sexta-feira, 4 de abril de 2014

A normalidade da irracionalidade

           
              Filosoficamente, os conceitos de normalidade e irracionalidade são complexos e sobre eles há uma vasta literatura filosófica que esmiúça com precisão tais termos. Em uma reflexão que pretende chegar ao leitor comum, destituído de vocabulário estritamente filosófico, aqui não é lugar de explicitar de forma fundamentada aquilo que o pensamento conseguiu elaborar a respeito de tais implicações. As revistas filosóficas e as dissertações nos ambientes acadêmicos não se furtam de tal compromisso através de argumentos sólidos e convincentes.

Brevemente, ousaremos algumas afirmações simples, porém provocadoras, que poderão nos remeter à indagação sobre a qual queremos discorrer: atualmente, por que as pessoas tendem a renunciar à reflexão sobre a própria vida e sobre o que acontece no mundo? Esta indagação nos lança para o mundo e nos faz pensar em algumas questões que julgamos pertinentes e que nos convencem a respeito não de algumas certezas, mas de algumas prerrogativas capazes de nos oferecer novos horizontes de sentidos.

Uma questão inquietante

            Após esta sucinta justificativa, a questão nos desafia de imediato. Ela é desafiada pelo mal da superficialidade. Os primeiros filósofos estavam convencidos de que a vida só vale a pena ser vivida se pautada na reflexão. Pensar a vida e pensar a respeito deste pensar são atitudes imprescindivelmente humanas. A renúncia ao pensar é impossível, do ponto de vista do ato, não da qualidade do mesmo. Em outras palavras, todo ser humano é capaz de pensar; a não ser que suas faculdades mentais estejam perturbadas.

            Passa-se toda a vida pensando em pessoas, coisas e situações. Estes pensamentos simples e corriqueiros, necessários à organização cotidiana da vida, não nos remetem às grandes indagações da existência humana. Neste sentido, a Filosofia nos remete a perguntas de cunho existencial: de onde veio o ser humano, como vive e para onde vai? São três questões que nos levam a pensar a respeito da origem, do desenvolvimento e do fim da vida humana. Estas e outras questões intrigaram os filósofos durante muito tempo e até hoje os obriga a repensar aquilo que foi pensado.

A superficialidade

            A Filosofia não oferece respostas prontas para nenhuma forma de pergunta. Sua missão é elaborar novas perguntas sobre as possíveis respostas oriundas das perguntas precedentes. O mundo e a vida seriam bem melhores se as pessoas pudessem se ocupar com as perguntas. Estas, geralmente, são evitadas. Há certa preferência por respostas curtas e prontas, que dispensam a atividade do pensar. “Pensar dói!”, dizia um amigo professor de Filosofia.

            O que podemos perceber em nossa volta é a fuga constante por parte da maioria das pessoas. Estas evitam pensar, pois afirmam que o cansaço e a angústia, dentre outras justificativas infundadas, invadem inevitavelmente a vida de quem pensa e de quem procura o sentido da vida. É verdade que o pensar exige esforço e sistematização. O pensamento é algo sobre algo, mas não no sentido de divagação, mas de caminho ordenado de ideias que vão surgindo e se orientando no rumo da compreensão.

            O fato é que a racionalidade parece que anda em crise. Isto é terrivelmente nocivo a toda humanidade, pois não há humanidade sem pensamento, sem a aventura do pensar. O ser humano se torna excessivamente perigoso quando renuncia à arte da procura de horizontes de sentido para a vida. As guerras, o genocídio, o preconceito e tantas outras formas de conflito e violência contra o gênero humano e contra a natureza refletem o perigo da irracionalidade. Vontades mal pensadas e mal intencionadas são causa de destruição. Paixões desordenadas ofuscam a razão e conduzem, inevitavelmente, a erradicação da vida humana e das demais formas de vida no mundo.

            Neste sentido, pensadores de muitas áreas, mas principalmente da Filosofia são unânimes: o progresso da ciência não é sinônimo de progresso humano. Falta equilíbrio, bom senso, reta intenção, renúncia das ambições desmedidas e ousadia no pensar a respeito das reais consequências do progresso científico e tecnológico. Citamos renúncia das ambições desmedidas porque estas não permitem o agir ético. A ética pergunta não pela eficiência da ciência, mas pela bondade e maldade do agir científico. Exemplo: a ciência afirma que o uso de células-tronco é possível; a ética pergunta se tal uso é bom ou mau, se é necessário ou desnecessário. As perguntas da ética não interessam à ciência. São perguntas que remetem ao sentido das coisas.

Onde está a virtude?

            Falamos do progresso científico e tecnológico, mas a crise também tem afetado o campo das relações humanas. Na verdade, quando o ser humano não consegue se entender com o outro, direta ou indiretamente, tal desentendimento, marcado pelo jogo de interesses, reflete na ideia de progresso. Aqui merece atenção as denominadas redes sociais (facebook, whatsapp, twitter etc.). Elas refletem o perfil psicológico do homem pós-moderno. Não negamos o valor da comunicação entre pessoas e suas respectivas culturas, mas nos assustam a superficialidade e a banalização desta mesma comunicação.

            O uso desvirtuado das redes sociais compromete seriamente o crescimento e desenvolvimento das pessoas. Estas tendem a ser ridicularizadas e expostas a toda espécie de agressão. Isto demonstra a falta de bom senso e racionalização das atitudes nestas redes. Colocar as pessoas em rede, em um primeiro momento, é algo extraordinariamente moderno e necessário; o problema está na tendência ao desequilíbrio e à irracionalização do uso de tais meios. Racionalizar as redes sociais não é desprezar sua eficácia e necessidade, nem fechar-se à dimensão emocional da personalidade, mas questionar a respeito do sentido do uso que se faz delas. Os usuários poderiam se perguntar: Com que intenção e objetivo as pessoas utilizam as redes sociais?

            A maneira como utilizamos as coisas refletem o que há em nosso interior. Os gestos humanos são reveladores de sua personalidade. Neste sentido, as redes sociais se transformaram em locais abertos de exposição das frustrações humanas. Por trás da fugaz alegria há um excesso de frustração. É a frustração do ser humano que não está conseguindo dar conta de sua existência, que se encontra mergulhado em um vazio existencial inevitável. O que se publica nas redes sociais não nos convence de outra coisa senão deste vazio existencial, destrutivo e assustador. A crítica, a produção e exposição do pensamento se encontram sufocados em meio a uma enxurrada de futilidades.

            Nossa capacidade de pensar nos conduz à verdade, mas não à verdade dogmática que, por sua vez, não precisa ser pensada. A verdade do ser humano que se constrói nas relações interpessoais precisa ser mais cultivada. Enquanto ser-com-o-outro, o ser humano constrói a si mesmo e encontra o sentido de sua vida. Esta é sua vocação. A pessoa virtuosa é aquela que se empenha na arte de pensar, aperfeiçoando-se nela como caminho de realização e de construção de sentido para a vida, em vista da verdade, da justiça e da liberdade.

O contrário disso é a normalidade da irracionalidade, ou seja, entregando-nos à preguiça mental e à negação de nossa consciência caminharemos para a extinção de nossa humanidade, extinção já em vias de desenvolvimento. Sem consciência crítica estamos fadados a sermos membros da grande massa de manobra, vítimas dos que manipulam e exploram a multidão errante, que não sabe para onde vai, sobrevivendo e sofrendo, entregue à própria sorte.


Tiago de França

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