“Se
alguém me tem amor, há de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e nós
viremos a ele e nele faremos morada” (Jo 14, 23).
Introdução
O objetivo desta
reflexão é oferecer um olhar sobre a vida mística, uma tentativa de falar sobre
o chamado e a fé dos místicos. Quem são os místicos, e em que consiste a vida
mística? Como se manifesta a fé dos místicos? Considerando o tempo presente,
com seus sinais evidentes, assim como algumas manifestações místicas no
decorrer da história da Igreja, ousaremos algumas afirmações. Antes, é preciso
afirmar que a vida mística é misteriosamente diferente das demais formas de
vida cristã, pois apresenta algumas características próprias e fundamentais.
Nossas considerações partem do testemunho de grandes
nomes da vida mística da história da Igreja, dentre os quais podemos citar
Santa Teresinha do Menino Jesus, São João da Cruz, São Francisco de Assis, São
Vicente de Paulo, Dom Helder Câmara, Anthony de Mello, Thomas Merton, Pe.
Alfredinho e o Pe. José Comblin. Há muitos outros, tanto falecidos quanto
vivos.
Quero
mencionar, ainda, Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia
– MT. Para mim, é um dos grandes místicos ainda vivo da Igreja no Brasil. Tenho
estima por estes santos, pelas suas histórias de vida e escritos. Há muito
tempo os leio, assim como a tantos outros. Desde minha infância tenho me
interessado pelo tema da vida mística, e creio que os místicos, mais do que os
teólogos, são os que mais conhecem o segredo de Deus, a Sua misericórdia.
- A vocação dos
místicos
O místico não é um
ser superior aos demais humanos, nem alguém que goza de privilégios na relação
com Deus. Também não é alguém que tenha sido chamado por Deus para viver
isolado dentro de uma floresta. O místico não é uma criatura anormal, nem
estranha, mas um ser humano comum, dotado de virtudes e defeitos. É alguém
profundamente convicto de sua condição de pecador remido no sangue de Jesus.
Por
isso, não se sente superior a nada nem a ninguém. A santidade do místico está
neste assumir-se pecador diante de
Deus e dos homens. Desprovido de qualquer espírito de superioridade e vaidade,
coloca-se e permanece na presença amorosa de Deus. Pode ser identificado pela
sua simplicidade, mas o que, na verdade, o identifica não é o semblante piedoso
que alguns possam ter, mas a sua atitude
amorosa na relação com todas as pessoas e com a natureza.
Como vivem e onde se encontram? São Francisco de Assis
vivia no meio do mundo, como Jesus, não tinha onde reclinar a cabeça. Após renunciar
à vida cômoda que tinha junto à família, tornou-se um pobre homem, um
“lascado”, um frade. Santa Teresinha era monja carmelita, viveu recolhida na
vida conventual. Na difícil vida comunitária descobriu a vocação para o amor.
Tornou-se doutora da Igreja e padroeira das missões. Dom Helder Câmara
tornou-se padre e bispo. Converteu-se aos 56 anos, quando bispo no Rio de
Janeiro. Descobriu Jesus nos pobres. Conhecido como “bispo vermelho”,
entregou-se à subversão evangélica. Foi perseguido dentro e fora da Igreja.
Entrou para a história como um dos bispos que viveu a opção pelos pobres,
praticando a misericórdia e a justiça divinas. Poeta e escritor, traduziu a
mensagem de Jesus, anunciando-a em várias partes do mundo. Morreu santamente.
Estas e tantas outras histórias evangélicas de vida
mostram que Deus suscita os místicos em diferentes lugares e em variadas formas
de vida: uns foram monges no deserto, outros foram bispos, outros filósofos e
teólogos, entre outros. Houve místicos que mal sabiam ler e escrever. Alguns
viveram em cidades, outros no campo. Também existiram, existem e continuarão
existindo místicos anônimos, que não são conhecidos por ninguém.
Assim,
não houve nem jamais haverá uniformidade de formas de vida mística. Deus chama
para a vida mística de acordo com a realidade de cada época. Nenhuma época é
igual à outra, nenhum místico é igual ao outro. Os místicos não seguem modelos
pré-estabelecidos, mas simplesmente olham para Jesus e o seguem na
radicalidade. Para eles, Jesus é o místico por excelência, e com ele procuram
partilhar a vida.
