O grande teólogo alemão
Karl Rahner, um dos maiores do séc. XX, em certa ocasião afirmou que o cristão
do séc. XXI seria um místico, ou não seria cristão. No meio teológico, este
pensamento de K. Rahner soou como uma profecia. Ele mesmo foi um teólogo
místico, assim como alguns outros, que ousaram não somente repensar a Teologia,
como também fazer a experiência profundamente mística.
Os
próprios místicos encontram dificuldades para descrever a sua experiência. De fato,
considerando a experiência de tantos místicos da história cristã (Santa Teresa
de Ávila, Santa Teresinha do Menino Jesus, São João da Cruz, São Vicente de
Paulo, Dom Helder Câmara, Anthony de Mello, SJ e tantas outras mulheres e
homens), não é fácil descrever e conceituar a experiência dos místicos. Portanto,
ousaremos algumas afirmações a partir do estudo e da oração daquilo que nos
parece evidente na experiência destes seguidores e seguidoras de Jesus.
Antes de qualquer coisa, é preciso considerar que cada
místico vive a seu modo: é único e irrepetível. Recebeu de Deus a graça de
viver em um determinado contexto e a partir dele faz nascer uma experiência indizível.
Deste modo, o místico não é alguém separado por Deus e retirado do mundo para
viver uma experiência de intimidade com Deus. Tal separação do mundo seria
fuga. Deus não retira ninguém do mundo por Ele criado. É no mundo que os
místicos fazem a sua experiência de contato direto com Deus. A observação
atenta e rigorosa das experiências dos místicos nos faz ver a unicidade e/ou a particularidade
de cada um. É coisa do Espírito de Deus.
Este Espírito não cria uniformidade, mas diversidade: eis
uma característica da vida mística. Neste sentido, os místicos não seguem
padrões sociais, culturais nem religiosos. Não há sistema no mundo que consiga
enquadrar os místicos. Estes sempre escapam, estão além, ultrapassam toda e
qualquer organização sistemática. Por isso, a religião sempre desconfiou dos
místicos, apesar destes não fazerem campanha contra a religião.
Alguns
místicos foram religiosos e muitos foram julgados, condenados, torturados e
mortos pela Igreja nos períodos medieval e moderno. Há místicos fora da
religião, que não fazem parte do grupo oficial dos seguidores de Jesus, mas
estão intimamente unidos a Jesus muito mais do que tantos que se julgam
segui-lo. São poucos os místicos que conseguem, quando descobertos, conviver
pacificamente no interior do sistema religioso, pois este tende a ignorá-los e expulsá-los.
Os místicos são pessoas pacíficas, que vivem a
experiência de Jesus: a experiência da não violência. Isto não oculta a força
daquilo que podemos denominar de violência
mística. Os gestos e palavras dos místicos são simples e, por isto mesmo,
carregados de verdade e profecia. A vida mística é essencialmente profética
porque está na contramão do mundo. Os místicos ousam ser diferentes, e somente
o fato de serem diferentes causa muito incômodo naqueles que vivem dentro e
fora da religião.
O
que ocorre muitas vezes é o seguinte: uma vez que é demais assassinar um
místico, pois sua segurança está em Deus e isto é visível, as pessoas tendem a
venerá-lo, mas tal veneração é desprovida da assimilação da mensagem cristã
anunciada por ele. As pessoas acham bonito um Francisco de Assis, grande
místico do séc. XIII, mas desconhecem sua mensagem, que é a mensagem de Jesus. Recusam-se
a conhecê-la.
Os místicos não são daqui nem dali, mas estão no lugar no
qual a inspiração apontou para permanecerem. Ninguém consegue se apoderar
deles, pois são como Jesus: vivem passando pelos povoados e pelos caminhos da
Galileia de todos os tempos. Eles não se deixam dominar por ninguém, pois são
guiados pelo Espírito e somente a este devem obediência.
Eles
próprios se surpreendem com a iluminação que vem do Alto porque tal iluminação
lhes revela o escândalo que é o amor de Deus. São profundamente marcados por
este amor libertador e misericordioso. Todos aqueles que têm contato com os
místicos sentem a leveza, a suavidade, a força, o encanto, a clareza e a
ternura de Deus. Esta iluminação é vivida na liberdade e na humildade, no
desapego e na alegria.
Teríamos tantas outras coisas a falar da vida mística,
que daria volumes grandiosos de livros e, mesmo assim, tal estilo de vida ainda
não seria abarcado plenamente. Qual o
segredo dos místicos? É o que muita gente quer saber. Os próprios místicos
não sabem responder com exatidão esta pergunta e se soubessem, diriam com toda
humildade. Na verdade, para esta pergunta não há resposta exata. Não existe exatidão
na vida mística, a não ser o Absoluto que é Deus, mas este não está preso à
exatidão conceitual.
Particularmente,
diria que a base fundamental da vida mística é a liberdade. Os místicos
conhecem o que significa a liberdade de filho e filha de Deus. Eles gozam desta
liberdade. E esta os faz pessoas livres de tudo e de todos, ao mesmo tempo em
que vivem em meio a tudo e a todos. Aparentemente, somente alguns são
reconhecidos porque são tão simplesmente discretos que não chamam a atenção de
ninguém.
Por fim, é preciso afirmar com muita brevidade algo a
respeito da vida íntima dos místicos com Deus. Ah, quanta gozo e alegria! Quanta
liberdade e suavidade! Quanta beleza e esplendor! Eles vivem naquele famoso
movimento bíblico de subida e descida da montanha. Somente eles conhecem o
sentimento que tomou conta de Pedro, Tiago e João no momento da transfiguração
de Jesus. A vida íntima dos místicos é uma eterna transfiguração. Nesta, eles
vivem a graça de permanecerem em si mesmos e no conhecimento da verdade de si
mesmos, dos outros e do mundo.
A
alegria dos místicos é a verdadeira alegria, e gozam de uma paz infinita, que o
mundo não pode dar nem tirar. Experimentam uma saudade da Casa do Senhor, que
os faz peregrinos incansáveis que se colocam no caminho daquele que é a Fonte,
a Luz, o Guia, o Tudo de suas vidas. Tudo isto e muito mais descreve uma
centelha de luz daquilo que vivem neste mundo os místicos. É o conhecimento direto
do Pai no Filho e na força amorosa do Espírito, sem prisões, sem medos e
ilusões, sem mediações e sem decepções, no amor e na liberdade. Os místicos só
sabem dizer em sua oração e no cotidiano de suas vidas: “Ó Pai, que a minha vida seja um eterno Amém ao teu infinito amor!”
Tiago
de França
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