sábado, 29 de novembro de 2014

A atenção e a vigilância na vida cristã

“Assim mesmo, Senhor, tu és nosso pai, nós somos barro; tu, nosso oleiro, e nós todos, obra de tuas mãos” (Is 64, 7).

            Deus é nosso Pai: isto significa que em Jesus, seu amado Filho, somos irmãos. Deus é nosso oleiro, e nós somos obra de suas mãos. É preciso se deixar modelar pelas mãos do divino oleiro. É Ele quem realiza a obra.  

Nós desejamos, projetamos o futuro, buscamos capacitação técnica e profissional, tudo isso parece bom e necessário, mas quem tudo realiza é o Pai e oleiro da vida humana e de toda criação. Este é o ensinamento da espiritualidade cristã. Quem realmente segue Jesus vive segundo esta perspectiva, que aponta para a eternidade.

            Os que não creem estão, portanto, em desvantagem. Não estão excluídos nem condenados. Isto não. Agora não é o tempo do julgamento definitivo. Para ele caminhamos, diuturnamente. Quem acredita que Jesus é o Irmão enviado a este mundo para libertar toda a humanidade do jugo da escravidão do pecado e da morte, sabe que ele voltará uma última vez para realizar um julgamento favorável à humanidade.  

Não se trata de um juiz severo, que julga segundo os critérios humanos, como fazem os juízes dos tribunais deste mundo. Caberá a Jesus operar na humanidade aquilo que está preparado para ela desde a criação do mundo: Nele, a regeneração de todas as coisas. Ocorrerá a extinção total do mal e da morte no mundo. Assim reza a esperança cristã.

            Enquanto isto não ocorre, a vida segue acontecendo. Segundo Jesus, quando acontecer, efetivamente, a sua volta, acontecerá “como um homem que, ao partir para o estrangeiro, deixou sua casa sob a responsabilidade de seus empregados, distribuindo a cada um sua tarefa. E mandou o porteiro ficar vigiando” (Mt 13, 34).  

Ao partir para o estrangeiro, o homem não falou o dia em que iria voltar. Assim é Jesus: a ninguém falou o dia de sua volta. Durante a história apareceram algumas pessoas marcando data para a sua volta, mas se frustraram. Também apareceram alguns messias e falsos profetas, com apocaliptismos desorientadores, mas desapareceram com suas falsas profecias.

            Estamos vivendo tempos difíceis. As pessoas parecem cegas e surdas. Vivem mergulhadas em um sono profundo. Controladas pela ilusão e pela mentira, encontram-se dormindo. Muitas já foram surpreendidas, outras estão prestes a ser. A falta de atenção e de vigilância é evidente.  

A mulher e o homem pós-modernos, de modo geral, procuram o prazer, desenfreadamente. A regra é gozar a vida, sem limites. Prega-se e vive-se a ideologia do imediatismo, do consumismo e de tantos outros ismos doentios. Seus corpos estão saturados de prazer.

Por outro lado, há uma multidão incontável de pessoas anônimas, sendo praticamente devoradas pelas inúmeras formas de violência. A destruição e a morte reinam no mundo, e os profetas, assim como João Batista, o precursor, continuam pregando no deserto, clamando por justiça e conversão. Poucos são os que os escutam.

            Jesus recomenda a atenção e a vigilância. Atenção em relação aos sinais dos tempos: o que está acontecendo na realidade? Para onde estamos caminhando? Até quando suportaremos as prisões que nós mesmos criamos? Onde está acontecendo o Reino de Deus?

Atenção em relação ao outro, nosso irmão em Cristo Jesus: estamos enxergando o outro, ou fazemos de conta que ele não existe? O que fazemos diante do seu sofrimento: cruzamos ou braços, ou o acolhemos? Onde procuramos encontrar Deus: no conforto dos templos religiosos, ou nas situações desumanas que nos incomodam? Qual tem sido a qualidade de nossas práticas religiosas: as realizamos em função de um falso ideal de perfeição, vivendo no isolamento de nós mesmos, ou tais práticas nos sensibilizam na direção do próximo?

Quando paramos para pensar estas e tantas outras questões que nos incomodam, então estamos vigiando, pois a compreensão nos conduz à ação. A vigilância nos mantém acordados, despertados, agindo conforme o amor ensinado e vivido por Jesus: o amor de atos, afetivo e efetivo, que nos revela a face de Deus, nosso bom Pai, que nos espera no outro. Advento é tempo de espera ativa do Senhor da vida, que vem ao nosso encontro, envolvendo-nos com seu amor, alegria e paz. Tempo para pensarmos, com sinceridade e verdade, sobre o que estamos fazendo de nossa vida.


Tiago de França

sábado, 22 de novembro de 2014

Jesus e o juízo final

“Vinde, benditos do meu Pai! Recebei como herança o reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu esta com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar” (Mt 25, 34 – 36).

            Jesus disse a seus discípulos que um dia, que ninguém sabe quando, virá julgar a humanidade (cf. Mt 25, 31 – 46). Ele fez questão de dizer como será este julgamento. O critério que vai utilizar para efetuá-lo é escandaloso porque ele não se baseará na observância da lei, mas ganhará a vida quem viveu o amor. Eis a boa notícia: O amor é, desde já, o critério para o julgamento de Jesus. Desde já porque já estamos sendo julgados. O juízo é cotidiano e perdura por toda a vida.

            Sabemos que o amor é o critério estabelecido por Jesus. Nenhuma pessoa e/ou instituição religiosa pode mudar este critério porque ninguém será julgado pela religião, nem a partir desta nem segundo seus princípios. Jesus deixa bastante claro o seu critério. Agora é preciso compreendê-lo. Trata-se do amor vivido ao modo de Jesus. Meditando o seu evangelho encontramos algumas características do amor experimentado por Jesus. Vamos a estas características.