Há, entre muitas, quatro características que explicitam a
vocação dos místicos: a liberdade, a profecia, o desapego e a contemplação. São
características intimamente ligadas e reciprocamente implicadas, que não são
identificadas separadamente na pessoa do místico. Transformam-no em um
discípulo missionário de Jesus, a partir da realidade na qual vive. Nenhum
místico vive em função de si mesmo, de sua própria perfeição.
O
místico não procura a perfeição de vida. Esta não é a sua meta, nem a sua
vocação. Jesus não o chama para viver buscando um “estado de vida” perfeito. Na
Idade Média, devido à mentalidade da época, alguns buscaram tal coisa, mas
descobriram outra. Naquela época, entendia-se a santidade como forma de vida
separada do mundo, buscando-se a perfeição na vida monástica e conventual.
Mesmo assim, Deus fez aparecer alguns místicos neste estilo de vida.
Antes de discorrermos sobre as quatro características supracitadas,
vamos responder à seguinte indagação: Como,
na intimidade da vida espiritual, a pessoa descobre que está sendo chamada a
uma vida mística? Não há uma fórmula geral para todos os místicos. O
chamado ocorre de acordo com a vontade de Deus, pois é Ele que chama da forma
como quer. O chamado é uma realidade espiritual e circunstancial. O mesmo Deus
chama pessoas diferentes em
circunstâncias diferentes. O chamado divino não se enquadra numa tipologia ou
categoria teológica de vocação, se assim podemos falar.
Basta
olharmos para o testemunho dos místicos supracitados para vermos a verdade
desta constatação. Também esta palavra nos recorda um outro aspecto importante
da vida mística: o místico pode ser identificado na sua singularidade
existencial no mundo, mas a sua vida permanece um mistério. E é assim porque o
místico vive mergulhado no mistério divino, numa constante procura por Deus. Deus o chama para participar de Sua vida, mas não
se revela plenamente. Por isso, engana-se quem pensa que o místico alcança
plenamente o conhecimento de Deus. Permanece na intimidade do mistério,
maravilhosamente admirado com a insondabilidade divina.
1.1
A liberdade dos místicos
A liberdade dos místicos não é outra senão a liberdade de
Jesus: liberdade em relação a si mesmo, às pessoas e à religião. Também na sua
relação com Deus, Jesus e o místicos são livres, pois não são escravos de Deus,
mas amigos fieis. A maneira como Jesus viveu foi motivo de escândalo para
muitos dos judeus de sua época, principalmente para as autoridades civis e
religiosas. Eles não conseguiram compreender a liberdade de Jesus: Um pobre
homem, nascido em Nazaré, que os questionava com a toda a liberdade e
autoridade.
Não
era sacerdote nem doutor da lei, mas ousou fazer alguns reparos na sagrada lei
dada a Moisés. É como se hoje um leigo ousasse afirmar publicamente a invalidez
de alguns artigos do código de direito canônico, conjunto de leis que rege a
Igreja. Certamente seria tratado da mesma forma como Jesus o foi: sendo
perseguido e excomungado. Jesus foi considerado um desobediente e subversivo,
homem possuído pelo demônio (Belzebu) pelas autoridades religiosas da época.
Basta lermos os evangelhos para percebermos a veemência das condenações que
sofreu porque ousou ser livre. Apesar disso, permaneceu fiel ao Pai até à morte
de cruz.
O místico é livre como Jesus, tanto dentro quanto fora
das instituições religiosas. Dentro destas, não são aceitos nem compreendidos.
Às vezes, conseguem ser tolerados; outras vezes, são expulsos. Geralmente, as
instituições religiosas não suportam a liberdade dos místicos. Estes são vistos
como hereges, tratados como pessoas suspeitas, indignas de confiança. A maneira
como se relacionam com Deus é considerada inapropriada, pouco religiosa. Isto
ocorre porque os místicos não precisam, necessariamente, de rituais para
permanecerem unidos a Deus.
Alguns
místicos não participam de nenhuma forma de culto, pois a sua relação com Deus
já não necessita de passar por fórmulas e liturgias rigidamente elaboradas pela
brilhante inteligência humana. Por outro lado, há místicos que rezam o rosário
de Maria, rezam diariamente o ofício divino, perscrutam a Bíblia, são mestres
da liturgia e das Escrituras Sagradas. Isto prova o que acima explicamos: a
experiência mística é pessoal e, portanto, única. Cada místico vive à sua
maneira, de acordo com a iluminação do Espírito.
