Esta reflexão deseja
ser uma continuação da que partilhamos no último fim de semana (cf. “O Reino de
Deus hoje”, em nosso blogue COM JESUS NA CONTRAMÃO, na Internet). Considerando o
texto evangélico que a Igreja católica vai partilhar com seus fiéis neste fim
de semana (cf. Mt 13, 44 – 52), continuidade do texto do fim de semana passado,
iremos prosseguir nossa reflexão a
respeito do Reino de Deus. Hoje, iremos dar ênfase à nítida relação existente
entre Jesus, o Reino e a Igreja. O que diremos a respeito da Igreja católica,
também serve para as demais Igrejas cristãs.
Jesus
e o Reino de Deus
Os judeus
esperavam um Messias poderoso, que iria restaurar o povo de Israel, inaugurando
o domínio do Senhor dos Exércitos sobre a face da terra, libertando-os do poder
do Império Romano. Resumidamente, esta era a visão que tinham do Messias
prometido e anunciado pelos profetas.
Este
Messias não veio e, segundo o cristianismo, não virá. Para quem professa a fé
cristã, Jesus de Nazaré é o Cristo, o Ungido de Deus, o Escolhido, o Messias
prometido. Um Messias rejeitado, perseguido, torturado e morto,
vergonhosamente, na cruz. Jesus, o Nazareno, frustrou as expectativas judaicas
e deixou um grupo de mulheres e homens que iniciaram um movimento que se
transformou, com o passar do tempo, em uma das maiores religiões da humanidade:
o cristianismo.
O
testemunho de Jesus, contido nas narrativas evangélicas, deixa bem claro uma
verdade que até hoje a maioria dos cristãos não aceita: Jesus não quis fundar
uma religião. Portanto, ele não é o fundador do cristianismo. Jesus abriu um
caminho, inaugurando o Reino de Deus. Muito depois dele, surgiu a religião
cristã, com seu sistema ritual, doutrinal, hierárquico e institucional.
Nenhuma
Igreja cristã poderia sequer conceber a ideia de um Jesus fundador, pois tal
afirmação não tem nenhuma base nas Escrituras Sagradas. A cristologia moderna progressista
não cansa de repetir o que aqui estamos explicitando. Isto já não é nenhuma
novidade. Já não mais escandaliza. Portanto, em tempos pós-modernos as Igrejas
falam a ouvidos moucos quando insistem em apresentar Jesus como fundador do
cristianismo. Seria muito pouco pra Jesus sair do seio do Pai para vir a este
mundo com a missão de fundar uma religião. Não podemos reduzir a sua missão a
isso. Religião é coisa de seres humanos carentes de segurança e de caminhos que
conduzam a Deus.
O Reino de Deus não é uma religião. Esta afirmação parece
óbvia, mas na cristandade a Igreja católica se confundiu com o Reino de Deus e
chegou a afirmar, até recentemente, que fora dela não existia salvação. É um
absurdo, mas isto aconteceu. Infelizmente, ainda há cristãos, tanto entre
leigos quanto no clero, que continuam pensando ser verdade tal absurdo. Este cai
por terra se fizermos uma simples indagação: Se a Igreja católica fosse, de
fato, o único caminho de salvação, como ficaria os demais cristãos? E os
crentes das demais religiões, não seriam salvos?
Certamente, os que afirmaram tal absurdo e que
até hoje o sustentam, simplesmente respondem: Querem ser salvos? Que se
convertam à Igreja católica! Logo se percebe a ilusão histórica que insiste em
sobreviver, mesmo fadada ao irremediável desaparecimento: Toda a humanidade tem
que se converter ao cristianismo, preferencialmente à Igreja católica! Quando isto
vai acontecer? Nunca! Este é o sonho de Deus? Jamais!