            1 – Jesus viveu o amor na liberdade. Por isso, para amar como Jesus amou precisamos evitar dois males: o apego e a vontade de controlar o outro. O amor não se presta a essas duas realidades. Ambas tendem a sufocá-lo e eliminá-lo. Só o amor liberta, pois é essencialmente libertador. É o caminho que promove e conduz à liberdade. Portanto, há algo de errado na vida dos que pensam que amam o próximo apegando-se a ele e controlando-o. Aí não há amor, mas apego. Respeitar as diferenças e acolher o outro do jeito que ele é são atitudes de quem ama na liberdade.

            2 – Jesus viveu o amor na gratuidade. O verdadeiro amor é desinteressado. Acontece na gratuidade das relações humanas. Assim, é necessário resistir à tentação de transformar o outro em objeto de satisfação de desejos. O outro não é coisa, mas pessoa. A coisificação do ser humano é um dos grandes males da sociedade atual. É necessário, portanto, ir ao encontro do outro como Jesus fez: desinteressadamente, sem esperar nada em troca. Usar o outro para a satisfação dos próprios desejos e interesses é um pecado grave, é sinal evidente de falta de amor.

            3 – Jesus viveu o amor na generosidade. Ser generoso é não ser mesquinho. É ir além do que se pode esperar. É amar sem limites nem condições. A generosidade faz a pessoa ir ao encontro das necessidades do outro para viver a experiência da partilha. Partilhar é atitude de gente fraterna e amiga, de gente que se preocupa com o bem-estar do outro. Quem se encerra no egoísmo não consegue ser generoso porque somente pensa na satisfação dos próprios interesses. Generosidade é qualidade de quem vive a fraternidade.

            4 – Jesus viveu o amor na solidariedade. O sofrimento do outro era percebido por Jesus. A sua sensibilidade era admirável. Fez opção pelos pobres e excluídos de seu tempo. Anunciou o Reino de Deus entre os pobres e para os pobres. Viveu junto aos sofredores, sendo solidário com eles: curando, ressuscitando, consolando, ensinando, denunciando, animando, despertando a esperança, anunciando-lhes a Boa Notícia da salvação. Permanece fora do caminho de Jesus o cristão que não se interessa em socorrer o próximo. Se a dor do outro não significa nada, então não se pode dizer que há fé em Jesus. A fé em Jesus passa, necessariamente, pela solidariedade.

            5 – Jesus viveu o amor no perdão. Numa sociedade marcada pela vingança e pela discórdia, o seguidor de Jesus é chamado a experimentar o perdão. Não pagar o mal com o mal, ensina-nos Jesus. Reconhecer-se pecador e acolher o outro que também é pecador. Se todos são pecadores, ninguém está autorizado a julgar e condenar o outro. Quando ofendemos, precisamos pedir perdão. Quando ofendidos, precisamos perdoar a quem nos ofende. O amor exige o perdão e este exige aquele. Quem diz que ama e não perdoa está mentindo.

            Há, certamente, outras características que explicitam o amor experimentado por Jesus, mas estas parecem ser as mais marcantes. Se quisermos fazer parte do Reino de Deus precisamos amar como Jesus amou: promovendo a liberdade do outro, sem esperar recompensas, sendo generosos e solidários, experimentando o perdão.  

Este é o critério que Jesus irá utilizar para julgar a humanidade. Quer existam práticas religiosas, quer não, o que Jesus vai considerar, segundo deixou claro em seu evangelho, é o amor a Deus que se revela e acontece no amor próximo. Não há outro critério. Não há outro caminho. O amor é o caminho fundamental e necessário. Desde agora, nele e por ele somos salvos.


Tiago de França

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Zumbi dos Palmares: herói da liberdade

Há mais de três séculos apareceu um negro no nordeste do Brasil: forte, destemido e corajoso. Formou uma comunidade denominada quilombo: lugar de gente unida, refugiada  e resistente. Gente cicatrizada pelo chicote, pelo estupro e pela exploração.

Zumbi se imortalizou na carne ensanguentada do povo negro, nas suas lutas pela terra e pela liberdade. Tornou-se um herói nacional, não celebrado pela mídia branca e racista, mas glorificado pelos negros estigmatizados da sociedade. Zumbi é símbolo da luta pela liberdade, luta das mais louváveis, experimentada somente pelos corajosos.

Brasil, 2014. Inúmeros negros continuam sendo discriminados. A lei diz que é crime a discriminação, mas não adianta. Passa-se por cima da lei e fica por isso mesmo. Por isso, a melhor forma de combater a discriminação é aderindo à consciência negra, ou seja, é necessário assumir, de uma vez por todas, uma verdade fundamental: Todos somos filhos dos negros. O sangue deles corre em nossas veias. Somos filhos da miscigenação. Nenhum filho da nação brasileira pode afirmar o contrário, inclusive os brancos racistas.

A cor da pele não indica superioridade nem inferioridade. Na espécie humana, todos são iguais. Todos nascem, crescem, se reproduzem e morrem. Com a cultura, criamos a discriminação. Esta não é natural. Ninguém nasce odiando ninguém. Aprende-se a odiar, como também se aprende a amar. A discriminação é um problema da mente, é um problema de miopia humana.

