“Eu
vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não veem vejam
e os que veem se tornem cegos” (Jo 9, 39).
O episódio da cura do cego de nascença é muito
significativo para compreendermos o seguimento de Jesus de Nazaré (cf. Jo 9, 1 –
41). O discípulo de Jesus é alguém que enxerga a realidade. Pode parecer
simples, mas enxergar a realidade não é tão fácil como se pensa. Infelizmente,
há muitas pessoas que se recusam a enxergar a realidade, pois acham mais
confortável viver na ilusão. Há um ditado popular que diz: “o pior cego é
aquele que não quer enxergar”. Tirando este “pior”, podemos concordar que, de
fato, as pessoas que se recusam a enxergar a vida não conseguem seguir Jesus. Para
segui-lo, é necessário permanecer de olhos abertos. À luz do episódio da cura
do cego de nascença, vamos meditar sobre a importância de enxergar a realidade
como caminho de libertação pessoal e comunitária.
Ao passar, Jesus viu um
homem cego de nascença.
No tempo de Jesus, a cegueira era considerada um castigo
divino. O cego era excluído pela sociedade e pela religião, pois não lia as
Escrituras Sagradas, consequentemente, não conseguia entender a vontade de Deus
nem cumprir as obrigações religiosas. Era alguém que vivia à margem, esquecido
pelas pessoas. As autoridades religiosas da época assim compreendiam: o cego
era um pecador, desprovido da bênção e dos favores divinos.
Jesus não compreendia as coisas deste modo e não aceitava
que assim fossem. Ele enxerga o homem cego de nascença. Este não passa
despercebido. O olhar de Jesus alcança os excluídos pela sociedade e pela
religião. Ele se aproxima e vai ao encontro do homem cego. Os discípulos de
Jesus, contaminados pela ideologia religiosa e pela interpretação que se fazia
da cegueira, perguntam a Jesus a respeito da ligação entre o pecado e a
cegueira. Havia esta ligação? Para os religiosos, sim; para Jesus, não: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas isso
serve para que as obras de Deus se manifestem nele”.
Esta palavra de Jesus reflete sua liberdade, pois não
pensava como os doutores da lei e fariseus. Jesus pensava de forma oposta à
religião de seu tempo, e isto não era tolerado. Até hoje é assim. Para resguardar
a ortodoxia, a religião não tolera aqueles que pensam de forma diferente. Na religião,
todos tem que pensar da mesma forma. Isto se chama uniformidade. A prática de
Jesus mostra claramente que ele não era amigo da uniformidade, mas do
pensamento livre, em plena sintonia com a vontade de Deus.
Segundo Jesus, não há nenhuma ligação entre a cegueira e
o pecado. Aquela não é provocada por este. O que Jesus ensina é belíssimo: a
cegueira é ocasião para a manifestação da obra de Deus, ou seja, da amorosa
ação de Deus na pessoa. Com isto estava dizendo o que iria fazer: curar o homem
cego, libertando-o das amarras da cegueira, fazendo-o enxergar a vida. Antes,
afirma categoricamente: “Enquanto estou
no mundo, eu sou a luz do mundo”.
Jesus não podia passar por aquele homem e deixá-lo sem a
luz. A proximidade de Jesus confere luz às pessoas. Quem permanece com Jesus
permanece na luz, recebe dele a luz da vida, liberta-se da cegueira, enxerga a
vida. Eis o critério que nos confere a certeza de que estamos com Jesus: se
realmente temos a visão, se enxergamos a realidade da vida. Os que são curados
por Jesus são chamados a participar de sua missão evangelizadora. Não basta recuperar
a vista, mas é preciso ir lavar-se na piscina do envio: “O cego foi, lavou-se e voltou enxergando”.
