sábado, 8 de março de 2014

As tentações e o projeto de Deus

“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4).

            Jesus foi tentado pelo diabo. Esta afirmação que pode ser conferida no relato evangélico das três tentações (cf. Mt 4, 1 – 11) precede à atividade pública de Jesus e nos faz pensar, de início, em duas questões: ninguém está livre da tentação. Não adianta pedir a Deus para se livrar dela. Na oração do Pai nosso, ensinada por Jesus, o pedido é claro: não nos deixeis cair em tentação. O que a graça de Deus faz em nós é isto: não permite que a tentação ultrapasse os limites daquilo que podemos suportar. A segunda questão é mais complexa: o diabo não é uma entidade espiritual fora de nós, que nos conduz à perdição. Pelo menos a partir do texto podemos assegurar isso.

Então, para facilitar a compreensão, é bom que nos libertemos da imagem que nossa fantasia cria a partir da leitura deste texto, a de que Jesus e o diabo travam entre si uma discussão ou diálogo. Pensemos em Jesus no deserto, preparando-se para iniciar a missão que lhe foi confiada pelo Pai. Jesus era humano e como tal experimentou a dimensão limitada da existência humana. Ele conhece muito bem do que somos feitos, pois sentiu na pele os apelos da fraqueza humana. No texto, ele não está acompanhado pelo diabo, mas se encontra consigo mesmo no deserto, lugar da tentação.  

Muitos cristãos, a partir de uma leitura fundamentalista, se utilizam desse texto para dar mais ênfase ao diabo do que a Jesus. Em muitas pregações se alimenta a ideia de que se deve ter cuidado com as ciladas do diabo. Fala-se demasiadamente dele, causando medo nas pessoas. Este medo é como que o combustível para as pessoas caírem na tentação. A ideia central do texto não é o confronto de Jesus com o diabo, mas a tentação de abandonar o projeto de Deus, enfrentada e vencida. Este projeto não é outra coisa senão o Reino de Deus.

Provocado a respeito de sua fome de pão, instigado a transformar pedras em pão, Jesus responde: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. A tentação do espetáculo e de mostrar-se poderoso se faz presente. É a tentação do poder. Os poderosos deste mundo gostam do espetáculo e não perdem as oportunidades que surgem para demonstrar que são poderosos, a fim de que sejam temidos pelas pessoas. Há uma mania de grandeza doentia. No mundo atual, os EUA é um retrato fiel disso, pois procuram demonstrar, por meio da mídia e dos conflitos bélicos, que possuem o poder, que não querem perder o controle do mundo. Trata-se de uma hegemonia diabólica que destrói vidas humanas em todo o mundo.

Nas comunidades cristãs, os cristãos são desafiados pela tentação do poder. Há uma vontade de controlar o outro, subordiná-lo, aliená-lo. Facilmente, percebemos a vaidade tomando conta de muitas pessoas que se afirmam servidoras do evangelho. Na verdade, se servem do evangelho para sobressair-se, ter influência, mandar na vida do outro, ditando-lhe a respeito do certo e do errado. Jesus aponta o caminho oposto: da humildade, da mansidão, da discrição e do serviço.

Contra a tentação de atirar-se do alto do templo, a fim de ser protegido pelos anjos de Deus, responde Jesus: “Também está escrito: ‘não tentarás o Senhor teu Deus’”. Jesus sabia muito bem do perigo da vaidade. Deus não o enviou para se utilizar de situações esplendorosas e/ou miraculosas. Este não foi o propósito de sua missão. Provar para as pessoas que tinha poder para fazer o que quiser: este não era o seu caminho. Isto seria caminhar contra a vontade do Pai. Jesus sabia que estava unido a Deus e que este jamais o abandonaria, portanto, não precisava provocar a Deus para certificar-se disso.

Nas comunidades cristãs assistimos, principalmente entre os neopentecostais, esta triste situação: líderes religiosos provocam abertamente a Deus, desafiando-o, quase que o obrigando a operar milagres. Este não é o Deus de Jesus. Por outro lado, a certeza do amor de Deus por cada pessoa não permite que ninguém caia na tentação de testá-lo ou provocá-lo. Nas mencionadas comunidades cristãs a famosa “teologia da retribuição” ainda funciona e, infelizmente, não é pequeno o número dos que se enveredam por ela. Prega-se um Deus Todo-poderoso, capaz de resolver magicamente todos os problemas humanos, isentando o homem de suas responsabilidades.

Contra a tentação de abarcar o mundo, com suas riquezas e glória, e de prostrar-se diante do tentador, responde Jesus: “Vai-te embora, satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a ele prestarás culto’”. A busca pelo prestígio sempre marcou a história humana. Muitas pessoas não se satisfazem com o anonimato, desejam aparecer, chamar a atenção, aderem ao estrelismo. A fama e o sucesso são almejados por muitos. Alguns querem mais do que reconhecimento e veneração, querem ser adorados. É o pecado da idolatria do dinheiro, do sistema e de pessoas. Isto provoca cegueira e alienação, tira a liberdade e inibe a pluralidade.

No interior das comunidades cristãs há idolatria de dinheiro, do sistema religioso e de pessoas. Há quem coloque o nome de Deus a serviço do dinheiro, do enriquecimento ilícito e, portanto, desonesto. Há quem adore o sistema religioso, adotando rigidamente suas diretrizes, subordinando as pessoas aos ditames das leis e prescrições. Estes idólatras estão a serviço do sistema religioso e são inimigos do evangelho de Jesus.

Há, ainda, os que deixam Jesus e sua mensagem de lado e aderem aos ensinamentos de autoridades religiosas. Exemplo disso é a idolatria papal: para muitos, o Papa é mais importante que Jesus! Neste sentido, o beato João Paulo II, que foi um dos papas que mais soube se utilizar da mídia, foi um dos que mais cultivou a idolatria papal na Igreja. Recordo-me bem que qualquer crítica à sua pessoa e função era tratada como insulto à fé cristã e à ortodoxia.

Consequência disso era o excessivo controle da consciência das pessoas, especialmente de muitos clérigos ordenados. Mesmo falando explicitamente contra essa tendência de culto à personalidade, essência da idolatria, o Papa Francisco também está sendo vítima da mesma situação. As pessoas cultuam os gestos do Papa, assim como suas palavras, e se esquecem de que ele está apontando para Jesus e não para si mesmo. O papa é um homem comum, investido de uma missão, mas somente Jesus e seu evangelho devem ser o centro da comunidade cristã. Os papas cumprem sua missão e morrem, Jesus está vivo e atuante dentro e fora da Igreja. Isto é o que importa. A centralidade da palavra de Jesus na vida da Igreja a conduz ao serviço, construindo o Reino de Deus.

Rezemos ao Espírito do Senhor, que nos assiste em nossas fraquezas, a fim de que nos ajude a sermos fortes e vencedores diante das tentações do poder, do prestígio e da riqueza. Que as forças do anti-Reino não nos domine e que Deus seja tudo em todos.


Tiago de França

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