Quem discrimina está com problema na visão. É um problema de consciência. Renunciando à preguiça mental e se debruçando sobre a história, é possível alcançar a cura. A discriminação, ainda, é um problema de ignorância. Se uma cor me causa repugnância, o problema não está na cor, mas na minha mente doentia. Reconciliemo-nos, pois, com as cores! Como suportaríamos viver em um mundo sem cores?!...

Por fim, para não deixar passar despercebida a memória de Zumbi, este grande herói nacional, precisamos, ainda, afirmar três coisas fundamentais:

1) Para quem professa a fé em Jesus de Nazaré, a discriminação é um pecado grave porque, independentemente da cor da pele ou de qualquer outra diferença, todos somos, em Cristo, irmãos. Por isso, cristianismo e discriminação racial são incompatíveis. O Deus e Pai de Jesus está na missa dos católicos, no culto dos evangélicos, nos terreiros do candomblé, no silêncio da meditação budista, enfim, está em tudo e em todos;

2) Independentemente da cor da pele ou de qualquer outra diferença, todos somos capazes. Neste sentido, são válidas todas as iniciativas governamentais e sociais em prol da igualdade entre os seres humanos. Negá-las ou tentar desqualificá-las representa desconhecimento da realidade e

3) Brancos, negros, índios, estrangeiros etc.: somos todos humanos, somos pessoas. Desse modo, em nosso país não há várias raças de pessoas, mas há brasileiros, que devem ser tratados com respeito e promovidos em sua dignidade. Não formamos um povo puritano, somos juntos e misturados! Nossa religião e cultura estão alicerçadas na miscigenação.

Viva o herói da liberdade, Zumbi dos Palmares!

Viva o homem que nos ensinou que o outro não é meu inimigo, mas é outro igual!

Tiago de França


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O que está acontecendo na Igreja Católica?

Introdução

            Pediram-me uma palavra sobre a situação atual da Igreja Católica, considerando a caminhada do papa Francisco à frente da Igreja. Tal situação tem se mostrado complexa e exige discernimento e prudência para uma análise que não se deixe levar por visões apaixonadas. A paixão tira a visão e o discernimento reclama tranquilidade. Com este artigo queremos oferecer uma síntese a respeito do cenário eclesial atual. Esperamos contribuir com o esclarecimento da realidade, evitando toda e qualquer confusão. Esta parece ter tomado conta do mundo, assim como de muita gente na Igreja.

            Como filhos que desejam o bem de sua mãe, coloco-me como aquele que se recusa a fechar os olhos para seus defeitos, com o objetivo de ajudá-la a ser aquilo que Deus quer: instrumento de salvação da humanidade. Cremos que a hora atual da Igreja é de um tempo de graça e salvação. Desde Roma, onde se encontram os túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo, dois grandes missionários da Igreja nascente, um profeta grita sobre os telhados.  

Um profeta latino-americano que deseja a conversão da Igreja. Antes que este profeta seja chamado à presença de Deus, é necessário que a Igreja escute o que o Espírito está falando por meio dele. Quem o escuta? O que escuta? Onde escuta?... Seu nome é simplesmente Francisco, bispo da Igreja de Deus que está em Roma, pastor chamado para trabalhar pela unidade da Igreja que se faz presente em muitos lugares do mundo.

  1. Quem o escuta?
Quando um profeta fala, os poderosos se sentem incomodados, juntamente com seus aliados. Isto acontece porque, desde os tempos bíblicos, os profetas não falam de si, nem para si, nem de suas próprias ideias. Não inventam nada, mas simplesmente transmitem a palavra de Deus. São portadores de uma palavra que não passa, mas que é eterna. Uma palavra que corta como espada de dois gumes. O corte desta palavra fere, esclarece, liberta. O corte da verdade da palavra se parece com o fogo que consume. Este fogo queima e destrói o que é contrário à vontade de Deus. Isto é inevitável. Não há força humana capaz de deter este fogo.

Na Igreja Católica há homens poderosos, desde os tempos em que a mesma se aliançou com os poderosos deste mundo. Quase não há mulheres poderosas porque a estas não foi dado participar do poder. O clero é obrigatoriamente masculino. As mulheres devem dar graças a Deus por não pertencerem ao clero, tal como está configurado até o momento.

Os homens de poder na Igreja, depois do papa, são os cardeais, com suas poderosas funções e postos; os senhores arcebispos e bispos, com suas Igrejas particulares, e os padres, com seus títulos e ofícios. Os diáconos, quer temporários, quer permanentes, praticamente não ocupam funções que possam lhes conferir poder na Igreja. São colaboradores da ordem presbiteral, como os padres o são da ordem episcopal. Na prática é assim.

Uma grande parcela destes cardeais, arcebispos, bispos e padres mantêm estreita relação com os poderosos deste mundo: com homens e mulheres do mundo da política e do empresariado, que representam instituições de poder secular. Os que não tem alianças com esta gente, fecham-se numa vida luxuosa, gozando da pomposidade e da bajulação.

Basta visitar ou tomar conhecimento do estilo de vida destes clérigos para ver de perto a situação escandalosa e corrupta que levam. Uma vez que não vivem a opção pelos pobres, mas pelos ricos, inevitavelmente, compartilham das inúmeras manias e falcatruas da gente rica que explora o povo de Deus. Estes clérigos podem até falar em pobreza, assim como da opção dos pobres, mas desconhecem o real conteúdo do que falam. São fariseus, que jogam pesados fardos nas costas do povo, mas eles mesmos se recusam a carregar tal fardo.

Nos púlpitos, muitos destes clérigos elogiam o papa Francisco, mas somente elogiam, pois não tem coragem de colocar em prática as orientações do seu magistério pontifício. Outros, porém, sequer fazem referência ao papa, com exceção da oração eucarística, na qual o papa é mencionado e em seu favor se reza. Estes clérigos estão insatisfeitos com o atual pontificado porque o papa está denunciando a corrupção na qual estão envolvidos.