Outro aspecto da liberdade do místico que incomoda os que
dirigem as instituições religiosas, assim como aos que vivem irrefletidamente
alinhados a ela, é o fato de que o místico não vive em função da manutenção da
instituição. Sabemos bem que o propósito de toda instituição, quer religiosa ou
não, é manter-se no tempo e no espaço. Quando desaparece é porque se esgotou
toda e qualquer possibilidade de salvação. O místico não vive preocupado se a
instituição religiosa vai perdurar na história ou não. Para ele, interessa ser
livre com Jesus, em função do Reino de Deus.
Não
se trata de mera oposição ao aparato institucional, mas de uma questão
profundamente vocacional. Em outras palavras, não faz parte da vocação mística
a preocupação pela criação e manutenção de instituições religiosas. Exemplo
claro disso é São Francisco de Assis: Não foi ele quem fundou a Ordem dos
Frades Menores como a temos hoje. O pobre de Assis simplesmente propôs à Igreja
um carisma, após ter sido chamado para despertá-la à conversão, mostrando que a
vontade de Deus era que o anúncio do evangelho de Jesus foi vivido numa vida
pobre e despojada. Todo o testemunho de São Francisco de Assis gira em torno
desse chamado. Foi para isto que ele foi chamado e enviado. Isto explica a
permanente tensão entre os que se apegam às instituições e o místico que,
porventura, faça parte delas.
Na verdade, o místico vive como Jesus: Não cria nem pauta
a sua vida em preocupações. Se lermos com atenção as narrativas evangélicas,
veremos que Jesus não se preocupava com nada. Ele não vivia preso nem ao
passado nem ao futuro. Jesus vivia o presente em plena sintonia com vontade de
seu Pai. Exortando aos seus discípulos, chamava-lhes a atenção para este
importante aspecto da sua missão no mundo: É preciso viver na plena confiança
em Deus, sem preocupações. Estas desviam o missionário do essencial, que é o
amor.
Segundo
Jesus, quem ama a Deus e ao próximo não precisa se preocupar com nada. Basta
que se busque o Reino de Deus e sua justiça, e tudo o mais virá por acréscimo. Assim
Jesus viveu: Homem livre, despojado de preocupações, fiel observante da vontade
de seu Pai. Quem faz a vontade de Deus Pai não precisa preocupar-se com nada. Isto
não é apenas uma questão de convicção e/ou convencimento intelectual, mas
vivência, vida cotidiana. Neste sentido, o místico se entrega sem medo aos cuidados de Deus.
Após
descobrir a sua vocação, o místico se dar conta de que Deus o chama a viver
assim: Como os pássaros do céu e os lírios do campo, sem se preocupar com nada,
pois a sua vocação é fazer a vontade de Deus no amor. Justamente por isso, o
místico não procura a glória humana, o sucesso, o prestígio, o poder e a
riqueza. Estas coisas não lhe despertam nenhum interesse. No momento em que uma
destas coisas dominá-lo, a iluminação do Espírito se afasta e a desorientação
igualmente o domina. O Espírito somente age na liberdade e para a liberdade.
Sem deixar-se levar pela indiferença em relação aos fatos
do mundo e às pessoas, o místico está em plena sintonia com as tristezas,
alegrias, lutas e esperança do povo de Deus. Não é uma pessoa alienada ou
isolada do mundo. É possível encontrarmos o místico participando das
manifestações do povo, em suas lutas por direitos. Exemplo disso foi o líder
pacifista indiano M. Gandhi. Este era místico da tradição hindu, que viveu
unido a seu povo nas lutas por libertação.
Há
místicos que vivem na clausura, como monges, vivendo em comunidades ou sozinhos
na vida eremítica; mesmo assim, quando o Espírito lhes pede, eles descem da
montanha da contemplação para permanecerem com as pessoas da planície o tempo
que for necessário. A participação do místico na resolução dos problemas da
vida do povo de Deus não lhes tira a tranquilidade espiritual da vida
contemplativa, pois consegue ser contemplativo na ação.