Quando
meditamos o evangelho, vemos claramente Jesus concentrado na sua missão: a
inauguração do Reino de seu Pai. O Nazareno não pensava em outra coisa, não
queria mais nada, não projetou algo diferente, mas empenhou-se em cumprir a
vontade de seu Pai: anunciou o Reino de Deus. Este é o centro de sua mensagem,
o centro do evangelho.
Na
pregação do evangelho nada poderia ter substituído este núcleo fundamental. Sem
referência ao Reino, a pregação se esvazia, perde o seu sentido. Jesus não
falava de outra coisa a não ser do Reino. Suas palavras e gestos tinham como
finalidade explicitá-lo. Nada o desviava em sua missão. Ele a cumpriu até a
morte de cruz. O Reino consiste na construção de um novo céu e uma nova terra,
onde justiça e paz se abraçarão. Em todas as épocas da história cristã, a
pregação do Reino sempre foi imprescindível, pois quando o tema do Reino é
marginalizado, sua realidade também é.
A
história mostra que durante toda a cristandade o Reino foi esquecido e em seu
lugar a busca pelo poder absorveu a Igreja, transformando-a em uma das
instituições mais poderosas do mundo. Jesus revelou que a construção do Reino
não passa pelo poder, mas pelo oposto: manifesta-se e acontece entre os pobres,
os despossuídos deste mundo, o sem-poder.
O
Reino de Deus e a Igreja
Quando se
entregou à luta pelo poder, a Igreja se esqueceu do evangelho e uma vez esquecendo-se
deste, simultaneamente, o Reino foi marginalizado. Como ocorreu essa
marginalização? Aconteceu com o esquecimento dos pobres e suas causas. Aliada aos
poderosos, reis e príncipes, a hierarquia da Igreja não pregava o evangelho,
mas legitimava os poderosos e seus projetos ambiciosos de exploração.
Aos
pobres eram dirigidas palavras de conformação. “Deus criou os ricos e os pobres: os primeiros para serem felizes, os
pobres para sofrerem, servindo aqueles”: esta foi a ideologia dominante que
fundamentava os sermões eclesiásticos em tempos imperiais. Jesus de Nazaré
pregou o oposto disso.
Durante
toda a cristandade, com exceção de um Francisco de Assis, de um São Vicente de
Paulo e alguns outros, os pobres foram meros destinatários de uma pregação
vazia e de uma caridade legitimadora da escravidão. A caridade que não tem a
justiça como fundamento é legitimadora de toda espécie de escravidão. Os poderosos
sempre se interessaram em ajudar a Igreja a praticar este tipo de caridade para
com os pobres. Alimentava-se uma Igreja da servidão com raríssimos sinais de
libertação.
A
teologia do sofrimento se sobressaiu e o povo passou a celebrar com mais vigor
a Sexta-feira da Paixão que o Domingo da Ressurreição. Este mesmo povo passou a
achar normal a íntima relação entre o clero e os poderosos. Os padres e bispos
passaram a ser vistos como homens do poder, autoridades a serem obedecidas e
veneradas. Como toda autoridade vive num patamar superior, então o clero sempre
esteve distante do povo. Até hoje é assim: bispos e padres, salvo exceções, só
se encontram com o povo na celebração dos sacramentos. Fora disso, cada um vai
cuidar de sua vida! Jesus viveu de maneira totalmente diferente: era um leigo
que vivia no meio do povo simples, levando uma vida despojada, distante da
classe sacerdotal.
Nas
cidades interioranas, nas festas dos padroeiros, o lugar do padre é ao lado do
prefeito; nas capitais, o lugar do bispo é ao lado do governador. O povo possui
esse esquema na mente e sabe muito bem como funciona. Para o povo, a Igreja é
rica. O clero sempre se concebeu como detentor do poder espiritual, numa luta
constante para submeter a seus caprichos o poder temporal. Com a queda das
monarquias e com o Concílio Vaticano II, esta realidade diminuiu, mas ainda há
fortes resquícios dela em toda a Igreja, principalmente nos países que foram
vítimas do colonialismo.