Enquanto o papa trabalha, diuturnamente, por uma Igreja missionária, voltada para fora de si mesma; eles lutam para que ela continue na letargia, parada no tempo, ensimesmada. Para isto, agem como os mestres da lei e fariseus do tempo de Jesus: manipulam, esvaziam o evangelho, enganam o povo de Deus, camuflam a realidade com seus discursos e ações superficiais, investem em um cristianismo de mero louvor, desvinculado da realidade. Não passam de meros funcionários do templo que, após terem cumprido seus compromissos rituais, retornam para o conforto de suas casas, vivendo distantes do povo.

Entre os leigos também encontramos inúmeras pessoas que rejeitam a mensagem do papa Francisco. São os leigos conservadores, educados no magistério dos papas João Paulo II e Bento XVI, que se sentem frustrados porque o papa atual não se gloria da infalibilidade papal, mas se reconhece pecador como os demais cristãos; porque não retira os paramentos antigos do museu do Vaticano, cobertos de ouro e feitos de tecidos caríssimos; porque não defende a ultrapassada moral sexual da Igreja; porque insiste no tema da opção pelos pobres e na recepção da teologia da libertação na vida eclesial e porque se utiliza mais do remédio da misericórdia do que dos velhos e desnecessários anátemas de muitos de seus predecessores.

Estes leigos conservadores colocam a doutrina, o direito canônico, os costumes e as tradições acima do evangelho de Jesus. Escutam a proclamação do evangelho nas celebrações, mas optam pelas leis, costumes e tradições ultrapassadas. Estão se perguntando: “Meu Deus, como o colégio de cardeais elegeram este homem para ocupar a cadeira de Pedro?!...” Amam a figura histórica do papa, mas não gostam daquele que está ocupando-a.

No mundo secular, também os poderosos não estão gostando nem um pouco das palavras do papa Francisco. Acham-no exagerado e contaminado pelo marxismo. Não gostam quando escutam o papa condenar, veementemente, o capitalismo selvagem. Depois de décadas de pontificados marcados pela opulência, os ricos não compreendem um papa falar em opção pelos pobres e excluídos. Afirmam que a fala do bispo de Roma é puro comunismo, não evangelho. Na verdade, pensam assim porque não conhecem o evangelho. Dominados pelo espírito do capitalismo, ignoram o evangelho.

Muitos comparecem às celebrações, são mencionados pelos bispos e pelos padres, recebem cumprimentos e bênçãos, mas não se convertem. São iguais ao jovem rico, que até cumpria os mandamentos, mas se recusou a renunciar à riqueza para seguir Jesus. É muito difícil um rico renunciar a riqueza para seguir Jesus na pobreza. Os ricos tem medo do evangelho porque este é perigoso e ameaça a sua riqueza. Por isso, preferem “seguir” Jesus sem aceitar a mensagem do evangelho! Vivem mergulhados em um cristianismo sem futuro, ou seja, superficial e aparente.

Quem escuta os apelos dos profetas são os pobres e seus servidores. Somente a estes é possível a acolhida do apelo ao amor. Isto acontece porque são livres. Não vivem segundo a lógica do mundo, mas segundo a lógica do Reino de Deus. Inúmeras pessoas que não se enquadram nas categorias acima mencionadas, acreditam, esperam e trabalham por uma Igreja cada vez mais aberta, humana e verdadeiramente missionária.

Estas pessoas, leigos e clérigos, estão vibrando de alegria e se sentem edificadas com o testemunho profético do bispo de Roma. Na Igreja Católica, fazem parte dos movimentos e pastorais que agem segundo o evangelho de Jesus. Nos Seminários e Casas de formação, os seminaristas clericalistas não se identificam com o papa porque desejam o poder, querem ser padres-autoridades, não padres-missionários. Apesar de ainda não serem padres nem bispos, estes seminaristas possuem hábitos parecidos com muitos daqueles: comportam-se como se fossem homens do poder. Nas comunidades, se impõem sobre os católicos mais ingênuos, que facilmente se submetem.

Por outro lado, há os seminaristas mais identificados com a humildade e a simplicidade do povo, que se deixam formar pelos gestos e palavras dos pobres. Estes seminaristas estão muito contentes com o papa Francisco. O testemunho deste é estímulo para a caminhada na formação rumo ao ministério ordenado. No mundo secular, há inúmeras pessoas que mesmo não frequentando os templos religiosos, mesmo não sendo católicas, estão entusiasmadas com o papa, na esperança de que ele reforme a Igreja, sepultando de vez a cristandade que ainda insiste em sobreviver em alguns de seus segmentos.

  1. O que escuta?
Os discursos, as homilias e os gestos do papa Francisco não reforçam o clericalismo que dominou a Igreja nas décadas que o precedeu e é isto que deixa seus opositores inconformados. O papa fala de misericórdia, perdão, partilha, solidariedade, acolhida, mansidão, hospitalidade, justiça, abertura, fraternidade, liberdade, fé, colegialidade, responsabilidade, consciência, evangelho, Reino de Deus etc.

Estas e tantas outras palavras que traduzem a mensagem de libertação anunciada por Jesus de Nazaré marcam o magistério do atual bispo de Roma. Corajosamente, tem denunciado as injustiças que acontecem no mundo. Tem denunciado também a incoerência da Igreja e a corrupção que insiste em permanecer em seu seio. Desse modo, tem agido na direção da reforma da Igreja, apesar das resistências que tem encontrado. Reforma que acontece lentamente, dentro dos limites impostos pelas circunstâncias e forças operantes. 

