sábado, 26 de julho de 2014

Jesus de Nazaré, o Reino de Deus e a Igreja

             
             Esta reflexão deseja ser uma continuação da que partilhamos no último fim de semana (cf. “O Reino de Deus hoje”, em nosso blogue COM JESUS NA CONTRAMÃO, na Internet). Considerando o texto evangélico que a Igreja católica vai partilhar com seus fiéis neste fim de semana (cf. Mt 13, 44 – 52), continuidade do texto do fim de semana passado,  iremos prosseguir nossa reflexão a respeito do Reino de Deus. Hoje, iremos dar ênfase à nítida relação existente entre Jesus, o Reino e a Igreja. O que diremos a respeito da Igreja católica, também serve para as demais Igrejas cristãs.

Jesus e o Reino de Deus

            Os judeus esperavam um Messias poderoso, que iria restaurar o povo de Israel, inaugurando o domínio do Senhor dos Exércitos sobre a face da terra, libertando-os do poder do Império Romano. Resumidamente, esta era a visão que tinham do Messias prometido e anunciado pelos profetas.  

Este Messias não veio e, segundo o cristianismo, não virá. Para quem professa a fé cristã, Jesus de Nazaré é o Cristo, o Ungido de Deus, o Escolhido, o Messias prometido. Um Messias rejeitado, perseguido, torturado e morto, vergonhosamente, na cruz. Jesus, o Nazareno, frustrou as expectativas judaicas e deixou um grupo de mulheres e homens que iniciaram um movimento que se transformou, com o passar do tempo, em uma das maiores religiões da humanidade: o cristianismo.

O testemunho de Jesus, contido nas narrativas evangélicas, deixa bem claro uma verdade que até hoje a maioria dos cristãos não aceita: Jesus não quis fundar uma religião. Portanto, ele não é o fundador do cristianismo. Jesus abriu um caminho, inaugurando o Reino de Deus. Muito depois dele, surgiu a religião cristã, com seu sistema ritual, doutrinal, hierárquico e institucional.

Nenhuma Igreja cristã poderia sequer conceber a ideia de um Jesus fundador, pois tal afirmação não tem nenhuma base nas Escrituras Sagradas. A cristologia moderna progressista não cansa de repetir o que aqui estamos explicitando. Isto já não é nenhuma novidade. Já não mais escandaliza. Portanto, em tempos pós-modernos as Igrejas falam a ouvidos moucos quando insistem em apresentar Jesus como fundador do cristianismo. Seria muito pouco pra Jesus sair do seio do Pai para vir a este mundo com a missão de fundar uma religião. Não podemos reduzir a sua missão a isso. Religião é coisa de seres humanos carentes de segurança e de caminhos que conduzam a Deus.  

            O Reino de Deus não é uma religião. Esta afirmação parece óbvia, mas na cristandade a Igreja católica se confundiu com o Reino de Deus e chegou a afirmar, até recentemente, que fora dela não existia salvação. É um absurdo, mas isto aconteceu. Infelizmente, ainda há cristãos, tanto entre leigos quanto no clero, que continuam pensando ser verdade tal absurdo. Este cai por terra se fizermos uma simples indagação: Se a Igreja católica fosse, de fato, o único caminho de salvação, como ficaria os demais cristãos? E os crentes das demais religiões, não seriam salvos?

 Certamente, os que afirmaram tal absurdo e que até hoje o sustentam, simplesmente respondem: Querem ser salvos? Que se convertam à Igreja católica! Logo se percebe a ilusão histórica que insiste em sobreviver, mesmo fadada ao irremediável desaparecimento: Toda a humanidade tem que se converter ao cristianismo, preferencialmente à Igreja católica! Quando isto vai acontecer? Nunca! Este é o sonho de Deus? Jamais!

Quando meditamos o evangelho, vemos claramente Jesus concentrado na sua missão: a inauguração do Reino de seu Pai. O Nazareno não pensava em outra coisa, não queria mais nada, não projetou algo diferente, mas empenhou-se em cumprir a vontade de seu Pai: anunciou o Reino de Deus. Este é o centro de sua mensagem, o centro do evangelho.

Na pregação do evangelho nada poderia ter substituído este núcleo fundamental. Sem referência ao Reino, a pregação se esvazia, perde o seu sentido. Jesus não falava de outra coisa a não ser do Reino. Suas palavras e gestos tinham como finalidade explicitá-lo. Nada o desviava em sua missão. Ele a cumpriu até a morte de cruz. O Reino consiste na construção de um novo céu e uma nova terra, onde justiça e paz se abraçarão. Em todas as épocas da história cristã, a pregação do Reino sempre foi imprescindível, pois quando o tema do Reino é marginalizado, sua realidade também é.

A história mostra que durante toda a cristandade o Reino foi esquecido e em seu lugar a busca pelo poder absorveu a Igreja, transformando-a em uma das instituições mais poderosas do mundo. Jesus revelou que a construção do Reino não passa pelo poder, mas pelo oposto: manifesta-se e acontece entre os pobres, os despossuídos deste mundo, o sem-poder.

O Reino de Deus e a Igreja

            Quando se entregou à luta pelo poder, a Igreja se esqueceu do evangelho e uma vez esquecendo-se deste, simultaneamente, o Reino foi marginalizado. Como ocorreu essa marginalização? Aconteceu com o esquecimento dos pobres e suas causas. Aliada aos poderosos, reis e príncipes, a hierarquia da Igreja não pregava o evangelho, mas legitimava os poderosos e seus projetos ambiciosos de exploração.  