O
místico não desce da montanha por achar que é a sua missão resolver os
problemas do povo, mas porque o Espírito o envia para o meio das pessoas em
determinadas circunstâncias. O Espírito o chama pela boca dos oprimidos, que
clamam por libertação. O místico não é um libertador político e social, mas um
humilde servo de Deus que em nome deste mesmo Deus se coloca à serviço da
libertação. O místico não se sente obrigado a nada, pois a sua obediência está
restrita à ação do Espírito que o conduz.
1.2
A profecia dos místicos
A vida mística é
essencialmente profética porque se encontra na contramão do mundo. Aos olhos do
mundo pós-moderno, o místico é considerado um louco. A renúncia às pretensões
meramente humanas leva-o a ser visto como um ser estranho, deslocado da
realidade. Em um mundo onde reina a busca pelo prestígio, poder e riqueza, o
místico é visto como um bobo, um ser inútil e desprezível. Seu testemunho é uma
eloquente denúncia contra as injustiças que se cometem no mundo por causa da
busca acima mencionada. A mesma denúncia se dirige à Igreja institucional,
quando esta se afasta do projeto de Jesus e se apega às pretensões humanas.
A liberdade dos místicos incomoda muita gente, assim como
o estilo despojado de sua vida. Isto ocorre porque diante de um mundo marcado
por inúmeras formas de escravidão e busca desenfreada de poder e dinheiro, a
vida mística aparece como luz em meio às trevas. Também na Igreja, a luta pelo
poder é um dos grandes males. Constitui uma espécie de câncer que afeta a vida
da Igreja desde o momento em que a mesma se aliançou com os poderosos deste
mundo.
Muitos
místicos, além do testemunho da própria vida, sob a ação do Espírito que os
guia, denunciam as injustiças que se cometem dentro e fora da Igreja, por meio
de seus escritos espirituais e teológicos. Um exemplo eloquente desta denúncia
é a obra teológica do belga José Comblin, padre e profeta místico da liberdade.
Sua obra pneumatológica (sobre o Espírito Santo) não são somente oriundas da
sua genial inteligência, que também era dom de Deus, mas, sobretudo, é obra da
ação amorosa do Espírito, pura profecia mística, tradução da palavra de Deus,
cortante e penetrante como espada de dois gumes.
Não
houve na Igreja quem o desmentisse em seu labor teológico, dada a inspiração de
seus escritos, alicerçados na verdade do testemunho de Jesus, válidos para todo
o sempre. Quem não teve a graça de conhecê-lo em vida, pode fazê-lo através de
seus escritos. Particularmente, ainda não conheci uma obra teológica tão atual
e profética, tão profunda e tão mística, tão de Deus e tão humana.
Pessoalmente,
José Comblin era discreto e silencioso, contemplativamente místico, homem da
escuta atenta e amorosa dos sinais de Deus no meio dos pobres. Admirado e
perseguido. Amado pelos pobres que o conheceram de perto. Foi fiel a Jesus até
o último suspiro para a glória de Deus e a edificação de seu povo. É um dos
meus venerados santos junto a Deus, cuja intercessão não me tem falhado, desde
março de 2011, quando concluiu a sua peregrinação terrestre e mergulhou,
definitivamente, no seio da ternura da Trindade Santa.
Quando se utiliza da palavra verbalizada e escrita, o
místico reza e medita antes de publicá-la. Ele não está preocupado se está ou
não de acordo com aquilo que se convencionou como ortodoxia da fé, mas fala
aquilo que o Espírito o inspira falar. O místico não entra em contradição com o
evangelho de Jesus. Isto lhe basta. Pensar e viver em sintonia com Jesus e seu
evangelho constituem o essencial. A consciência do místico está alinhada com
Jesus, procurando, em tudo, ser-lhe fiel. Eis aqui o essencial da vida mística:
Ser fiel a Jesus no amor. Não há nada
mais importante do que isto. Este é o núcleo da vocação, da santidade e da fé
místicas.
Como
as instituições religiosas, com suas normas e doutrinas, não estão plenamente
em sintonia com Jesus e seu evangelho, então não é de se estranhar as
incompreensões e perseguições ao místico. Aqui temos também a profecia mística:
Este grito permanente do Espírito, que apela incansavelmente para a conversão,
por meio do testemunho e das palavras do místico. Assim, não lhe causa nenhuma
perturbação espiritual quando acusado de heresia ou de qualquer outro tipo
semelhante de acusação.