Os que esperavam um papa no estilo de João Paulo II e Bento XVI se frustraram. O papa Francisco é genuinamente latino-americano e fiel às suas origens. Formado nas escolas dos pobres e dos jesuítas, permanece inabalável, convicto de sua missão. Sua firmeza e fidelidade à voz daquele que o chamou são admiráveis. Seu testemunho edifica a Igreja dos pobres e a promove na alegria do serviço apostólico.

Aos poucos, o evangelho de Jesus está reencontrando o seu devido lugar na Igreja: o centro da vida eclesial. As pessoas agora estão experimentando o anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus. Nos dois papados anteriores, o evangelho era proclamado porque fazia parte do ritual das celebrações, mas não tinha a devida importância. Dava-se mais importância à moral sexual da Igreja, marcada pela condenação daquelas pessoas que não cumpriam a lei. Hoje, os católicos estão começando a compreender o SIM de Maria, mãe de Jesus, pois durante décadas escutaram o NÃO das proibições e condenações. Atualmente, aprende-se a ser um bom cristão porque não basta ser um bom católico.

Em nenhum momento o papa Francisco vangloria-se do ofício que exerce. Está consciente de que é, em primeiro lugar, o bispo de Roma, chamado a confirmar os irmãos e irmãs na fé. Não tem se cansado de chamar a atenção de cardeais, bispos e padres para a missão, para serem, de fato, missionários da palavra de Deus, e não autoridades que se utilizam do poder para explorar o povo de Deus.

O papa usa de expressões fortes e diretas. Quando necessário, se utiliza da necessária intervenção, demitindo e afastando bispos e padres que provocam escândalos. Na América Latina, um dos casos mais recentes foi o de dom Rogelio Livieres Plano, bispo do Opus Dei, afastado da diocese de Ciudad del Este, no Paraguai, acusado de proteger um padre acusado de pedofilia e pela falta de transparência no uso de dinheiro em sua diocese (possível desvio de dinheiro).

Os fracos e pecadores tem escutado uma palavra de conforto e de esperança. O bispo de Roma tem ido ao encontro dos sem vez e sem voz. Em Roma, acolhe e escuta gente de toda parte do mundo. Humilde, despojado e simpático, tem surpreendido a todos. Não se utiliza de um linguajar teologicamente complexo, como fazia seu predecessor ainda vivo. Não cansa as pessoas com abstrações, mas fala com simplicidade da realidade da vida. Sabe traduzir o evangelho e sua palavra chega ao coração dos aflitos.

Não tem medo de falar abertamente com quem quer que seja a respeito dos pecados da Igreja e dos temas considerados tabus pelos seus predecessores. Promove a abertura para o diálogo e sabe escutar o que o outro tem a dizer. Seus opositores ficam sem saber o que dizer, pois não encontram incoerência em suas palavras. A relação destes com o bispo de Roma é meramente diplomática e há certo respeito porque se trata do Sumo Pontífice, ofício bem explicitado pelo direito canônico; ofício que precisa ser rigorosamente revisto, considerando algumas contradições com o evangelho de Jesus. Com seus gestos e palavras esta revisão da missão pontifícia já está em curso.

  1. Onde escuta?
Qual o lugar teológico e existencial da atuação da Igreja? Considerando a verdade eclesiológica de que a Igreja nasceu para evangelizar, esta evangelização acontece no mundo. Isto parece óbvio, mas na verdade, durante séculos a Igreja fugiu do mundo. Os que almejam a ressurreição da cristandade defendem o retorno de uma Igreja que se refugia noutro mundo, no das abstrações conceituais da fé, da esperança e da caridade.

Neste modelo ultrapassado de Igreja, estas três virtudes se encerram na mera afetividade, no campo das emoções. O estudo dos discursos e práticas religiosas dos que desejam a cristandade se alinham com a dimensão puramente emocional da fé, da esperança e da caridade. A realidade do mundo é excluída. Para os cristãos da cristandade, o mundo pertence ao maligno e a salvação se refere às almas.

Segundo eles, Jesus veio salvar as almas. Portanto, tudo o que é ligado ao corpo é pecaminoso, digno de condenação. No Brasil, basta escutar os padres Marcelo Rossi, Fábio de Melo, Reginaldo Manzotti, Mons. Jonas Abib e Comunidade Canção Nova, entre outros. Estes clérigos e comunidades vivem uma espiritualidade sem evangelho, pautada na fuga do mundo.

O onde aponta, necessariamente, para o lugar que deve ocupar a Igreja no mundo. A pregação do papa Francisco ensina que a Igreja deve ser a advogada dos pobres, promotora da verdade e da liberdade, testemunha da justiça do Reino de Deus (cf. Documento de Aparecida). Precisa reencontrar o seu lugar. Na sua experiência primitiva, encontrava-se na periferia do império romano, sendo perseguida pelos inimigos da cruz de Cristo.

Durante todo o período medieval, ocupou o centro das cidades, com seus templos, mosteiros, conventos e instituições poderosas. Atualmente, o bispo de Roma lança o desafio do evangelho: voltar às origens. Este retorno às origens passa, necessariamente, pela experiência da pobreza, do desapego, portanto, da centralidade de evangelho. Neste sentido, os clérigos precisam fazer o que prometem nas ordenações diaconal, presbiteral e episcopal: serem, de fato, servidores do evangelho.