Os vizinhos, parentes e autoridades religiosas demoram
para reconhecer o homem livre da cegueira. Geralmente, as pessoas aceitam a
cegueira, mas se recusam a aceitar a libertação da mesma. Parece mais cômodo
viver sem enxergar. Enxergar exige atenção voltada para as pessoas e para a
realidade destas pessoas, exige análise e perspicácia. São duas atitudes que as
pessoas geralmente evitam: enxergar e pensar a vida. São duas atitudes
necessárias para o exercício do seguimento a Jesus de Nazaré.
Acreditas no Filho do
Homem?
A libertação da
cegueira concedeu ao homem a visão da fé. Prostrado diante de Jesus, o homem
afirma com firmeza: “Eu creio, Senhor!” Eis
o resultado da atitude de quem deseja realmente enxergar: crer em Jesus, o
Filho do Homem. Mesmo contrariando sua religião, o homem liberto da cegueira
arrisca-se a crer em Jesus como o Messias prometido. Todos aqueles que
declarassem que Jesus era o Messias eram expulsos da comunidade. O homem
liberto acreditou e foi expulso. Assumiu o risco. Estava convicto de que Jesus
realmente veio de Deus: “Se esse homem
não viesse de Deus, não poderia fazer nada”, respondeu às autoridades
religiosas quando foi violentamente interrogado.
Jesus veio ao mundo para realizar um julgamento, não condenatório,
mas um julgamento esclarecedor, verdadeiro, libertador, que consiste no
seguinte: “os que não veem vejam e os que
veem se tornem cegos”. Jesus veio abrir os olhos dos excluídos e pobres, a
fim de que encontrem o caminho da vida e da liberdade. Os religiosos,
defensores da lei, das tradições e costumes, na verdade, eram cegos, pois não
eram capazes de enxergar e reconhecer o Messias enviado por Deus; não eram
capazes de enxergar a ação libertadora de Deus no meio dos pecadores e pobres. Mulheres
e homens de fé madura e consciente enxergam a vida com os olhos desta fé e,
assim, seguem Jesus de Nazaré.
Se fôsseis cegos, não
teríeis culpa; mas como dizeis ‘nós vemos’, o vosso pecado permanece.
Quando se perguntavam se também eram cegos, estas foram
as palavras que Jesus respondeu aos fariseus. Não poderíamos concluir esta
meditação sem fazermos referência à religião atual, especialmente o
Cristianismo. No interior deste, boa parcela das autoridades religiosas continuam
agindo da mesma maneira que os fariseus: excluindo e condenando as pessoas,
especialmente aquelas que vivem à margem da religião. Há muitas pessoas que
desconhecem a Sagrada Escritura, as tradições, os costumes e as leis religiosas,
vivendo praticamente fora do alcance da religião. Muitas até acreditam em Deus,
mas não o procuram no interior da religião, e os motivos são muitos.
O texto evangélico mostra claramente que Jesus estava
fora da religião, fora do seu alcance. Jesus estava junto aos que eram
desprezados, julgados e condenados pela religião. Creio que hoje ele continua
no mesmo lugar: nos lugares considerados impuros e indignos, naqueles lugares
nos quais não se veem a presença dos religiosos. Estes costumam permanecer no
centro, lugar dos puros e dos íntegros, lugar dos que ocupam os primeiros
lugares, dos privilegiados e da vida cômoda. No centro tudo é planejado e
bonito, enquanto que na periferia tudo parece ser desorganizado e feio. Os que
são da periferia são considerados feios e vítimas do olhar desconfiado dos que
vivem no centro.
Assim, Jesus nos fala hoje:
- Se quereis seguir-me,
deixai o centro e ide para a periferia, onde se encontra a comunidade dos meus
seguidores. Deixai o centro para os poderosos e sedentos de poder. Eu não estou
no centro, mas na periferia, comendo com os cobradores de impostos e pecadores,
convivendo com ladrões e prostitutas, rindo e chorando com as mulheres e homens
sofredores. Vinde, abandonai a catedral e construí, aqui, vossa capela. Aqui,
sim, entro em verdadeira comunhão com vossas liturgias. Isto significa tomar
parte comigo no Reino de Deus. Vinde e
vede!
Tiago de França
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