Não
há lugar para sequer pensar no Reino de Deus em uma Igreja absorvida pela sede
de poder. O problema do poder continua sendo um dos males que afetam a vida da
Igreja. O Reino acontece quando o poder se coloca a serviço da transformação da
humanidade. Transformar o poder em serviço é o problema que parece sem solução.
Esta transformação acontece, em primeiro lugar, a partir de uma mudança de
mentalidade. É preciso repensar os esquemas mentais para, em seguida, haver
mudanças na forma de agir no mundo. O Reino de Deus começa a acontecer na
Igreja quando esta começa a agir conforme o evangelho de Jesus.
A partir do Vaticano II se concebeu a ideia de que a
Igreja é instrumento a serviço do Reino de Deus. O que isto significa? Há pobres
lutando pela terra para nela viver e trabalhar? Lá é o lugar da Igreja! Há desempregados
padecendo com suas famílias? Lá é o lugar da Igreja! Há pessoas morrendo de
fome nas avenidas, ruas e vielas? Lá é o lugar da Igreja! Há índios sendo
expulsos de suas terras? Lá é o lugar da Igreja! Há prostitutas sendo
exploradas e violentadas? Lá é o lugar da Igreja! Há homossexuais sendo
discriminados, juntamente com negros e outras vítimas da discriminação? Lá é o
lugar da Igreja! Há pobres sem moradia, sem assistência médica, abandonados nos
leitos dos hospitais e em suas casas? Lá é o lugar da Igreja! Há mulheres
lutando pela igualdade de gênero? Lá é o lugar da Igreja! Há camponeses sendo
explorados nas fazendas dos ricos? Lá é o lugar da Igreja! Há idosos sendo
desrespeitados em seus direitos? Lá é o lugar da Igreja! Estes e tantos outros
lugares constituem a messe do Senhor, os lugares de encontro com o Cristo
crucificado.
Quem
é a Igreja? A Igreja é o Povo de Deus, o conjunto de leigos e ordenados. Juntos,
todos são chamados ao encontro com Jesus que acontece nestes lugares
mencionados. Nestes lugares acontece o Reino de Deus. Neles se celebra, de
fato, o verdadeiro culto que agrada a Deus. Quando vai a estes lugares de
encontro com Jesus, a Igreja passa a ser perseguida pelos poderosos porque se
transforma em instrumento de profecia, de denúncia e anúncio. Transforma-se em
pedra de tropeço no caminho dos poderosos.
Somente
assim pode ser reconhecidamente missionária, advogada dos pobres, peregrina
rumo ao Pai. Esta Igreja militante junto aos pobres nós a chamamos de Igreja
dos Pobres. Ela surgiu nos tempos apostólicos, desapareceu na
cristandade e ressurgiu na América Latina com as conferências de Medellín
(1968) e Puebla (1979). A conferência de Aparecida quis ressuscitá-la, mas não
conseguiu. O papa Francisco quer ressuscitá-la, mas não está conseguindo.
A
maioria dos hierarcas até aprecia as palavras de Francisco, mas somente aprecia.
Na verdade, não querem sair e partir, mas querem permanecer nos palácios e na
vida tranquila, distantes do Reino de Deus; querem seguir Jesus às escondidas,
para não correrem perigo algum. O Reino de Deus foi, é e continuará sendo
trabalho perigoso, disponível somente para os corajosos e audaciosos, que
possuem pouco amor ao próprio pescoço, entregues à conquista violenta do novo
céu e da nova terra. Enquanto isso, o Espírito do Senhor está aí, procurando
abrigo nos corações generosos, para colocar mulheres e homens no caminho de
Jesus de Nazaré. Quem quiser ousar, acolha-o em seu coração. Somente assim, a conversão
é certa e a festa vai ser bonita de ver!
Tiago de França
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