Isto somente é possível quando a Igreja assumir, afetiva e efetivamente, a pobreza evangélica. A partir daí, os pobres se identificarão com ela. Enquanto isto não acontecer, tudo não passará de discurso, de palavras jogadas ao evento. A proclamação do evangelho continuará não surtindo o efeito necessário porque tal proclamação está intimamente ligada ao testemunho dos pregadores.

Ninguém acredita em um pregador incoerente, e o ditado que se tornou popular que diz: “Faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”, não produz efeito em uma comunidade genuinamente cristã. Trata-se de um ditado antievangélico. O evangelho nos ensina que a coerência entre o falar e o agir precisa ser buscada e mantida. Quando impera a incoerência, reina o contratestemunho, que destrói a comunidade.

É inadiável esta necessidade que interpela a Igreja: colocar-se do lado dos oprimidos numa clara oposição aqueles que os oprimem. Todo cristão fiel ao evangelho é chamado a atender a esta necessidade. No cotidiano da vida, opondo-se à mentira e a toda forma de exploração. Na hierarquia eclesiástica, aderindo-se à fraternidade e ao espírito de serviço. O povo clama por autênticos pastores, de mulheres e homens que sejam humildes servidores. As pessoas estão, progressivamente, tomando consciência de seu lugar na Igreja e no mundo, e isto as torna amadurecidas.

Não cabe mais na Igreja o tratamento imaturo e infantil que ainda persiste em relação aos leigos. Para que estes assumam a sua missão no mundo e na Igreja é necessário que sejam respeitados, formados e tratados como pessoas adultas na fé. Não há mais lugar para o infantilismo e clericalismo. O fato de bispos e padres terem formação teológica não os faz mais santos e mais sábios que os leigos. Para uma efetiva evangelização, todo espírito de superioridade precisa ser erradicado, dando lugar à fraternidade.

Os leigos não são servidores dos clérigos, mas precisa ocorrer, efetivamente, o contrário. O serviço do povo de Deus é a condição fundamental para o exercício dos ministérios na Igreja. Quem se recusa ao serviço, não deve assumir nenhuma espécie de ministério, pois se o fizer, será causa de escândalo para a comunidade. E todo escândalo precisa ser evitado, para o bem de todo o povo de Deus. O lugar da Igreja é no meio do povo, servindo-o com alegria, generosidade, verdade e liberdade.

Conclusão

            A salvação da Igreja não é a salvação da instituição religiosa. Jesus não estava preocupado com a salvação do Judaísmo. O projeto divino contempla a salvação dos seres humanos e de toda a criação, não de instituições criadas pelos homens. Apesar de necessárias, as instituições podem e devem mudar, e quando não se aperfeiçoam no decorrer do tempo, em sintonia com a evolução de todas as coisas, correm o risco de desaparecerem.  

O homem não cria coisas eternas, que ultrapassam o tempo e o espaço. Toda criação humana é semelhante ao homem: nasce, cresce, se desenvolve e morre. Todos precisamos nos reconciliar com esta realidade. Esta é imperativa e, consequentemente, inevitável. O possível desaparecimento das instituições religiosas não acarreta o desaparecimento do evangelho porque este não é religioso nem institui religião.

            Partindo desta realidade necessariamente mutante, os cristãos precisam escutar os apelos do Espírito presente no mundo. Este Espírito renova todas as coisas na liberdade e para a liberdade. Somente nele os cristãos gozam da liberdade dos filhos e filhas de Deus. Como isto acontece no cotidiano da vida? Não acontece nos êxtases nem nas fugas do mundo, mas na praticidade humilde e despojada dos gestos humanos, realizados no amor. O Espírito conduz, necessariamente, à ação. Onde não há ação não há o Espírito. Este incomoda, desperta, liberta, coloca o peregrino nas estradas da vida, acompanha-o com sua luz e sua força.  

Conduzidos por este Espírito, os cristãos não se acomodam nem se conformam ao mundo, mas ultrapassam a si mesmos na direção do outro. No encontro com este outro acontece a fraternidade, dom da graça divina, doada por meio do Espírito. Evitar o outro e querer ser fraterno é uma gravíssima contradição. Não há cristianismo possível sem o outro porque nele Deus revela a sua bondade e misericórdia. Não há outra forma possível de se amar a Deus senão amando o próximo.

            Na prática religiosa de nossas comunidades, geralmente, os pobres e as pessoas consideradas “pecadores públicas” são excluídas. Os pastores dão mais atenção às pessoas de “boa aparência” e de condição financeira elevada. Insiste-se na acolhida dos ricos em detrimento dos pobres. Os denominados “católicos praticantes” se sentem mais santos do que os demais seres humanos, principalmente em relação aos que não frequentam o culto e/ou os que não possuem nenhuma prática religiosa. Por isso, habituaram-se a julgar e condenar os estranhos, os afastados, os “relaxados” e todos aqueles que se encontram em situação irregular em relação às leis da Igreja. 

Por que esta hipocrisia persiste, mesmo o evangelho dizendo que precisa acontecer justamente o contrário? A resposta é simples: persiste porque estes “católicos praticantes” procuram cumprir a lei, mas não o evangelho. Este não lhes interessa, e não lhes interessa porque é exigente e radical. O evangelho ensina que não há meio termo. Não se admite o amor incompleto às pessoas, ou seja, não se ama mais ou menos. Quem ama permanece com Jesus, unindo-se ao Pai no Espírito. Quem não ama, por mais religioso que seja, não permanece com Jesus e está excluído do Reino de Deus por livre e espontânea vontade. O amor a Deus na pessoa do próximo é a condição essencial para participação no Reino de Deus.

