpretavam, mas não a cumpriam. Segundo Jesus,
isto não poderia ser aceito, pois era hipocrisia. Aqui está o motivo principal
dos conflitos entre Jesus e os intérpretes da lei: estes últimos,
aparentemente, eram respeitados pelo povo, mas eram mentirosos e hipócritas,
pois se utilizavam da lei para explorar o povo simples.
Jesus
e a lei
Jesus foi
acusado pelos doutores da lei e fariseus de ser um sujeito desobediente e
rebelde. Eles entenderam e faziam o povo entender que Jesus era subversivo,
portanto, contrário à lei dada a Moisés. Em Mateus, na mencionada citação,
Jesus é claro e objetivo: “Não penseis
que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno
cumprimento”. Posteriormente, a fala de Jesus segue frisando a respeito da importância
de se cumprir a lei. Como entender Jesus? À luz do evangelho, o que significa
cumprir a lei?
A prática missionária de Jesus desmente todo leitor do
evangelho que ousar pensar que Jesus é favorável ao cumprimento literal da lei.
Toda lei está sujeita à interpretação e o problema sempre se encontra no
complexo exercício da interpretação. Tanto a lei de Deus quanto a lei dos
homens precisam ser interpretadas. Não se cumpre a lei sem prévia compreensão
da mesma. A pergunta que se deve fazer diante de qualquer texto bíblico é: O
que isso significa? Diante das palavras de Jesus: O que Jesus quis dizer para
aquelas pessoas e o que estas palavras significam hoje? São questões que nos
fazem interpretar.
Jesus não aboliu a lei e como judeu procurou observá-la,
mas sem hipocrisia alguma. Não era escravo da lei, mas livre em relação a ela. Não
submeteu sua inteligência aos ditames da lei. Não aprovou os abusos cometidos
em nome da lei. Para Jesus, lei e liberdade caminham sem conflito. A observância
da lei está em função da liberdade do homem. Se a observância da lei gera
escravidão, então esta lei não vem de Deus. Neste sentido, muitas das leis
dadas pelos patriarcas e líderes do povo de Deus não correspondiam à vontade de
Deus, mas era fruto da inteligência humana. Muitas vezes, a intenção era boa,
mas quando a lei era posta em prática, a consequência era a escravidão e até a
morte da pessoa. Exemplo claro disso: toda mulher pega em flagrante adultério
era apedrejada até à morte em praça pública. A lei autorizava isso. Diante disso
pergunta-se: tal morte do apedrejamento correspondia à vontade de Deus?...
Surge ainda outro questionamento: diante de tais leis
opostas à vontade de Deus, ninguém parava para analisá-las com prudência e
cuidado, a fim de reformulá-las ou aperfeiçoá-las? Repetidas vezes, em várias
citações, aparece a ideia fundamental de que a lei de Deus é perfeita. De fato,
a lei de Deus e não a dos homens, é perfeita. Tal perfeição deve ser entendida
não no sentido da forma escrita da lei, mas de sua real intenção: a vida do
povo. A lei de Deus é perfeita porque cumprindo-a o ser humano encontra a vida
e a liberdade. Assim, o judeu compreendia que nada poderia ser mudado na lei. Esta
era perfeita, mesmo autorizando a morte da mulher adúltera por apedrejamento em
praça pública.
Jesus ensinou aos seus discípulos com palavras e ações
que a lei deveria ser cumprida, mas com plena liberdade. Jesus não foi enviado
pelo Pai para enquadrar as pessoas na lei. Isto jamais! Também não veio para
criar um mundo desordenado. Jesus sabia muito bem que o ser humano carece de
orientações, pois tende à dispersão e ao pecado. A fraqueza humana pede o
auxílio da lei de Deus. Sem a lei de Deus o crente se torna um desorientado,
não consegue viver de acordo com a vontade divina.
Aos
discípulos Jesus advertiu: “Porque eu vos
digo, se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da lei e dos fariseus,
vós não entrareis no reino dos céus”. Claramente se entende o que Jesus
quer dizer: se seus seguidores não superassem a justiça dos intérpretes da lei
judaica, não iriam entrar no reino dos céus. Em outras palavras, os discípulos
de Jesus não deveriam fazer como os mestres da lei e fariseus, que em nome da
lei exploravam o povo simples.
A
lei e o evangelho nas comunidades cristãs
Assim como no judaísmo
clássico, a Igreja Católica, após ter sido proclamada como religião oficial do
império romano, no séc. IV, passando por toda a Idade Média e Moderna, até
chegar ao Concílio Vaticano II, sempre teve a tendência de ensinar os cristãos
a observar severamente as normas, prescrições e orientações emitidas pelo clero
(especialmente o Papa) e pelos órgãos eclesiásticos responsáveis por manter a ortodoxia
e a disciplina na Igreja. A história mostra o desenvolvimento da lei canônica
dentro da Igreja até chegarmos ao atual e complexo sistema eclesiástico de
leis. Basta dar uma lida no código de direito canônico e logo se percebe que a
Igreja possui lei para tudo. Detalhe: a maioria dos católicos não faz ideia
sequer de um quarto da metade destas leis!
As leis eclesiásticas são necessárias? Diria que algumas
sim, outras não. As que não são necessárias, geralmente, não estão de acordo
com o evangelho de Jesus. Algumas se opõem totalmente ao que Jesus ensinou. Exemplo:
há na Igreja regras que falam a respeito de quem deve ou não comungar. Assim,
estão excluídas da mesa eucarística todas as pessoas que se encontram em estado
matrimonial irregular (casais de segunda união). Isto está de acordo com o
evangelho? Penso que não. Há muitas outras leis que excluem as pessoas da
comunhão eclesial. Esta comunhão só será possível quando as pessoas se sentirem
incluídas e forem, de fato, acolhidas sem julgamentos nem condenações.
Pergunta-se: por que a Igreja demora tanto em aperfeiçoar
leis como esta? A resposta é simples, mas que muitos, principalmente os mais
conservadores (que se julgam mais ortodoxos!) não aceitam: demora porque o
evangelho de Jesus ainda não está no centro da vida eclesial, pois a
preocupação maior é mais com a aplicação da lei do que com o anúncio do
evangelho. Se o leitor não concorda e se for praticante, peço-lhe que observe
com atenção sua comunidade paroquial. Quais as prioridades de sua paróquia? Nelas
você vai saber se o essencial, o anúncio do evangelho, é ou não o fundamental
da comunidade.
Na vida pessoal e social, o cristão precisa, antes da
lei, ler e interpretar o evangelho; entender a palavra de Jesus e buscar viver
de acordo com ela. Todo aquele que assim proceder estará cumprindo a lei, tanto
a dos homens quanto a de Deus. O verdadeiro cristão é íntegro no seu modo de ser.
Sendo assim, não contraria a lei de Deus nem a lei dos homens. O evangelho é
muito simples e é na simplicidade que o observamos.
Não
precisamos criar regras para observar o evangelho. As regras são necessárias
para a religião, não para o evangelho. Jesus não ditou regras para seus
discípulos, mas somente lhes revelou o Pai. Seremos felizes e o mundo se
transformará se observamos o evangelho de Jesus, que ensina que o amor deve ser
o centro de nossas vidas. Que o Espírito nos ajude a sermos cada vez mais
amorosos e nos liberte do legalismo doentio que ainda reina nas comunidades
cristãs.
Tiago
de França
Um comentário:
Excelente e esclarecedor texto
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