sábado, 29 de março de 2014

Libertar-se da cegueira

“Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não veem vejam e os que veem se tornem cegos” (Jo 9, 39).

            O episódio da cura do cego de nascença é muito significativo para compreendermos o seguimento de Jesus de Nazaré (cf. Jo 9, 1 – 41). O discípulo de Jesus é alguém que enxerga a realidade. Pode parecer simples, mas enxergar a realidade não é tão fácil como se pensa. Infelizmente, há muitas pessoas que se recusam a enxergar a realidade, pois acham mais confortável viver na ilusão. Há um ditado popular que diz: “o pior cego é aquele que não quer enxergar”. Tirando este “pior”, podemos concordar que, de fato, as pessoas que se recusam a enxergar a vida não conseguem seguir Jesus. Para segui-lo, é necessário permanecer de olhos abertos. À luz do episódio da cura do cego de nascença, vamos meditar sobre a importância de enxergar a realidade como caminho de libertação pessoal e comunitária.

Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença.

            No tempo de Jesus, a cegueira era considerada um castigo divino. O cego era excluído pela sociedade e pela religião, pois não lia as Escrituras Sagradas, consequentemente, não conseguia entender a vontade de Deus nem cumprir as obrigações religiosas. Era alguém que vivia à margem, esquecido pelas pessoas. As autoridades religiosas da época assim compreendiam: o cego era um pecador, desprovido da bênção e dos favores divinos.

            Jesus não compreendia as coisas deste modo e não aceitava que assim fossem. Ele enxerga o homem cego de nascença. Este não passa despercebido. O olhar de Jesus alcança os excluídos pela sociedade e pela religião. Ele se aproxima e vai ao encontro do homem cego. Os discípulos de Jesus, contaminados pela ideologia religiosa e pela interpretação que se fazia da cegueira, perguntam a Jesus a respeito da ligação entre o pecado e a cegueira. Havia esta ligação? Para os religiosos, sim; para Jesus, não: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas isso serve para que as obras de Deus se manifestem nele”.

            Esta palavra de Jesus reflete sua liberdade, pois não pensava como os doutores da lei e fariseus. Jesus pensava de forma oposta à religião de seu tempo, e isto não era tolerado. Até hoje é assim. Para resguardar a ortodoxia, a religião não tolera aqueles que pensam de forma diferente. Na religião, todos tem que pensar da mesma forma. Isto se chama uniformidade. A prática de Jesus mostra claramente que ele não era amigo da uniformidade, mas do pensamento livre, em plena sintonia com a vontade de Deus.

            Segundo Jesus, não há nenhuma ligação entre a cegueira e o pecado. Aquela não é provocada por este. O que Jesus ensina é belíssimo: a cegueira é ocasião para a manifestação da obra de Deus, ou seja, da amorosa ação de Deus na pessoa. Com isto estava dizendo o que iria fazer: curar o homem cego, libertando-o das amarras da cegueira, fazendo-o enxergar a vida. Antes, afirma categoricamente: “Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo”.

            Jesus não podia passar por aquele homem e deixá-lo sem a luz. A proximidade de Jesus confere luz às pessoas. Quem permanece com Jesus permanece na luz, recebe dele a luz da vida, liberta-se da cegueira, enxerga a vida. Eis o critério que nos confere a certeza de que estamos com Jesus: se realmente temos a visão, se enxergamos a realidade da vida. Os que são curados por Jesus são chamados a participar de sua missão evangelizadora. Não basta recuperar a vista, mas é preciso ir lavar-se na piscina do envio: “O cego foi, lavou-se e voltou enxergando”.

            Os vizinhos, parentes e autoridades religiosas demoram para reconhecer o homem livre da cegueira. Geralmente, as pessoas aceitam a cegueira, mas se recusam a aceitar a libertação da mesma. Parece mais cômodo viver sem enxergar. Enxergar exige atenção voltada para as pessoas e para a realidade destas pessoas, exige análise e perspicácia. São duas atitudes que as pessoas geralmente evitam: enxergar e pensar a vida. São duas atitudes necessárias para o exercício do seguimento a Jesus de Nazaré.

Acreditas no Filho do Homem?

            A libertação da cegueira concedeu ao homem a visão da fé. Prostrado diante de Jesus, o homem afirma com firmeza: “Eu creio, Senhor!” Eis o resultado da atitude de quem deseja realmente enxergar: crer em Jesus, o Filho do Homem. Mesmo contrariando sua religião, o homem liberto da cegueira arrisca-se a crer em Jesus como o Messias prometido. Todos aqueles que declarassem que Jesus era o Messias eram expulsos da comunidade. O homem liberto acreditou e foi expulso. Assumiu o risco. Estava convicto de que Jesus realmente veio de Deus: “Se esse homem não viesse de Deus, não poderia fazer nada”, respondeu às autoridades religiosas quando foi violentamente interrogado.

            Jesus veio ao mundo para realizar um julgamento, não condenatório, mas um julgamento esclarecedor, verdadeiro, libertador, que consiste no seguinte: “os que não veem vejam e os que veem se tornem cegos”. Jesus veio abrir os olhos dos excluídos e pobres, a fim de que encontrem o caminho da vida e da liberdade. Os religiosos, defensores da lei, das tradições e costumes, na verdade, eram cegos, pois não eram capazes de enxergar e reconhecer o Messias enviado por Deus; não eram capazes de enxergar a ação libertadora de Deus no meio dos pecadores e pobres. Mulheres e homens de fé madura e consciente enxergam a vida com os olhos desta fé e, assim, seguem Jesus de Nazaré.

Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis ‘nós vemos’, o vosso pecado permanece.

            Quando se perguntavam se também eram cegos, estas foram as palavras que Jesus respondeu aos fariseus. Não poderíamos concluir esta meditação sem fazermos referência à religião atual, especialmente o Cristianismo. No interior deste, boa parcela das autoridades religiosas continuam agindo da mesma maneira que os fariseus: excluindo e condenando as pessoas, especialmente aquelas que vivem à margem da religião. Há muitas pessoas que desconhecem a Sagrada Escritura, as tradições, os costumes e as leis religiosas, vivendo praticamente fora do alcance da religião. Muitas até acreditam em Deus, mas não o procuram no interior da religião, e os motivos são muitos.

            O texto evangélico mostra claramente que Jesus estava fora da religião, fora do seu alcance. Jesus estava junto aos que eram desprezados, julgados e condenados pela religião. Creio que hoje ele continua no mesmo lugar: nos lugares considerados impuros e indignos, naqueles lugares nos quais não se veem a presença dos religiosos. Estes costumam permanecer no centro, lugar dos puros e dos íntegros, lugar dos que ocupam os primeiros lugares, dos privilegiados e da vida cômoda. No centro tudo é planejado e bonito, enquanto que na periferia tudo parece ser desorganizado e feio. Os que são da periferia são considerados feios e vítimas do olhar desconfiado dos que vivem no centro.

            Assim, Jesus nos fala hoje:

- Se quereis seguir-me, deixai o centro e ide para a periferia, onde se encontra a comunidade dos meus seguidores. Deixai o centro para os poderosos e sedentos de poder. Eu não estou no centro, mas na periferia, comendo com os cobradores de impostos e pecadores, convivendo com ladrões e prostitutas, rindo e chorando com as mulheres e homens sofredores. Vinde, abandonai a catedral e construí, aqui, vossa capela. Aqui, sim, entro em verdadeira comunhão com vossas liturgias. Isto significa tomar parte comigo no Reino de Deus. Vinde e vede!


Tiago de França

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