Com
os olhos fixos em Jesus, o místico não se deixa abalar pelas acusações,
incompreensões, perseguições, ameaças, injúrias, calúnias, difamações,
excomunhão e tantas outras formas de males. Como diz o livro de Salmos: “Quem confia no Senhor é como o monte de
Sião, nada o pode abalar porque é firme para sempre”. A confiança do
místico no Deus que o chamou é inabalável. Unido a este Deus não teme a nada
nem a ninguém, mas permanece humildemente firme e sereno. A certeza da morte é algo
pavoroso aos olhos do mundo; para o místico, é motivo de alegria e de encontro
definitivo com Deus. A plena confiança em Deus anula o medo da morte.
1.3
O desapego dos místicos
Sem desapego não há vida mística. A primeira forma de
desapego é o desapego em relação a si
mesmo. Desapegar-se dos próprios desejos, da satisfação destes. Não ser
escravo dos próprios desejos: eis um caminho autêntico para a liberdade
mística. O místico está permanentemente atento a si mesmo, aos seus desejos e
inclinações, praticando a virtude evangélica da vigilância. Esta atenção a si
mesmo não ocorre por causa do medo do pecado. Este medo não faz parte da vida
mística. O místico sabe que o medo do pecado leva ao pecado.
A
vigilância de si mesmo está em função da escuta de Deus. Quando se liberta da
satisfação egoísta dos próprios desejos, o místico está em paz, de ouvidos
abertos para escutar a voz de Deus. Por isso, não é uma pessoa apegada a si
mesma porque não alimenta nenhuma pretensão, não busca nada para si, não está
presa ao espírito de superioridade; apenas se reconhece como pessoa amada por
Deus. Quando olha para si, o místico não enxerga um ser especial, dotado de
poderes ou privilégios especiais, mas vê um ser humano que optou por viver
segundo o Espírito de Deus. O místico não tem apego à própria vida. Isto o
liberta do medo da morte.
A segunda forma de desapego é o desapego em relação a bens materiais. O desejo de posse não atinge
o místico, pois possuir bens materiais não é o seu interesse. Basta-lhe a
comida, um lugar para dormir, algumas roupas simples para se vestir, uma
proteção para os pés e ter saúde no corpo. Assim como Jesus, basta ao místico
ter as mínimas condições para manter-se vivo. O conforto do luxo e as tantas
seguranças criadas pela evolução humana não lhe causam nenhuma atração. O
místico sabe dos perigosos das seguranças oferecidas pelos sistemas criados
pelo homem. Deus é a sua segurança. Não vive a procura de nenhuma espécie de
segurança e/ou bem material.
Despojadamente,
é livre e goza a paz. Não se preocupa com nada porque nada possui. Seu desapego
é uma denúncia contra toda pessoa que vive a procura de riqueza, lícita ou
ilicitamente. Não se trata de exibicionismo, mas de liberdade para viver
dignamente, em plena comunhão com o Deus e Pai de Jesus, que somente se revela
aqueles que não prendem o seu coração à riqueza. O coração do místico é ocupado
por Deus, não deixando espaço para o apego a bens materiais.
A terceira forma de desapego é o desapego em relação às pessoas. O místico as ama sem apegos. Ama-se
na liberdade, sem se submeter ao outro nem o submetendo. Não vive em função da
realização da vontade de quem quer que seja, exceto a de Deus. O místico não
projeta nada para o outro, nem se submete aos projetos deste. Relaciona-se com
as pessoas sem se deixar cair na tentação de possuí-las. Não manipula nem se
deixa manipular. Não procura satisfazer seus desejos em relações interesseiras,
nem se transforma em objeto de satisfação dos desejos de ninguém. O místico
procura despertar o amor no coração das pessoas, mostrando-lhes o quanto é bela
e fecunda a verdadeira amizade.
Desse
modo, o místico não se frustra porque não cria expectativas em ninguém. Para
ele, cada pessoa é aquilo que é. Não há necessidade de esperar nada de quem
quer que seja. Ele trata os outros como trata a si mesmo, ama os outros como
ama a si mesmo. Por isso, não sofre porque não se frustra nem se decepciona. Amor
que se manifesta na compaixão, na solidariedade e na alegria é o sentimento que
orienta o místico na sua relação com o outro. Ao se relacionar com o outro, o
místico age de tal forma que o torna cada vez mais livre.
