“Uma
Igreja que não sofre perseguição, mas que desfruta privilégios e o apoio de
coisas da terra – Tenham medo! – não é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo” (Dom
Oscar Romero, em 11, 03/ 1979).
Há 34 anos, no dia 24 de março de 1980, em El Salvador,
América Central, durante a celebração da Eucaristia, foi brutalmente
assassinado Dom Oscar Romero, por um atirador de elite das forças armadas
salvadorenhas. Era o arcebispo da arquidiocese de San Salvador, assassinado
covardemente a mando dos militares que dominavam o país, implacavelmente. Esta
memória não pode ser esquecida e a Igreja tem muito a aprender com ela. Em sua
infinita bondade e sabedoria, Deus teve misericórdia do povo salvadorenho e
enviou um profeta para anunciar a Boa Notícia da libertação.
Inicialmente, quando era apenas um padre, Oscar Romero
era conservador, admirado por seus superiores, obediente e estritamente
ortodoxo. Por isso mesmo, foi enviado a Roma para estudar. Na Igreja, os homens
de inteligência brilhante e cultivadores da sagrada obediência eram enviados a
Roma para se aprofundarem nos estudos, especialmente os teológicos. Era um
padre como outro qualquer: humilde, obediente, culto e praticante da boa
disciplina eclesiástica. Tinha todas as qualidades para ser nomeado bispo, o
que ocorreu em pouco tempo.
Tornou-se o arcebispo da arquidiocese: a maior autoridade
religiosa da Igreja particular. João Paulo II era o Bispo de Roma, papa da
Igreja, e apreciava bispos conservadores. Quando dom Oscar Romero resolveu
aceitar Jesus e converter-se, teve que escutar uma severa advertência do
mencionado papa. Este lhe exigiu que não entrasse em conflito com os militares.
O papa queria preservar as alianças com os poderosos, evitando conflitos, a fim
de que a Igreja continuasse gozando de seus privilégios junto aos criminosos e
assassinos. Era a política do pontífice: reconciliar a Igreja com aqueles que
poderiam persegui-la.
Dom Oscar Romero ficou desapontado com o papa. Ouviu
silenciosamente, mas se recordou de que na Igreja Particular o bispo tem
autonomia e que o Bispo de Roma não é o chefe dos bispos do mundo inteiro.
Convicto de sua missão junto ao povo sofrido pela ditadura militar, o arcebispo
preferiu escutar os apelos do povo e do Espírito do Senhor, renunciando a
atender à exigência papal. Dom Oscar Romero quando chamado pelo papa já gozava
da liberdade dos filhos e filhas de Deus. Não tinha mais como voltar atrás. Já
estava com a mão no arado e não podia olhar para trás. Fixou os olhos em Jesus
e seguiu em frente.
Desde o ambão da proclamação da palavra de Deus, o
arcebispo era veemente no anúncio do evangelho da vida e da liberdade. Ungido
pela força do Espírito do Senhor, denunciou os crimes cometidos pelos
militares. Sua palavra era acolhida pelos pobres, que encontravam nele a figura
do bom pastor, aquele que conhece suas ovelhas e é conhecido por elas, que ama
suas ovelhas e é amado por elas, que tem a coragem de dar a vida por suas
ovelhas. Dom Oscar Romero compreendeu a missão de Jesus de Nazaré e resolveu
participar dela sendo outro Cristo junto a seu povo.
Dom Oscar Romero denunciou a hipocrisia religiosa e o
falso cristianismo. Suas palavras e gestos são pura profecia. Ele percebeu que
a Igreja não pode ficar indiferente ao sofrimento do povo. No meio deste,
visitando as pessoas, vendo o sangue derramado pelas ruas da cidade e no campo,
escutando o grito desesperado das vítimas, abraçando-as, acolhendo-as e
abençoando-as em nome de Deus, Dom Oscar Romero enxergou e tocou na carne do
Cristo crucificado nas feridas abertas das vítimas. É profundamente emocionante
escutar sua voz nas homilias. É de arrancar lágrimas dos olhos escutar um
pastor que clama por justiça, que acredita e anuncia a verdade do evangelho de
Jesus.
Ele sabia dos riscos e dos desafios de sua missão, pois
passou a ser ameaçado pelos assassinos do povo, mas o Espírito do Senhor lhe
concedeu o dom da perseverança na missão. Tendo recebido de Deus o dom da
profecia, não tinha mais como renunciar à missão. Tinha plena convicção de que
iria ser assassinado, só não sabia exatamente a hora. Seu corpo estendido atrás
do altar é a imagem de pastor fiel, que não procurou salvar a própria vida, mas
entregou-se totalmente, sem medo de quem quer que seja, unindo plenamente a
Jesus. Dom Oscar Romero sabia que iria ressuscitar com Cristo na vida do povo
de El Salvador.
Celebrar sua memória é repensar a missão da Igreja no
mundo. Seu testemunho nos chama a atenção para anúncio da verdade e da
liberdade. A Igreja não pode renunciar à verdade do evangelho de Jesus, não
pode renunciar à liberdade do evangelho. Sem o anúncio do evangelho tudo
permanece na tranquilidade e na vida cômoda. Inevitavelmente, quando o medo
toma conta da Igreja, a busca pelo prestígio, poder e riqueza se torna a meta
de muitos. Uma Igreja omissa é aquela que se cala diante das injustiças e faz
alianças com os poderosos deste mundo, visando gozar dos privilégios recebidos.
O evangelho exige a entrega da própria vida, que passa,
necessariamente, pelo cuidado e responsabilidade com o outro. Se o povo tem que
lutar sozinho, sem o apoio de seus pastores, o que estes pastores estão fazendo
com o ministério que receberam? Estão somente presidindo o culto e dispensando
os sacramentos? Qual o valor dos sacramentos que não celebram a realidade
sofrida do povo? Para que servem as liturgias desencarnadas? De que adianta
cumprir a lei canônica se a vida humana está sendo brutalmente ceifada? Se a
religião é cega, muda e surda em relação à vida das pessoas, então é pedra de
tropeço e somente reforça a alienação e a escravidão.
Dom Oscar Romero era arcebispo da Igreja. Os pastores da
Igreja precisam escutar o que o Espírito está falando neste momento: chamando a
Igreja para a periferia do mundo. A oportunidade não pode ser perdida. Se o
papa é favorável à opção pelos pobres, opção essencialmente evangélica, então a
hora é agora. Antes de Francisco, falar na opção pelos pobres era quase que uma
ofensa. Era coisa da teologia da libertação. Agora, Francisco chama um dos
maiores nomes desta teologia, o peruano Gustavo Gutiérrez, e diz: esta teologia
deve ser a da Igreja, pois esta é chamada a servir a toda à humanidade,
preferencialmente aos pobres. Aí tem o dedo de Deus.
O
testemunho de Dom Oscar Romero aponta para as vítimas deste mundo, para os
crucificados da história. Que junto a Deus, ele interceda pela Igreja, a fim de
que esta seja, de fato, povo de Deus em marcha, missionária e servidora dos
pobres. Para que isto se torne realidade, o medo e a covardia precisam ser
vencidos por aqueles que ousam ouvir o chamado de Deus e se colocam no caminho
de Jesus, estreito, pedregoso e libertador.
Tiago
de França
Nenhum comentário:
Postar um comentário