“O
Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a Boa Nova
aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a
recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano
aceito da parte do Senhor” (Lc 4, 18 – 19).
Na minha passagem pelo Seminário Interno (noviciado) da
Congregação da Missão, no ano de 2011, numa pequena cidade do triângulo
mineiro, chamada Campina Verde, tive a graça de me encontrar com São Vicente de
Paulo, em seus escritos. Foi uma belíssima experiência! Fiz questão de ler seus
numerosos escritos, traduzidos para a língua espanhola. De fato, foi “um ano
aceito da parte do Senhor”.
Anualmente,
a Igreja reservou o dia 27 de setembro para que seja celebrada a memória deste
importante presbítero, missionário evangelizador dos pobres (França, 1580 –
1660). O Monsieur Vicent Depaul, como era carinhosamente conhecido, era
homem simples e dedicado à evangelização dos pobres do povo de Deus.
Converteu-se no encontro com os marginalizados de seu tempo. Tornou-se padre
por causa do status que o ministério
até hoje confere, mas, com o passar do tempo, foi percebendo que Deus o chamava
para o serviço aos pobres do povo, não à satisfação dos privilégios da vida
clerical.
Fundou,
em 1625, um grupo de missionários, uma Companhia de Padres para, somente, evangelizar os pobres
camponeses de seu tempo e contexto. Como hoje, a Igreja tinha inúmeros padres,
mas estes somente queriam permanecer nos grandes centros urbanos, sendo
financiados pela Corte francesa, gozando dos privilégios da vida clerical. Os
pobres sobreviviam no abandono, excluídos e esquecidos, inclusive pela própria
Igreja, que estava ligada ao luxo da Corte. Deus, em sua infinita sabedoria e
misericórdia, faz aparecer o padre Vicente de Paulo, que, após a conversão,
quando tinha renunciado à busca pelo poder, tornou-se um dos homens mais
influentes de seu tempo.
Assim
como Jesus, a fama do padre Vicente de Paulo se espalhou por toda a França.
Gente de toda parte, incluindo padres, bispos e cardeais, foi ao seu encontro,
para conhecê-lo de perto e para escutar suas famosas conferências nas quais
falava com a autoridade do testemunho e com a eloquência da palavra sobre a
opção pelos pobres vivida por Jesus de Nazaré.
Para
ilustrar o que estamos afirmando, veja o leitor a profundidade das palavras do
santo dos pobres, dirigida ao padre Portail, um dos cofundadores da Companhia
da Missão: “Lembrai-vos, Padre, que
vivemos em Jesus Cristo pela morte de Jesus Cristo e que havemos de morrer em
Jesus Cristo pela vida de Jesus Cristo e que nossa vida deve estar oculta em
Jesus Cristo e plena de Jesus Cristo e que, para morrer como Jesus Cristo, é
necessário viver como Jesus Cristo” (COSTE, Pierre (Org.). Saint Vicent de Paul. Correspondance,
entretiens, documents. Paris: Lecofre/Gabalda, 1920-1925, vol. 1, p. 295).
O
padre Vicente, após sua conversão, era um homem profundamente cristológico.
Jesus de Nazaré, o missionário evangelizador dos pobres, está no centro de seu
carisma. A vida e a obra de São Vicente de Paulo são profundamente marcadas
pelo Cristo dos pobres. O Espírito do Senhor, que guiou Jesus e também iluminou
São Vicente de Paulo, fez surgir na Igreja um carisma novo e extraordinário: a
evangelização exclusiva dos pobres do
povo de Deus. Isto foi inédito na história da Igreja.
Até
então, ninguém tinha ousado fazer tal coisa. Naquela época, séc. XVII, assim
como hoje, em muitos lugares da atuação da Igreja, não existia a opção pelos
pobres. São Vicente de Paulo é, portanto, uma chamada de atenção do Espírito do
Senhor, a fim de que a Igreja se recorde de sua missão fundamental, que foi a
missão de Jesus: a edificação do Reino de
Deus entre os pobres, através da evangelização dos pobres.
Com
Santa Luísa de Marillac (França, 1591 – 1660), São Vicente de Paulo também
ajudou na fundação de um grupo de mulheres pobres, leigas e consagradas ao
serviço dos pobres, grupo que ganhou o nome de Companhia das Filhas da
Caridade. Até a data da fundação, em 1633, estas mulheres trabalhavam nas Confrarias
da Caridade, que constituíram um dos primeiros ramos da numerosa Família
Vicentina. Santa Luísa de Marillac, juntamente com São Vicente de Paulo,
converteu-se a Jesus encontrando-o nos pobres.
A
vocação da Companhia das Filhas da Caridade foi delineada em uma das cartas do
santo dos pobres. Nela enxergamos com clareza como deve viver toda mulher
consagrada que deseja viver em comunidade para a missão junto aos pobres: “Vosso mosteiro é a casa dos enfermos e
aquela em que reside a superiora. Vossa cela é o quarto de aluguel. Nisso, sois
mais semelhantes a Nosso Senhor. Tendes como capela a igreja paroquial, na qual
deveis assistir ao santo sacrifício e dar bom exemplo, sendo sempre a
edificação do povo, ainda que sem deixar, por isso, o serviço aos enfermos.
Vosso claustro são as ruas da cidade, pelas quais tendes que ir para atender
aos enfermos, já que a obediência tem que ser vossa clausura. Por grade tereis
o temor de Deus. E por véu, levareis a santa modéstia” (COSTE, Pierre
(Org.). Saint Vicent de Paul.
Correspondance, entretiens, documents. Paris: Lecofre/Gabalda, 1920-1925,
vol. X, p. 662).
Com
o passar do tempo, como ocorreu com todas as grandes congregações religiosas,
masculinas e femininas, assim como com as grandes ordens e institutos da Igreja,
os Padres da Missão e as Filhas da Caridade foram se distanciando dos pobres.
Ambas as Companhias foram relativizando, no cotidiano de seus trabalhos, a
exclusiva destinação de seus carismas.
Há
belos testemunhos, certamente, de consagrados e consagradas ao serviço dos
pobres em todos os ramos da grande Família Vicentina. São edificantes os
testemunhos de santidade de inúmeros clérigos e leigos nos diversos ramos dos
que herdaram a herança espiritual de São Vicente de Paulo; mas, atualmente, o
serviço efetivo e afetivo aos pobres está um pouco adormecido em muitos lugares
nos quais se encontram os Padres, as Filhas e os inúmeros leigos vicentinos.
Para
a Igreja, São Vicente de Paulo é uma chama acesa, que recorda os pobres de
Jesus. A Igreja perde sua identidade missionária quando se esquece dos pobres. No
momento atual, contamos com a presença profética do papa Francisco que, assim
como São Vicente de Paulo, luta incansavelmente pela ressurreição da verdadeira
Igreja, aquela dos primeiros séculos, uma Igreja profeticamente missionária,
simples, humana, fraterna e acolhedora, testemunha fiel do Cristo ressuscitado
na história, peregrina no caminho de Jesus. Que a intercessão de São Vicente de
Paulo ajude a Igreja a colocar-se no caminho de Jesus, no encontro libertador e
evangélico com os pobres, rumo ao Reino definitivo.
Tiago de França
Nenhum comentário:
Postar um comentário