Uma última forma de desapego é o desapego em relação ao passado e ao futuro. O místico tem plena
consciência de que a vida acontece no presente. Sabe que tem passado e futuro,
mas se encontra no presente. Desapegado do passado, não orienta a sua vida por
lembranças de acontecimentos passados. Para o místico, o passado literalmente
passou! Isto não significa que seja uma pessoa sem memória, fechada aos
ensinamentos que o passado possa transmitir. O místico reconhece a importância
da memória histórica para a vida particular e social do ser humano.
1.4
A contemplação na vida mística
Contemplar é
enxergar o Invisível no visível. Este parece ser um conceito à altura do
místico. Este vive contemplando o mistério divino. Participando da intimidade
com Deus, é absorvido pelo amor fecundo e alegre, que consiste na graça divina
operante. Sabe-se e sente-se amado por Deus e O experimenta de forma tão radiante
e profunda que a linguagem humana é incapaz de descrever.
O
mistério divino, apesar da autorrevelação de Deus, permanece insondável,
imperscrutável, infinito. Na vida mística não se possui a plenitude do
conhecimento de Deus, pois tal conhecimento não é possível neste mundo, mas
somente no mundo que há de vir. Trata-se de uma realidade escatológica, a ser
revelada pelo próprio Deus no tempo devido.
O místico, sob a ação do Espírito que o ilumina, encontra
a Deus em todas as coisas: nas pessoas e no mundo, em toda a criação. Jesus
garantiu aos seus discípulos que continuaria presente na vida deles após a sua
ascensão. De fato, Jesus está presente na vida da Igreja e do mundo. O místico
goza dessa presença amorosa, sentindo-a e enxergando-a em sua vida.
Na
história da Igreja podemos encontrar mulheres e homens místicos que tentaram
falar dessa presença viva e feliz de Jesus. Esta presença é superior a qualquer
entendimento humano. Nenhuma realidade humana consegue ser tão simples e,
simultaneamente, tão misteriosa. Trata-se de uma presença procurada, ou seja, o
místico vive a procura de Jesus e Jesus vive procurando-o. O místico está
condicionado pelos limites da condição humana, condição experimentada por
Jesus. A iniciativa de tal procura sempre parte de Jesus.
Na intimidade da contemplação, o místico recebe de Deus o
dom da visão da realidade. Ver as
coisas como elas realmente são é um dom divino, concedido gratuita e
imerecidamente. Juntamente com esta visão, Deus concede o dom do discernimento. Iluminado pelo Espírito, o místico enxerga o
que muitos não conseguem enxergar; além disso, aprende a perscrutar os sentimentos
que povoam o coração humano.
Esta
visão da realidade e dos sinais dos tempos faz com que o místico seja
reconhecido como uma pessoa sábia e prudente. Plenamente reconciliado consigo
mesmo, com Deus e com a vida, torna-se capaz de ouvir as pessoas,
despertando-as para o amor.
Em alguns casos, o Espírito concedeu e tem concedido a
alguns místicos outros dons divinos: o dom
da palavra para orientar os corações atribulados; o dom da cura de doenças físicas e espirituais; o dom do
discernimento dos espíritos; entre outros sinais extraordinários que a
inteligência e a linguagem humanas não conseguem compreender e expressar.
Alguns
místicos medievais, e também modernos, experimentaram visões e arrebatamentos
espirituais e/ou experiências semelhantes. Tais experiências e dons
extraordinários não constituem a meta da vida mística. O verdadeiro místico não
busca tais coisas, mesmo sendo frutos da graça de Deus. Estas manifestações
podem ou não ocorrer. Não são provocadas pelo místico nem são frutos de méritos
pessoais. São realidades espirituais que fazem parte da vida mística, mas podem
não aparecer na vida de muitos místicos. Também neste aspecto, a iniciativa
parte de Deus, que misteriosamente age para a divinização do ser humano.
