quarta-feira, 30 de abril de 2014

Filosofia e mediocridade

         
         Na era do facebook e do Whatsapp, a arte de pensar se torna cada vez mais dolorosa. Esta afirmação orientará esta breve reflexão. Pensar dói e esta dor tem sido insistentemente evitada. Para quem está habituado à reflexão sobre si mesmo e sobre a vida, ficar sem pensar parece coisa absurda e até desastrosa. De fato, uma análise não muito profunda do mundo atual nos leva, inevitavelmente, à afirmação de que os desastres humanos e naturais decorrem dessa ausência de pensamento, dessa fuga desesperada do ser humano quanto ao pensar. Foge-se deste como foge o diabo da cruz.

            O facebook é um exemplo eficaz da atual situação do pensamento humano. É o retrato da vida superficial e banalizada. Nele, as pessoas expressam seus gostos e sentimentos, suas angústias e alegrias. Algumas postagens são um verdadeiro escândalo! As pessoas, sem pudor algum, externam seus preconceitos, seus medos, suas fobias, suas frustrações e também suas preocupações. A regra é curtir e ser curtido. Cria-se uma necessidade doentia de ser visto e de chamar a atenção. É a carência virtual da atenção, mas esta tem um grave problema.

            Antes que o leitor se estresse e se recuse a continuar lendo e curtindo o presente texto, queremos dizer que não somos contrários à necessária comunicação entre as pessoas e culturas. O ser humano é epifania no mundo, ou seja, manifestação evolutiva e irresistível. O desejo de sair de si e ir ao encontro, expor-se e aparecer, parece ser coisa comum e inevitável. Somos seres que aparecemos à percepção recíproca. Quer queiramos, quer não, não estamos estagnados, fomos criados para fora, para a ida, a partida, para o mundo; mesmo que este mundo seja nosso próprio interior, mas a vida é uma constante saída, por mais dolorosa que seja. Somos seres inquietos.

            Pois bem, tendo confortado o leitor que possa ter se deixado tomar pelo vício do uso das redes sociais, voltemos ao problema da atenção. Por mais que tais redes nos convençam de que estamos na moda, de que somos curtidos e apreciados, não nos enganemos. Isso parece ser ilusão. A melhor curtida continua sendo aquela que acontece na contemplação real dos rostos, dos quais surge o apelo da permanência com o outro. No facebook, as pessoas se curtem, superficial e virtualmente, sem contato físico, sem cheiro, sem a devida e necessária aproximação dos corpos. Tudo parece muito frio, fragmentado, liquidamente colorido. Nunca se sabe o sentimento do outro, sabe-se de suas expressões nas imagens e nas palavras que, muitas vezes, são reproduzidas e compartilhadas sem reflexão nenhuma.

            Com isto tratamos muito mal e conceituamos equivocadamente a atenção. Esta continua sendo o lugar da percepção física que instiga o encontro com o outro e neste encontro acontece o maravilhoso fenômeno do autoconhecimento e do autêntico progresso humano. Por fim, é preciso sintetizar na seguinte ideia: atenção, a necessária atenção, carece de presença real do outro; presença que questiona, que atrai, que gera o que há de mais humano nas pessoas. A atenção das redes sociais é um mero curtir entre conhecidos e desconhecidos. No fundo, quase ninguém está sendo percebido, pois a qualquer momento pode ser, rápida e friamente, deletado.

            Até aqui estamos querendo falar da importância da filosofia para a vida. No senso comum se afirma que os pensadores são uns desocupados que se ocupam com o que não existe, com ideias puramente abstratas que não levam a nada. Outros ainda acham que os filósofos são uns loucos, que encontram e criam questões que não deveriam existir, pois mais perturbam do que orientam. Estas pessoas, que não sabem o que é filosofia nem o que vem a ser um filósofo, cometem um equívoco simples, do qual não tem a mínima consciência e que pode ser entendido da seguinte forma: dominadas pelo medo de si mesmas, esforçam-se a todo o momento para evitar o pensar a respeito de si mesmas.

            Filosoficamente, a maior virtude da filosofia é levar o homem a pensar sobre si mesmo, pois somente assim passa a compreender-se e a compreender o outro. Os filósofos sabem que o mal do homem é esta ausência de autocompreensão. As perguntas levantadas pela filosofia conduzem à libertação da vida medíocre. O que seria a mediocridade? Muito se tem a dizer sobre ela, mas aqui nos interessa afirmar que a mediocridade se refere ao estado de vida da pessoa que visa somente atender suas necessidades vitais e instintivas: comer, caminhar, dormir, cantar, rir, chorar, fazer sexo etc., um mero caminhar para a morte. Para os filósofos, uma vida sem reflexão perde seu sentido, pois o homem não é um mero animal, preso aos seus instintos. O homem cria arte e por desta se constrói, e toda forma de arte é essencialmente filosófica.