Todas as práticas religiosas podem ser dispensadas, exceto o amor, pois é imprescindível. Jamais haverá renovação do cristianismo se cada cristão não se entregar, incondicionalmente, ao amor. Portanto, o que está em jogo no cenário eclesial atual não é a salvação da Igreja institucional, mas o anúncio do evangelho de Jesus, e este anúncio exige a conversão de nossa vida. Sem colocar-se no caminho de Jesus o cristão não anuncia absolutamente nada. Sem seguimento de Jesus não há anúncio porque este acontece no caminho de Jesus.

Caso esta realidade necessária não seja compreendida e devidamente assimilada com a vida, a Igreja continuará remando nas águas do mar da vida, mas sem chegar a lugar nenhum. O Espírito está trabalhando, diuturna e discretamente, na vida da Igreja e do mundo. É chegada a hora de cada cristão renunciar a seus interesses pessoais e corporativistas para acolher a presença amorosa e transformadora de Deus por meio de seu Espírito, a fim de que o Reino de Deus aconteça.

Deus nos envia os profetas e estes proclamam novos tempos. Por que não os escutamos? Até quando continuaremos dando preferência ao jugo da escravidão? O que nos impede de sermos livres? “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1). A Igreja precisa de cristãos livres, pois somente na liberdade podem colaborar com a reforma da Igreja-povo de Deus, assembleia dos chamados à participação na glória divina. Quando as pessoas não buscam ser livres, toda aspiração por conversão e reformas se frustra. A transformação acontece quando ousamos experimentar o novo que implica riscos. Quem se deixa controlar pelo medo perde a feliz oportunidade da conversão.

Tiago de França

domingo, 16 de novembro de 2014

49 anos do Pacto das Catacumbas: um apelo aos bispos da Igreja Católica

             No dia 16 de novembro de 1965, portanto, há 49 anos, poucos dias antes do encerramento do Concílio Vaticano II, cerca de 40 padres conciliares celebraram uma Eucaristia nas catacumbas de Domitila, em Roma. Após a celebração, assinaram o “Pacto das Catacumbas”. Trata-se de um documento histórico, que dispensa maiores comentários porque por si mesmo fala com clareza e objetividade de uma proposta original, evangélica, audaciosa e profética.  

Entre os signatários estava Dom Helder Câmara, um dos grandes profetas da história da Igreja no Brasil. O documento é dirigido aos bispos da Igreja Católica, um convite para que todos possam se colocar no caminho de Jesus: caminho de pobreza e de serviço ao povo de Deus. Os bispos que assinaram e que viveram este importante pacto entraram para a história da Igreja como homens despojados e livres, pastores zelosos do povo de Deus, que viveram na radicalidade evangélica a opção pelos pobres.

Todos os bispos da Igreja Católica, se quiserem, de fato, ser fieis ao evangelho de Jesus e ao espírito do Vaticano II, precisam observar as orientações deste pacto. Há, certamente, na Igreja de hoje bispos que praticam este pacto, com humildade, simplicidade, zelo e discrição; mas é verdade também que há inúmeros bispos que estão longe de praticá-lo, pois vivem apegados ao poder, ao prestígio e à riqueza; vivem salvando a própria vida em detrimento da vida do povo de Deus.

A estes bispos, o pacto abaixo transcrito e as veementes exortações do papa Francisco são um forte apelo à conversão episcopal. Os pobres do povo de Deus clamam por autênticos pastores, que a exemplo de Jesus, deem a vida pelas grandes causas do Reino de Deus. Muitos bispos precisam abraçar com humildade e perseverança a cruz de Cristo nas lutas por justiça, na solidariedade com os pobres. Precisam renunciar as amizades e alianças com os poderosos da sociedade e seus projetos de morte. Precisam anunciar a Boa Notícia do Reino e denunciar os crimes que ceifam a vida do povo.

Na América Latina, dom Oscar Romero e tantos outros são exemplos inspiradores de verdadeiros pastores, que assumem a promoção da justiça até as últimas consequências. Gente do povo continua sendo perseguida, explorada e morta, onde estão os pastores dessa gente? Como Jesus, é preciso que se busquem as “ovelhas perdidas da casa de Israel”. Para isto, a opção pelos pobres deve ser uma realidade na vida dos bispos. Sem ela não há conversão episcopal.

Por fim, é hora de renunciar a “psicologia de príncipes” (expressão do papa Francisco), assim como as manias de gente rica para se revestir do espírito de Cristo, o bom pastor. Estão fazendo falta à Igreja do Brasil homens como dom Helder Câmara, dom Luciano Mendes de Almeida, dom Aloísio Lorscheider, dom Antônio Fragoso, dom Waldyr Calheiros, dom Tomás Balduíno, entre outros grandes profetas do Senhor. Estes homens não viveram para si mesmos, mas viveram como Jesus: no anúncio do evangelho, servindo os pobres do povo de Deus.

Que nossa prece chegue a Deus neste dia feliz da memória deste pacto, a fim de que nossos bispos escutem a voz do Espírito do Senhor e se tornem, afetiva e efetivamente, pastores do povo santo e fiel, segundo o coração do nosso bom Deus. A necessária e urgente conversão das estruturas da Igreja está intimamente ligada à conversão dos bispos, sendo estes chamados a serem os primeiros a darem testemunho do Cristo ressuscitado no meio do povo.

Tiago de França
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Eis o texto do pacto.
Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre

Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.

3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.

4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.

5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.

7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.

9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.

10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.

11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos:

a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;

a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:
esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles;

suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo;

procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...;

mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.

13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.