O místico contempla Deus e suas maravilhas. Permite-se
sondar pelo amor divino. Entrega-se,
sem medo, nas mãos divinas, para ser trabalhado como o bairro nas mãos do
oleiro. Torna-se, de fato, amigo e
companheiro de Deus. Na contemplação, o místico mergulha no mais profundo
de si mesmo, conhecendo o lado sombrio de sua personalidade. Nesta ida ao mais
profundo de si mesmo, conhece uma profunda tristeza e vergonha, pois descobre o
quanto é fraco e pecador.
A
passagem pelo lado sombrio do próprio interior levou e leva muitos místicos a
experimentar o que São João da Cruz chamou de noite escura da alma. A tensão dos conflitos internos na vida mística
leva muitos a experimentar o ocultamento,
ausência ou silêncio de Deus. Apesar das dificuldades enfrentadas nas lidas
espirituais, o místico sabe que não é definitivamente abandonado por Deus, pois
este permanece presente, mesmo quando sua presença se pareça com ausência.
O místico é uma pessoa iluminada e conduzida pelo
Espírito Santo. Em sua vida, tudo acontece graças a este Espírito, que sonda as
profundezas de Deus e revela a misteriosa presença divina no mundo. No e pelo
Espírito, torna-se capaz de Deus. Com o Pai e o Filho, o Espírito faz morada no
místico, envolvendo-o e divinizando-o.
Diante
desse mistério, não há cálculos nem palavras, nem imaginação, nem inteligência,
nem lógica, nem raciocínios, enfim, nenhuma elaboração do pensamento capaz de
alcançar a sua profundidade. Tudo é mistério. E é do querer divino que
permaneça sendo. Nossas afirmações e negações não diminuem nem acrescentam nada
ao mistério de Deus. Somente pelo amor poderemos conhecê-lo parcialmente nesta
vida e plenamente na outra.
Conclusão
Cremos
que uma maneira eficaz para concluirmos nossas considerações sobre a vocação
dos místicos é com uma oração ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo – Comunidade
de Amor. Na vida mística, a oração é um permanecer
diante de Deus através de um diálogo fecundo, revelador e transformador. Os
místicos são mulheres e homens de oração. Por meio desta, seus corações falam
ao coração de Deus. Além dos aspectos já mencionados, é também pela oração que
podemos afirmar que a vida dos místicos constitui viver a eternidade no tempo presente, um mistério insondável de amor, um dom
imerecido de Deus.
Pai,
misericordioso e justo
Eu
sou em Ti
Guarda-me
em Teu amor
Meu
coração é Teu
Ele
é a tua habitação
Podes
ficar à vontade
Em
Jesus revelaste-me a tua presença
Não
permitas jamais
Que
me separe de Ti
Peço-te,
humildemente
Apesar
de minhas fraquezas
Que
não me falte o teu amor, a tua luz, o teu aconchego. Isto me basta. Amém!
Tiago de França da Silva
Desde Guaraciama, Norte de Minas Gerais, 31 de julho
de 2015.
Dia da memória de Santo Inácio de Loiola,
presbítero e fundador.
2 comentários:
Excelente e profunda abordagem da mística cristã. De maneira clara, objetiva mas não perdendo nada em exatidão e conteúdo você lançou mais luzes sobre o assunto que cada vez mais ganha importância, oportunidade e valor nesses nossos tempos. E por falar em tempos, penso que você, talvez, pudesse abordar a mística com um olhar mais universalista, mais abrangente e dialogante, como pede e precisa os nossos tempos de rápida planetarização. Afinal, a mística, que é a busca pelo Absoluto que a todos seres permeia e revela não se restringe a nenhuma confissão ou crença. Aliás, transborda, vai além de todas mas a todos diz respeito. Na sua próxima reflexão, brinda-nos com umas sugestões de leituras para quem quiser, poder e precisãr aprofundar algum tópico. OK?
O Todo que está em tudo, para além de tudo a transparente em tudo lhe fortaleça e dê alegria! Ton Alves _ Casulo de Luz
Prezado Ton Alves,
Obrigado pela apreciação do texto! Que o Deus de todas os povos, línguas e nações nos auxilie na caminhada, iluminando-se com a Sua luz. Uma sugestão, entre inúmeras que podem ser encontradas: Relatos de um peregrino russo, livro publicado pela Paulus, um dos clássicos da espiritualidade cristã.
Grande abraço,
Tiago de França
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