            Assim, uma simples pergunta como esta: O que ando fazendo da minha vida? é capaz de mudar totalmente o rumo da existência, “obrigando” a pessoa a pensar sobre os motivos de seus pensamentos, de suas palavras e de suas ações. A vida se torna verdadeiramente apaixonante quando o ser humano se envereda pelo caminho mais certo e incerto de todos: o do pensar sobre si mesmo. Certo porque aponta para o sentido de todas as coisas e incerto porque não garante uma verdade absoluta.

Olhamos para as pessoas e logo vem à mente a seguinte expressão: Parece que fulano não se enxerga! Esse não enxergar-se é sintoma latente de falta de autorreflexão. Outros, porém, também podem olhar para nós e dizer: Sicrano parece que não se enxerga! O que o impede de ver a realidade? Só há visão com reflexão. O olhar humano está inevitavelmente condicionado pela reflexão. O mesmo se pode dizer a respeito de nosso jeito de ser e de sentir: está condicionado pela nossa maneira de ver a nós mesmos e ao mundo.  

            Por fim, consideremos a mediocridade expressa no comportamento humano atual. São filhas da mediocridade: a imaturidade e a cegueira. É uma filiação lógica. Se a pessoa não pensa sobre vida e a respeito de seu próprio modo de ser, está fadada ao fracasso de si mesma. Não há crescimento algum. A pessoa não evolui para melhor. A imaturidade consiste nisso: ela pensa que já alcançou o cume da maturidade e passa a achar que o problema está sempre no outro. Este é que deve suportá-la. Aqui está a origem de muitos conflitos interpessoais. Quando não pensa dessa forma, a pessoa sabe da necessidade de progredir, mas a preguiça mental a impede de crescer. Há uma acomodação total. Todos caminham, o movimento do mundo não para e a pessoa insiste em permanecer no mesmo lugar. Como diz a música: “Eu nasci assim, eu sou bem assim e vou ser sempre assim”...

            A cegueira da consciência é coisa extremamente perigosa na vida humana. Tal cegueira ocasiona o caos na sociedade. Por causa dela, a corrupção aumenta e o mundo não progride para melhor. Um cego de consciência se transforma em massa de manobra: não sabe onde se encontra nem para onde vai. Vive segundo os modismos de época: resume-se a ser igual a todo mundo, fazendo o que os outros fazem. Dessa forma, a manipulação se torna absoluta e a pessoa não consegue ser ela mesma. Uma vez tendo se recusado a pensar por si mesma, não consegue enxergar que está sendo manipulada.

            Por fim, é preciso considerar que toda pessoa é livre para levar uma vida autêntica ou inautêntica. A primeira opção, marcada pela reflexão, é uma via mais dolorosa, cheia de aventuras e de novidades. A segunda, marcada pela superficialidade e pela ilusão, é uma via fácil e de consequências trágicas.

Um dia, visitando um enfermo idoso em um hospital, escutava seu lamento: “Seu moço, estou profundamente angustiado, pois sei que vou morrer e não vejo sentido nesses anos todos que passei neste mundo. Minha vida não passou de uma ilusão. Agora estou diante da morte e se eu tivesse parado para pensar em muitas coisas que eu fiz, não as teria feito. Sempre tive tudo na vida, mas não conheci a tal da felicidade...” O auge do sofrimento desperta a muitos do sono da mediocridade e da cegueira. Outros, porém, possuem um sono demasiadamente pesado: mesmo sofrendo não acordam. Passam a vida dormindo e morrem quase do mesmo jeito que nasceram.

            Tiago de França

Um comentário:

Marco Antonio Osório da Costa disse...

Eu até queria comentar, viu, Tiago. Mas, diante do que você escreveu, qualquer coisa que se diga, será irrelevante.
A única coisa que ainda me atrevo a fazer é, mais uma vez, recomendar-lhe a leitura da obra de Hannah Arendt, vai lhe fazer bem saber que anda em tão boa companhia.
Especialmente sobre a questão dessa falta do pensar e seus reflexos na vida das pessoas - "A vida do espírito - o pensar, o querer, o julgar" e "Responsabilidade e Julgamento".
E também, bem a propósito do que você aponta no sétimo parágrafo de seu texto, "A condição humana".