quinta-feira, 10 de julho de 2014

A liberdade dos místicos

             
           O grande teólogo alemão Karl Rahner, um dos maiores do séc. XX, em certa ocasião afirmou que o cristão do séc. XXI seria um místico, ou não seria cristão. No meio teológico, este pensamento de K. Rahner soou como uma profecia. Ele mesmo foi um teólogo místico, assim como alguns outros, que ousaram não somente repensar a Teologia, como também fazer a experiência profundamente mística.  

Os próprios místicos encontram dificuldades para descrever a sua experiência. De fato, considerando a experiência de tantos místicos da história cristã (Santa Teresa de Ávila, Santa Teresinha do Menino Jesus, São João da Cruz, São Vicente de Paulo, Dom Helder Câmara, Anthony de Mello, SJ e tantas outras mulheres e homens), não é fácil descrever e conceituar a experiência dos místicos. Portanto, ousaremos algumas afirmações a partir do estudo e da oração daquilo que nos parece evidente na experiência destes seguidores e seguidoras de Jesus.

            Antes de qualquer coisa, é preciso considerar que cada místico vive a seu modo: é único e irrepetível. Recebeu de Deus a graça de viver em um determinado contexto e a partir dele faz nascer uma experiência indizível. Deste modo, o místico não é alguém separado por Deus e retirado do mundo para viver uma experiência de intimidade com Deus. Tal separação do mundo seria fuga. Deus não retira ninguém do mundo por Ele criado. É no mundo que os místicos fazem a sua experiência de contato direto com Deus. A observação atenta e rigorosa das experiências dos místicos nos faz ver a unicidade e/ou a particularidade de cada um. É coisa do Espírito de Deus.

            Este Espírito não cria uniformidade, mas diversidade: eis uma característica da vida mística. Neste sentido, os místicos não seguem padrões sociais, culturais nem religiosos. Não há sistema no mundo que consiga enquadrar os místicos. Estes sempre escapam, estão além, ultrapassam toda e qualquer organização sistemática. Por isso, a religião sempre desconfiou dos místicos, apesar destes não fazerem campanha contra a religião.  

Alguns místicos foram religiosos e muitos foram julgados, condenados, torturados e mortos pela Igreja nos períodos medieval e moderno. Há místicos fora da religião, que não fazem parte do grupo oficial dos seguidores de Jesus, mas estão intimamente unidos a Jesus muito mais do que tantos que se julgam segui-lo. São poucos os místicos que conseguem, quando descobertos, conviver pacificamente no interior do sistema religioso, pois este tende a ignorá-los e expulsá-los.

            Os místicos são pessoas pacíficas, que vivem a experiência de Jesus: a experiência da não violência. Isto não oculta a força daquilo que podemos denominar de violência mística. Os gestos e palavras dos místicos são simples e, por isto mesmo, carregados de verdade e profecia. A vida mística é essencialmente profética porque está na contramão do mundo. Os místicos ousam ser diferentes, e somente o fato de serem diferentes causa muito incômodo naqueles que vivem dentro e fora da religião.

O que ocorre muitas vezes é o seguinte: uma vez que é demais assassinar um místico, pois sua segurança está em Deus e isto é visível, as pessoas tendem a venerá-lo, mas tal veneração é desprovida da assimilação da mensagem cristã anunciada por ele. As pessoas acham bonito um Francisco de Assis, grande místico do séc. XIII, mas desconhecem sua mensagem, que é a mensagem de Jesus. Recusam-se a conhecê-la.

            Os místicos não são daqui nem dali, mas estão no lugar no qual a inspiração apontou para permanecerem. Ninguém consegue se apoderar deles, pois são como Jesus: vivem passando pelos povoados e pelos caminhos da Galileia de todos os tempos. Eles não se deixam dominar por ninguém, pois são guiados pelo Espírito e somente a este devem obediência.  

Eles próprios se surpreendem com a iluminação que vem do Alto porque tal iluminação lhes revela o escândalo que é o amor de Deus. São profundamente marcados por este amor libertador e misericordioso. Todos aqueles que têm contato com os místicos sentem a leveza, a suavidade, a força, o encanto, a clareza e a ternura de Deus. Esta iluminação é vivida na liberdade e na humildade, no desapego e na alegria.

            Teríamos tantas outras coisas a falar da vida mística, que daria volumes grandiosos de livros e, mesmo assim, tal estilo de vida ainda não seria abarcado plenamente. Qual o segredo dos místicos? É o que muita gente quer saber. Os próprios místicos não sabem responder com exatidão esta pergunta e se soubessem, diriam com toda humildade. Na verdade, para esta pergunta não há resposta exata. Não existe exatidão na vida mística, a não ser o Absoluto que é Deus, mas este não está preso à exatidão conceitual.

Particularmente, diria que a base fundamental da vida mística é a liberdade. Os místicos conhecem o que significa a liberdade de filho e filha de Deus. Eles gozam desta liberdade. E esta os faz pessoas livres de tudo e de todos, ao mesmo tempo em que vivem em meio a tudo e a todos. Aparentemente, somente alguns são reconhecidos porque são tão simplesmente discretos que não chamam a atenção de ninguém.

            Por fim, é preciso afirmar com muita brevidade algo a respeito da vida íntima dos místicos com Deus. Ah, quanta gozo e alegria! Quanta liberdade e suavidade! Quanta beleza e esplendor! Eles vivem naquele famoso movimento bíblico de subida e descida da montanha. Somente eles conhecem o sentimento que tomou conta de Pedro, Tiago e João no momento da transfiguração de Jesus. A vida íntima dos místicos é uma eterna transfiguração. Nesta, eles vivem a graça de permanecerem em si mesmos e no conhecimento da verdade de si mesmos, dos outros e do mundo.

A alegria dos místicos é a verdadeira alegria, e gozam de uma paz infinita, que o mundo não pode dar nem tirar. Experimentam uma saudade da Casa do Senhor, que os faz peregrinos incansáveis que se colocam no caminho daquele que é a Fonte, a Luz, o Guia, o Tudo de suas vidas. Tudo isto e muito mais descreve uma centelha de luz daquilo que vivem neste mundo os místicos. É o conhecimento direto do Pai no Filho e na força amorosa do Espírito, sem prisões, sem medos e ilusões, sem mediações e sem decepções, no amor e na liberdade. Os místicos só sabem dizer em sua oração e no cotidiano de suas vidas: “Ó Pai, que a minha vida seja um eterno Amém ao teu infinito amor!”


Tiago de França

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