Ajude-nos Deus a sermos fiéis.

sábado, 15 de novembro de 2014

A vigilância no caminho de Jesus

“Todos vós sois filhos da luz e filhos do dia. Não somos da noite nem das trevas. Portanto, não durmamos, como os outros, mas sejamos vigilantes e sóbrios” (1Ts 5, 5).

            Um homem tinha três empregados e, antes de viajar, chamou-os e lhes entregou talentos para que pudessem administrar: ao primeiro, deu cinco; ao segundo, dois e ao terceiro, um. Deu de acordo com a capacidade de cada um. Depois de muito tempo, retornou da viagem e pediu contas daquilo que entregou aos empregados.  

O primeiro entregou dez talentos. Obteve o dobro de lucro! O mesmo aconteceu com o segundo. O terceiro, por sua vez, não fez nada, mas enterrou o único talento que tinha recebido, causando a ira do seu patrão. Por causa do medo que teve do patrão, este último empregado, considerado “servo mau e preguiçoso!”, foi jogado na escuridão. Não foi útil ao seu patrão. Esta parábola foi contada por Jesus a seus discípulos (cf. Mt 25, 14 – 30).

            Caso nos utilizemos da chamada teologia da prosperidade para interpretar esse texto, o desastre será grande! Assim como no sistema capitalista, na mencionada teologia a ideia do lucro também aparece. Muitos católicos e evangélicos pensam, equivocadamente, o seguinte: “Entrega a tua vida ao Senhor Jesus e ele tudo fará por ti!” Somente lucra quem entrega a vida ao Senhor Jesus! Em que consiste esta entrega? Consiste na entrega de dinheiro ao padre ou ao pastor. Quanto maior a quantia, maior será a bênção que o Senhor Jesus oferecerá ao crente.

Acredita-se no investimento financeiro da fé. Sem investimento, o Senhor Jesus não opera o milagre! Este é o lucro. Partindo da autêntica mensagem de Jesus, não precisamos de nenhum esforço mental para enxergarmos a tamanha mentira desta teologia da prosperidade. O curioso é que esta mentira tem funcionado em muitas Igrejas. O motivo é único e simples: as pessoas desconhecem o evangelho, e uma vez desconhecendo a mensagem de Jesus terminam acreditando nessa falácia que tem enriquecido muitos “pastores” de nossas Igrejas. Um povo que desconhece a palavra de Deus é facilmente enganado por falsos pastores e falsos profetas.  

            O maior talento que temos é nossa vida. O que estamos fazendo com ela? No mundo aprendemos a realizar inúmeras atividades, cada um vai descobrindo suas aptidões. O que estamos fazendo com elas? A Igreja recebeu a missão de evangelizar. Tem cumprido sua missão de acordo com o evangelho de Jesus? Diante das inúmeras injustiças, qual tem sido a nossa posição? Somos indiferentes, ou nos causam preocupação? Qual tem sido a nossa contribuição na construção de outro mundo possível? Ou será que estamos concentrados na satisfação dos nossos interesses? Precisamos responder a estas perguntas com sinceridade e verdade.

            Na parábola contada por Jesus, “o servo mau e preguiçoso” não multiplicou o talento porque sentiu medo do patrão. Esta foi a justificativa dele. E nós, qual nossa justificativa quando nos omitimos diante das necessidades de nossos irmãos e irmãs? Qual nossa justificativa quando nos recusamos a promover o bem comum, quando não agimos com caridade com o próximo? O medo é extremamente perigoso e tem atrapalhado muita gente no caminho da vida. É preciso, ainda, que se indague a respeito das origens deste medo. Quais nossos medos? Por que nos entregamos a ele? Até quando ele nos controlará?...

            Assusta-nos a falta de responsabilidade dos seres humanos no desempenho de suas obrigações ordinárias. A ausência do cuidado com o próximo e com a natureza, a coisificação das pessoas, a indiferença nas relações interpessoais, a manipulação do outro em vista da satisfação dos interesses pessoais e corporativistas, a exploração descontrolada dos recursos naturais, a banalização do mal em todo o mundo, a corrupção institucional, a exclusão e a rejeição das diferenças e tantos outros mecanismos que explicitam a maldade e a covardia se proliferam no mundo, promovendo um processo violento de desumanização. Por que insistimos em todas estas coisas, apesar de sabermos que tendem a nos destruir?...

            Egoísmo e cristianismo não são compatíveis. Pessoas egoístas não entrarão no Reino de Deus. Fora da fraternidade não existe salvação. Não adianta procurar a religião e praticar os atos religiosos com o objetivo de tentar manipular a Deus. Não adianta. O evangelho exige mudança de vida. Esta passa pela mudança de mentalidade e pela conversão do coração. Estamos precisando de seres verdadeiramente humanos, de coração de carne e não de pedra. Precisamos de pessoas, de mulheres e homens sensíveis à dor do outro. Enquanto estamos vivos há esperança de nos colocarmos nas fileiras dos que amam o próximo, incondicionalmente.  

A vida não vale a pena ser vivida fora do amor. Este amor clama por praticidade, por humanidade, por solidariedade, por alteridade. Fora da relação sincera e honesta com o outro não há como o amor sobreviver. Vigiar é preciso, mas tal vigilância, na vida cristã, acontece no caminho de Jesus. E quem permanece neste caminho permanece de pé, de braços abertos, na alegria e na generosidade, no amor e na liberdade, acordados e disponíveis, esperançosos, caminhando com Jesus na contramão deste mundo. Sejamos, pois, vigilantes porque não sabemos o dia nem a hora em que seremos chamados para prestarmos contas dos talentos que recebemos de Deus. De uma coisa temos certeza: não há ninguém que escapará deste dia e desta hora. Portanto, vigiemos no amor!


Tiago de França