segunda-feira, 24 de março de 2014

Dom Oscar Romero: mártir da justiça do Reino de Deus

“Uma Igreja que não sofre perseguição, mas que desfruta privilégios e o apoio de coisas da terra – Tenham medo! – não é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo” (Dom Oscar Romero, em 11, 03/ 1979).

            Há 34 anos, no dia 24 de março de 1980, em El Salvador, América Central, durante a celebração da Eucaristia, foi brutalmente assassinado Dom Oscar Romero, por um atirador de elite das forças armadas salvadorenhas. Era o arcebispo da arquidiocese de San Salvador, assassinado covardemente a mando dos militares que dominavam o país, implacavelmente. Esta memória não pode ser esquecida e a Igreja tem muito a aprender com ela. Em sua infinita bondade e sabedoria, Deus teve misericórdia do povo salvadorenho e enviou um profeta para anunciar a Boa Notícia da libertação.

            Inicialmente, quando era apenas um padre, Oscar Romero era conservador, admirado por seus superiores, obediente e estritamente ortodoxo. Por isso mesmo, foi enviado a Roma para estudar. Na Igreja, os homens de inteligência brilhante e cultivadores da sagrada obediência eram enviados a Roma para se aprofundarem nos estudos, especialmente os teológicos. Era um padre como outro qualquer: humilde, obediente, culto e praticante da boa disciplina eclesiástica. Tinha todas as qualidades para ser nomeado bispo, o que ocorreu em pouco tempo.

            Tornou-se o arcebispo da arquidiocese: a maior autoridade religiosa da Igreja particular. João Paulo II era o Bispo de Roma, papa da Igreja, e apreciava bispos conservadores. Quando dom Oscar Romero resolveu aceitar Jesus e converter-se, teve que escutar uma severa advertência do mencionado papa. Este lhe exigiu que não entrasse em conflito com os militares. O papa queria preservar as alianças com os poderosos, evitando conflitos, a fim de que a Igreja continuasse gozando de seus privilégios junto aos criminosos e assassinos. Era a política do pontífice: reconciliar a Igreja com aqueles que poderiam persegui-la.

            Dom Oscar Romero ficou desapontado com o papa. Ouviu silenciosamente, mas se recordou de que na Igreja Particular o bispo tem autonomia e que o Bispo de Roma não é o chefe dos bispos do mundo inteiro. Convicto de sua missão junto ao povo sofrido pela ditadura militar, o arcebispo preferiu escutar os apelos do povo e do Espírito do Senhor, renunciando a atender à exigência papal. Dom Oscar Romero quando chamado pelo papa já gozava da liberdade dos filhos e filhas de Deus. Não tinha mais como voltar atrás. Já estava com a mão no arado e não podia olhar para trás. Fixou os olhos em Jesus e seguiu em frente.

            Desde o ambão da proclamação da palavra de Deus, o arcebispo era veemente no anúncio do evangelho da vida e da liberdade. Ungido pela força do Espírito do Senhor, denunciou os crimes cometidos pelos militares. Sua palavra era acolhida pelos pobres, que encontravam nele a figura do bom pastor, aquele que conhece suas ovelhas e é conhecido por elas, que ama suas ovelhas e é amado por elas, que tem a coragem de dar a vida por suas ovelhas. Dom Oscar Romero compreendeu a missão de Jesus de Nazaré e resolveu participar dela sendo outro Cristo junto a seu povo.

            Dom Oscar Romero denunciou a hipocrisia religiosa e o falso cristianismo. Suas palavras e gestos são pura profecia. Ele percebeu que a Igreja não pode ficar indiferente ao sofrimento do povo. No meio deste, visitando as pessoas, vendo o sangue derramado pelas ruas da cidade e no campo, escutando o grito desesperado das vítimas, abraçando-as, acolhendo-as e abençoando-as em nome de Deus, Dom Oscar Romero enxergou e tocou na carne do Cristo crucificado nas feridas abertas das vítimas. É profundamente emocionante escutar sua voz nas homilias. É de arrancar lágrimas dos olhos escutar um pastor que clama por justiça, que acredita e anuncia a verdade do evangelho de Jesus.

            Ele sabia dos riscos e dos desafios de sua missão, pois passou a ser ameaçado pelos assassinos do povo, mas o Espírito do Senhor lhe concedeu o dom da perseverança na missão. Tendo recebido de Deus o dom da profecia, não tinha mais como renunciar à missão. Tinha plena convicção de que iria ser assassinado, só não sabia exatamente a hora. Seu corpo estendido atrás do altar é a imagem de pastor fiel, que não procurou salvar a própria vida, mas entregou-se totalmente, sem medo de quem quer que seja, unindo plenamente a Jesus. Dom Oscar Romero sabia que iria ressuscitar com Cristo na vida do povo de El Salvador.

            Celebrar sua memória é repensar a missão da Igreja no mundo. Seu testemunho nos chama a atenção para anúncio da verdade e da liberdade. A Igreja não pode renunciar à verdade do evangelho de Jesus, não pode renunciar à liberdade do evangelho. Sem o anúncio do evangelho tudo permanece na tranquilidade e na vida cômoda. Inevitavelmente, quando o medo toma conta da Igreja, a busca pelo prestígio, poder e riqueza se torna a meta de muitos. Uma Igreja omissa é aquela que se cala diante das injustiças e faz alianças com os poderosos deste mundo, visando gozar dos privilégios recebidos.

            O evangelho exige a entrega da própria vida, que passa, necessariamente, pelo cuidado e responsabilidade com o outro. Se o povo tem que lutar sozinho, sem o apoio de seus pastores, o que estes pastores estão fazendo com o ministério que receberam? Estão somente presidindo o culto e dispensando os sacramentos? Qual o valor dos sacramentos que não celebram a realidade sofrida do povo? Para que servem as liturgias desencarnadas? De que adianta cumprir a lei canônica se a vida humana está sendo brutalmente ceifada? Se a religião é cega, muda e surda em relação à vida das pessoas, então é pedra de tropeço e somente reforça a alienação e a escravidão.

            Dom Oscar Romero era arcebispo da Igreja. Os pastores da Igreja precisam escutar o que o Espírito está falando neste momento: chamando a Igreja para a periferia do mundo. A oportunidade não pode ser perdida. Se o papa é favorável à opção pelos pobres, opção essencialmente evangélica, então a hora é agora. Antes de Francisco, falar na opção pelos pobres era quase que uma ofensa. Era coisa da teologia da libertação. Agora, Francisco chama um dos maiores nomes desta teologia, o peruano Gustavo Gutiérrez, e diz: esta teologia deve ser a da Igreja, pois esta é chamada a servir a toda à humanidade, preferencialmente aos pobres. Aí tem o dedo de Deus.

O testemunho de Dom Oscar Romero aponta para as vítimas deste mundo, para os crucificados da história. Que junto a Deus, ele interceda pela Igreja, a fim de que esta seja, de fato, povo de Deus em marcha, missionária e servidora dos pobres. Para que isto se torne realidade, o medo e a covardia precisam ser vencidos por aqueles que ousam ouvir o chamado de Deus e se colocam no caminho de Jesus, estreito, pedregoso e libertador.


Tiago de França

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