Aos pobres eram dirigidas palavras de conformação. “Deus criou os ricos e os pobres: os primeiros para serem felizes, os pobres para sofrerem, servindo aqueles”: esta foi a ideologia dominante que fundamentava os sermões eclesiásticos em tempos imperiais. Jesus de Nazaré pregou o oposto disso.  

Durante toda a cristandade, com exceção de um Francisco de Assis, de um São Vicente de Paulo e alguns outros, os pobres foram meros destinatários de uma pregação vazia e de uma caridade legitimadora da escravidão. A caridade que não tem a justiça como fundamento é legitimadora de toda espécie de escravidão. Os poderosos sempre se interessaram em ajudar a Igreja a praticar este tipo de caridade para com os pobres. Alimentava-se uma Igreja da servidão com raríssimos sinais de libertação.

A teologia do sofrimento se sobressaiu e o povo passou a celebrar com mais vigor a Sexta-feira da Paixão que o Domingo da Ressurreição. Este mesmo povo passou a achar normal a íntima relação entre o clero e os poderosos. Os padres e bispos passaram a ser vistos como homens do poder, autoridades a serem obedecidas e veneradas. Como toda autoridade vive num patamar superior, então o clero sempre esteve distante do povo. Até hoje é assim: bispos e padres, salvo exceções, só se encontram com o povo na celebração dos sacramentos. Fora disso, cada um vai cuidar de sua vida! Jesus viveu de maneira totalmente diferente: era um leigo que vivia no meio do povo simples, levando uma vida despojada, distante da classe sacerdotal.

Nas cidades interioranas, nas festas dos padroeiros, o lugar do padre é ao lado do prefeito; nas capitais, o lugar do bispo é ao lado do governador. O povo possui esse esquema na mente e sabe muito bem como funciona. Para o povo, a Igreja é rica. O clero sempre se concebeu como detentor do poder espiritual, numa luta constante para submeter a seus caprichos o poder temporal. Com a queda das monarquias e com o Concílio Vaticano II, esta realidade diminuiu, mas ainda há fortes resquícios dela em toda a Igreja, principalmente nos países que foram vítimas do colonialismo.

Não há lugar para sequer pensar no Reino de Deus em uma Igreja absorvida pela sede de poder. O problema do poder continua sendo um dos males que afetam a vida da Igreja. O Reino acontece quando o poder se coloca a serviço da transformação da humanidade. Transformar o poder em serviço é o problema que parece sem solução. Esta transformação acontece, em primeiro lugar, a partir de uma mudança de mentalidade. É preciso repensar os esquemas mentais para, em seguida, haver mudanças na forma de agir no mundo. O Reino de Deus começa a acontecer na Igreja quando esta começa a agir conforme o evangelho de Jesus.

            A partir do Vaticano II se concebeu a ideia de que a Igreja é instrumento a serviço do Reino de Deus. O que isto significa? Há pobres lutando pela terra para nela viver e trabalhar? Lá é o lugar da Igreja! Há desempregados padecendo com suas famílias? Lá é o lugar da Igreja! Há pessoas morrendo de fome nas avenidas, ruas e vielas? Lá é o lugar da Igreja! Há índios sendo expulsos de suas terras? Lá é o lugar da Igreja! Há prostitutas sendo exploradas e violentadas? Lá é o lugar da Igreja! Há homossexuais sendo discriminados, juntamente com negros e outras vítimas da discriminação? Lá é o lugar da Igreja! Há pobres sem moradia, sem assistência médica, abandonados nos leitos dos hospitais e em suas casas? Lá é o lugar da Igreja! Há mulheres lutando pela igualdade de gênero? Lá é o lugar da Igreja! Há camponeses sendo explorados nas fazendas dos ricos? Lá é o lugar da Igreja! Há idosos sendo desrespeitados em seus direitos? Lá é o lugar da Igreja! Estes e tantos outros lugares constituem a messe do Senhor, os lugares de encontro com o Cristo crucificado.  

Quem é a Igreja? A Igreja é o Povo de Deus, o conjunto de leigos e ordenados. Juntos, todos são chamados ao encontro com Jesus que acontece nestes lugares mencionados. Nestes lugares acontece o Reino de Deus. Neles se celebra, de fato, o verdadeiro culto que agrada a Deus. Quando vai a estes lugares de encontro com Jesus, a Igreja passa a ser perseguida pelos poderosos porque se transforma em instrumento de profecia, de denúncia e anúncio. Transforma-se em pedra de tropeço no caminho dos poderosos.

Somente assim pode ser reconhecidamente missionária, advogada dos pobres, peregrina rumo ao Pai. Esta Igreja militante junto aos pobres nós a chamamos de Igreja dos Pobres. Ela surgiu nos tempos apostólicos, desapareceu na cristandade e ressurgiu na América Latina com as conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979). A conferência de Aparecida quis ressuscitá-la, mas não conseguiu. O papa Francisco quer ressuscitá-la, mas não está conseguindo.

A maioria dos hierarcas até aprecia as palavras de Francisco, mas somente aprecia. Na verdade, não querem sair e partir, mas querem permanecer nos palácios e na vida tranquila, distantes do Reino de Deus; querem seguir Jesus às escondidas, para não correrem perigo algum. O Reino de Deus foi, é e continuará sendo trabalho perigoso, disponível somente para os corajosos e audaciosos, que possuem pouco amor ao próprio pescoço, entregues à conquista violenta do novo céu e da nova terra. Enquanto isso, o Espírito do Senhor está aí, procurando abrigo nos corações generosos, para colocar mulheres e homens no caminho de Jesus de Nazaré. Quem quiser ousar, acolha-o em seu coração. Somente assim, a conversão é certa e a festa vai ser bonita de ver!


Tiago de França

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